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Fé, esperança e carnificina

Nick Cave em São Paulo

Thiago Francisco

O cantor e compositor australiano Nick Cave é um dos artistas mais profícuos de sua geração: ao longo dos quase quarenta anos de carreira musical, ele compôs quinze discos com o grupo Bad Seeds, dois álbuns em colaboração com Warren Ellis e onze trilhas sonoras para filmes, às vezes lançando mais de um trabalho por ano. Os três álbuns recentes – Skeletoon Tree (2016), Ghosteen (2019) e Carnage (2021) – foram os mais elogiados de sua carreira. Ghosteen é considerado pela crítica e pelo próprio Cave como seu melhor disco. É difícil imaginar outro cantor e compositor com uma carreira tão longa, tão consistente, em termos de lançamentos e qualidade, tão consciente do próprio ofício e ainda capaz de se reinventar mesmo depois de tantos anos de estrada. Faith, Hope and Carnage,1 obra formada por entrevistas de Cave ao jornalista Seán O’Hagan, publicada em 2022, explora a singularidade do gênio artístico de Cave e as principais preocupações de seus trabalhos recentes.

A obra é resultado de quarenta horas de conversas de Cave a O’Hagan. É um livro de entrevistas, tendo a carreira de Cave como objeto. Seccionado em catorze capítulos e cada um com uma temática diferente, o livro parece editado como uma coletânea de ensaios sobre tópicos relevantes a Cave: religião, Deus, luto, amor, sexo, o seu processo criativo, beleza, perdão. As conversas, no entanto, são raramente formais e O’Hagan parece ter uma relação de intimidade com Cave. Os dois conversam como bons amigos. Em alguns momentos, no meio dessa informalidade, as discussões tomam rumos inesperados e Cave fornece respostas a O´Hagan que facilmente poderiam ser rascunhos para ensaios. A maneira como o livro é editado e os títulos poéticos de cada capítulo se justificam nesses momentos.

A ideia do livro surgiu durante o período pandêmico. Cave teve de adiar e posteriormente cancelar a turnê mundial de apoio a Ghosteen. Com tempo livre, concordou em participar de uma longa entrevista, intentada a princípio como parte de um único ensaio de O´Hagan para a revista Paris Review. A ideia inicial foi abandonada assim que as conversas tomaram caminhos cada vez mais abrangentes e complexos. O que seria somente um ensaio se tornou uma longa meditação sobre morte, vida e Deus.

Luto é uma temática recorrente. Arhur, o filho mais novo de Cave, morreu ao cair de um despenhadeiro em 2015, quando tinha apenas quinze anos. Essa morte mudou radicalmente a vida do artista australiano – interior e exteriormente. Nos álbuns recentes de Cave, ela é uma presença constante, inapelável. No livro, ela retorna como um motivo frequente, mas sempre abrindo caminhos para outras questões. Já no primeiro capítulo, “A beautiful kind of freedom”, Cave comenta sobre o processo de composição de Ghosteen, um álbum inteiramente feito tendo a morte do filho como ponto de partida. “Spinning song”, a canção de abertura do disco, começa com um monólogo contando a história de Elvis Presley, uma “canção giratória sobre o rei do rock’n roll”. No meio da narrativa há uma quebra: surge a cena de uma mulher “sentada na cadeira da cozinha, ouvindo o rádio” e a voz de Cave, em falsete incomum, começa a cantar “e eu te amo” e “chegará a paz”. Segundo o próprio Cave:

Cave: Uma das coisas mais excitantes liricamente [em Ghosteen] foi que eu me vi capaz de encontrar versos por meio de improvisos no estúdio que eu jamais teria sido capaz de escrever no meu escritório. (…) Um exemplo óbvio é a repetição de “E eu te amo” e depois “Chegará a paz” em Spinning Song. Eu nunca poderia ter escrito algo assim no papel e ainda assim é o meu momento favorito do álbum. Antes, esses versos jamais entrariam numa canção. Nem em um milhão de anos. (…) São versos muito súbitos e selvagens.

O que era uma canção tradicional sobre Elvis que Cave havia começado a compor se transfigura numa assombrosa meditação sobre o momento em que a esposa de Cave, Susie, descobre a morte do filho. O processo de composição de Ghosteen, segundo Cave, foi marcado por improvisos. Todo o álbum foi construído por “canções a partir dessas amadas, desconexas partes”. Já em estúdio, Warren Ellis improvisava com os instrumentos enquanto Cave criava versos com base nas imagens – poéticas, apocalípticas, visionárias – de sua cabeça. Ele estava tão obcecado com a ideia de produzir algo que fosse radicalmente diferente de tudo que havia feito antes – algo que alcançasse, de alguma forma, uma comunicação misteriosa com o filho falecido – que ele sacrificou o processo tradicional de escrita de canções. Todo esse processo deve ter sido no mínimo desconfortável, principalmente para um artista conhecido sobretudo pelo seu talento para composição. Cave, contudo, não parece apenas se sentir orgulhoso com o produto final alcançado em Ghosteen, mas feliz com o próprio processo criativo:

O´Hagan: Eu imagino que esse processo [de improvisação] poderia ter dado muito errado nas mãos erradas.

Cave: Bem, tudo que você precisa é tempo. Mas você só precisa de dez canções, dez acidentes belos e arrebatadores para fazer um álbum. Você precisa ser paciente e estar alerta para os pequenos milagres contidos no comum.

Ghosteen, de fato, é um artefato contemporâneo singular. Não é exatamente incomum discos serem produzidos tendo o luto como inspiração. Donda de Kanye West e Carrie & Lowell de Sufjan Stevens são exemplos notáveis e que exploram temas religiosos. Poucos, porém, falam de morte evocando claridade, transcendência, eternidade. Em “Sun forest”, Cave convida os ouvintes a contemplar a extraordinária visão de uma espiral de crianças chegando ao sol, levando todos com elas. Essas são palavras de um pai que havia sepultado o filho há poucos anos. Em “Bright horses”, cavalos brilhantes invadem aldeias com as crinas cheias de fogo. A canção abre espaço para a descrença; os cavalos são apenas cavalos, não há fogos nas crinas e não há nenhum Senhor, como Cave canta na segunda estrofe. Na quarta estrofe da canção, a descrença se transforma em fumaça: Cave canta com furiosa convicção que o filho retornará para casa no trem das 5h30. Em “Ghosteen”, faixa-título da gravação, a beleza do mundo é exaltada, as estrelas são os olhos de Arthur e o próprio espírito do filho dança na mão do pai. O fato de esses versos, tão imagéticos, com evidente lastro religioso, terem sido compostos de forma improvisada afirma não somente a imensa imaginação poética de Cave, mesmo improvisando, mas acima de tudo o poder do sofrimento de criar nascentes – ainda que tão dolorosas – inesgotáveis de inspiração para os artistas realmente dispostos a escutarem a voz do silêncio.

Nick Cave, “Ghosteen”

O processo de criação de Ghosteen é mencionado em diversos momentos de Faith, Hope and Carnage. Cave comenta sobre as misteriosas inspirações para o álbum – as imagens vívidas que lhe apareciam antes de trabalhar nas músicas e a atmosfera concentrada no estúdio durante as gravações. Acima de tudo, a ideia de que o espírito de Arthur está misteriosamente presente no disco: “um espírito migratório, o Ghosteen (fantasma adolescente) passa de imagem a imagem. Para mim, esse disco se tornou um mundo imaginado onde Arthur poderia existir”. Nesse sentido, Ghosteen é mais do que uma criação meramente influenciada pelo imaginário religioso; é uma obra que reconhece uma espécie de transcendência de sua própria existência: um álbum que pretende comportar um espírito, estabelecer uma comunicação, mística e misteriosa, com alguém que já partiu e ser uma forma de oração de Cave para invocar a presença do filho falecido.

O disco foi lançado meses antes do desastre pandêmico. Outro tema central de Ghosteen é o luto enquanto experiência solidária com que todos somos confrontados em algum momento. “Todo mundo está sempre perdendo alguém”, Cave canta nos minutos finais de “Hollywood”, a faixa de encerramento do álbum. A voz parece profética, até, tendo em vista o desastre que se avistava. Sofrimento enquanto motor de processo criativo, enquanto experiência ordinária, coletiva, comum. Em “Utility of belief”, segundo capítulo de Faith, Hope and Carnage, Cave observa esses temas com uma sapiência extraordinária. Comentando sobre o trauma coletivo da pandemia de coronavírus e relacionando-o com o seu próprio luto pessoal, afirma:

Cave: Todos encontramos o nosso caminho através do luto mas a minha experiência tem sido, no final das contas, um processo espiritual e de mudança de vida. E foi Arthur quem me levou para esse lugar. Mas o luto coletivo da pandemia tem ecos familiares. O luto pode ter efeitos corretivos. Demanda algo de nós. Exige de nós que sejamos empáticos, compreensivos ou capazes de perdoar, apesar do nosso sofrimento. Ou perguntar: qual é o sentido disso? Qual é o propósito de tudo isso?

O’Hagan: Você acha que todo esse momento precário que estamos vivendo poderia ser coletivamente transformador de alguma maneira?

Cave: Sim. Eu permaneço cautelosamente otimista. Eu acho que se formos além da ansiedade, temor e desespero, há a promessa de algo elevado não apenas culturalmente, mas espiritualmente também. (…) Eu posso estar completamente equivocado aqui, mas acho possível – mesmo apesar da incompetência criminal de nossos governos, da saúde alarmante do nosso planeta, das divisões em todos os lugares e da chocante falta de misericórdia e perdão, em que muitos encontram âncora numa irreparável animosidade contra o mundo e todos os outros – que eu ainda tenha esperança.

A travessia de densas trevas até a claridade dessa compreensão é sem dúvida nebulosa. Skeleton Tree, lançado apenas um ano após o falecimento de Arthur, reflete bem esse momento. É assombroso quando Cave afirma para O’Hagan que grande parte das canções desse disco já estavam escritas quando o filho veio a falecer. “Jesus alone”, canção de abertura da gravação, começa com a imagem de alguém caindo do céu e se chocando contra o chão; na quarta estrofe, Cave canta sobre um homem que acredita em Deus mas que não encontra consolo especial nessa crença. “Você é uma memória distante na mente do criador, não percebe?” Em “Distant sky”, devastadora penúltima gravação do álbum, Else Torp canta que em breve “as crianças vão ascender, isso não é para os nossos olhos”. No entanto, apenas a faixa-título, que encerra a obra, foi escrita após a morte de Arthur. É como se Skeleton Tree, com sua austeridade musical, lirismo denso e obscuro, um disco extenuante apesar da curta duração, estivesse prevendo a tragédia que esmagaria Cave. Em “The impossible realm”, ele comenta a esse respeito:

O’Hagan: Eu acabei de escutar Skeleton Tree novamente e me lembrei da primeira vez que o escutei. Naquela época, supus que a maioria das canções tinham sido escritas após a morte de Arthur.

Cave: Não, foi o exato oposto. Eu acho que esse aspecto de Skeleton Tree me deixa bastante perplexo, para dizer a verdade. Eu fiquei perturbado com isso, especialmente na época. Porém, quando você pensa a respeito, foi sempre assim. Eu sempre suspeitei que canções tivessem uma espécie de dimensão secreta, sem ser muito místico sobre isso. (…) Canções têm a capacidade de serem reveladoras, agudamente. Elas podem ensinar muito sobre nós mesmos. São pequenas bombas de verdade.

Ghosteen profetizou o luto coletivo da pandemia e Skeleton Tree profetizou o imenso sofrimento que deixaria Cave obliterado pela dor, nas suas próprias palavras. Apesar de tudo isso, ele continuou a trabalhar. Terminou de gravar Skeleton Tree semanas após o filho ter sido velado. Saiu em turnê mundial para apoiar o lançamento do álbum. Durante a turnê do disco, propôs conversas com os próprios espectadores dos shows. Ele foi objeto de um documentário, One More Time with Feeling (2016), dirigido por Andrew Dominik. Encontrou uma enorme potência artística e criadora através da dor e se tornou um homem diferente, radicalmente diferente. Cave e os Bad Seeds nunca foram tímidos em explorar grandes temas em suas músicas – e Deus foi um personagem constante nelas. “Foi na cruz”, célebre canção de The Good Son (1992), que tomou o seu refrão da música evangélica brasileira de mesmo nome, foi lançada há vinte anos, antes mesmo de Arthur nascer e muito antes de Cave passar a se considerar um verdadeiro cristão.

A conversão de Cave – e sua própria teologia pessoal – é o verdadeiro grande tema de Faith, Hope and Carnage. É também o motivo central do livro: O’Hagan afirma que a semente para o livro veio de uma conversa em que Cave comentou sobre o papel da dúvida em sua teologia pessoal. Após a morte de Arthur, ele afirma ter encontrado uma “dimensão religiosa” que ele considera “altamente benéfica em sua vida”. Cave se tornou um homem de fé. Em outro momento, afirma de maneira clara a sua nova disposição de vida após a catástrofe pessoal:

Cave: Frequentar a igreja, escutar pensadores religiosos, ler a Escritura, sentar em silêncio, meditar, orar – todas essas atividades trouxeram o mundo de volta para mim. Deus é um detalhe, ou uma tecnicidade, tão inacreditáveis são as riquezas de uma vida devocional. Aqueles que desprezam essas coisas como falsidades ou absurdos supersticiosos, ou pior, como fraqueza mental coletiva, são feitos de material mais bruto do que eu.

Ao mesmo tempo, a fé de Cave abre um espaço surpreendente para a dúvida e a descrença. Em “Doubt and wonder”, sexto capítulo do livro, ele afirma que uma das “grandes dádivas de Deus é que ele nos providencia o espaço da dúvida. Para mim, ao menos, dúvida se torna uma energia da fé”. Ele enxerga essa dinâmica – entre crença e ceticismo – como parte constituinte de uma vida genuinamente religiosa. Ele não está preocupado em fornecer uma apologética, uma defesa da existência de Deus, ou ainda ser persuadido por uma, mas apenas se maravilhar com os mistérios da fé, ainda que em seu coração exista espaço para a relutância. Dessa forma, ele enxerga “amargura e cinismo como essencialmente merdas”. O ceticismo absoluto é tão pueril quanto a crença cega. Para Cave, só uma visão encantada do mundo, carregada de significado e propósito, pode dignificar o homem, colocá-lo como ser dotado de valor, criatura de Deus, uma pequena joia no meio das profundidades e das belezas da criação divina. E somente a religião fornece essa visão.

Em suas divagações teológicas, Cave reconhece o imenso valor da pessoa humana. A fé de Cave é profundamente mergulhada na esperança no outro. “Eu amo este mundo”, ele afirma sem medo de parecer fora do tom do cinismo contemporâneo, “com todas as suas alegrias e sua vasta bondade, e seu brilho e sua absurdidade. Eu amo este mundo e todas as pessoas nele. E não sinto nada a não ser uma profunda gratidão por fazer parte dessa bagunça cósmica”. Se a face humana de Jesus é a única maneira de contemplar o rosto escondido de Deus, dentro da religião cristã, então Cave encontrará esse rosto em cada sorriso humano, em cada lágrima, em cada ato de gentileza e amor. A sensibilidade teológica de Cave é intensamente humanista, encarnada e simultaneamente não deixa de ser carregada de sacralidade e mistério. Ele encontra mistério no ordinário.

A música, por exemplo, é um acontecimento essencialmente religioso, sagrado, segundo Cave. Ele enxerga o processo de criação de canções como uma espécie de revelação. No nono capítulo, “The astonishing idea”, Cave afirma que o seu processo criativo é como “estar esperando por Cristo aparecer, e então ele sai da tumba e revela a si mesmo”. Para isso, é necessário paciência, controle, prudência, tolerância com o próprio processo e, acima de tudo, fé. A canção verdadeira, estonteante, surpreendente, chega ao compositor de forma misteriosa e ressoa nos ouvintes como um agente de transformação. Segundo o próprio Cave:

O´Hagan: Então você acredita que a música pode realmente transformar a maneira como as pessoas pensam, de serem?

Cave: Totalmente. Na minha opinião, essa é a sua função original.

O´Hagan: Não é suficiente que a música apenas envolva ou alegre o ouvinte por um tempo?

Cave: Não, eu acho que a música tem o poder de influenciar o coração numa direção correta ou nos capacitar para fazermos o melhor ou sermos melhores. Especialmente quando as músicas são tocadas ao vivo. Coletivamente, nós podemos experienciar a música realmente, melhorando a condição do ouvinte. Eu vejo isso acontecer o tempo todo. Eu experienciei isso por mim mesmo. É uma coisa muito real.

Cave afirma que a música tem uma espécie de “poder particular”, uma expressão artística com o senso “de ascensão, que pode transmitir ou evocar uma sensação de assombro crescente”. Esse poder misterioso da música tem a capacidade de conduzir os ouvintes, ainda que temporariamente, a um “reino sagrado”. “Algumas músicas podem conjurar um espaço sagrado”. É importante ressaltar que Cave está usando essa linguagem, substancialmente religiosa, para se referir não à música sacra ou de caráter religioso, mas a toda música que tenha uma dimensão verdadeiramente profunda – como as próprias músicas profanas de amor do Bad Seeds. O momento de um show de música popular, que poderia facilmente ser descartado como uma experiência materialista, juvenil, frívola ou secular, é entendido como um evento de natureza sagrada e religiosa – seja pelo senso de comunidade evocado durante o concerto, seja pela natureza metafísica da música, que toca as memórias e sentimentos pessoais de cada ouvinte, individualmente, enquanto promove um encontro coletivo entre os três: a multidão de ouvintes, intérpretes no palco e a própria canção.

Ao longo do período em que o livro estava sendo desenvolvido, Cave foi confrontado com outras perdas pessoais. Sua mãe morreu em 2021, durante a pandemia, e Cave sequer pôde participar do velório – por conta das restrições sanitárias globais. Ele fala a respeito dela e do apoio dela à carreira dele em “A kind of disappearance”, quinto capítulo do livro. A sua amiga pessoal, Anita Lane, também morre durante a composição do livro – e essa morte é discutida em “Anita led us here”, décimo segundo capítulo da obra. Nas conversas com O´Hagan, Cave fala a respeito de seu casamento, sua esposa Susie, sua paixão por pintura, seu temperamento difícil durante a composição de um novo álbum, sua inesperada amizade com Chris Martin do Coldplay (Ghosteen foi gravado num estúdio que pertencia a Martin), da saída de integrantes do Bad Seeds ao longo dos anos, dos seus gostos literários e musicais, da parceria de anos com Warren Ellis, além de histórias e casos pessoais de sua longa e esplêndida carreira – dos anos 1980 à atualidade; a morte, porém, é uma presença incontornável em todos os capítulos de Faith, Hope and Carnage. A pandemia promoveu uma carnificina coletiva no mundo inteiro. Cave enfrentava a sua própria carnificina pessoal. Na sua idade, com sessenta e quatro anos durante as entrevistas, essa presença não é exatamente inesperada: as mortes de amigos e entes queridos são tão frequentes quanto paixões na adolescência.

Carnage, o primeiro disco de Cave sem a parceria do restante do Bad Seeds, apenas com Warren Ellis, foi escrito e produzido de forma simultânea a todos esses eventos. Ao mesmo tempo em que ele discutia com O´Hagan sobre canções antigas e o processo criativo de Ghosteen, um outro disco surgia. Ele envia a O´Hagan trechos das canções do novo álbum e pede a opinião do amigo. Das conversas entre os dois, saem ideias e novas percepções para o disco em construção. Os leitores são convidados a acompanhar Cave dissertando sobre trabalhos que sequer haviam sido lançados naquele momento. Carnage expressa o desejo de Cave de não se dirigir mais diretamente sobre o falecimento de Arthur, mas abordar o sofrimento de maneira mais abrangente tendo em vista a carnificina coletiva da pandemia. As primeiras canções do álbum são carregadas de alarmes proféticos e imagens demoníacas – a mão de Deus como sinônimo de castigo (“Hand of God”), árvores negras e tempos frios (“Old Time”), crianças descalças no meio da chuva (“Carnage”) – apenas para, na segunda parte do álbum e nas quatro faixas de encerramento essa atmosfera ser suplantada por cenas de esperança e reconciliação: memórias da infância de Susie, esposa de Cave, em “Alburquerque” e o enlevo romântico de dois amantes numa manhã em “Balcony man”, última canção do disco. “Essa manhã é incrível, assim como você”. Carnage é, em muitos aspectos, um disco mais apurado do que Ghosteen: apesar de retornar à estrutura mais tradicional, canções menores, mais cantado e menos recitado, a articulação entre aniquilação e recriação, carnificina e esperança, as preocupações proeminentes de Cave, é ainda mais bem desenvolvida e mais sofisticada neste do que no outro; é também uma obra que ecoa cristalinamente a influência da escritora Flannery O´Connor, que é nominalmente mencionada na canção “Carnage”.

Carnage, pode-se dizer, é um produto formado integralmente a partir do momento em que Cave estava quando Faith, Hope and Carnage foi gestado. A morte de Arthur havia se transformado em algo distinto: em fé, em esperança nas pessoas, em amor pelo mundo, em perdão, em encontro genuíno com o próprio Deus. Como Cave pondera, porém, a morte do filho não é um tema de seus trabalhos mas uma condição de sua vida – algo que andaria sempre com ele até a consumação de seus dias. Essa presença, no entanto, não é mais uma nuvem escura mas uma brilhante esperança. No penúltimo capítulo do livro, e possivelmente o mais tocante, “God in the cloud”, Cave articula finalmente o que esteve sempre implícito ao longo da obra:

O´Hagan: Vocês dois [Cave e Susie] encontraram uma maneira de ir além do trauma e a dor e chegar onde estão agora. Você tomou alguma decisão consciente, como certa vez disse, de desafiar isso?

Cave: Bem, eu vou te dizer isso porque estou me sentindo um pouco cansado. Falar dessa forma a respeito dos brutos detalhes do que aconteceu conosco pode não ser de muita ajuda a outras pessoas. Eu sinto que falar a respeito disso é de alguma forma reducionista. Porém, eu preciso dizê-lo antes de ir. A vida que eu e Susie temos hoje é repleta de sentido. Eu amo Susie hoje mais do que nunca. E ela sente o mesmo por mim. O nosso amor é frequentemente alegre, o que não significa que não temos os nossos momentos de lágrimas compartilhadas. Eu não sei como chegamos onde estamos agora porque, na verdade, eu não sei que lugar é esse. O que sei é que nunca nos recuperaremos completamente da morte do nosso filho, e nem deveríamos. Estamos marcados por isso, Susie carrega uma tristeza que existe na superfície de sua gentileza e talvez é isso que faz dela a surpreendente e oceânica mulher que ela é. O que eu sei é que Susie e eu dividimos sentido nas menores coisas de uma maneira que nunca fizemos antes e encontramos enorme conforto nisso. Luto vem e vai, mas não mais nos assombra. Nós podemos colapsar juntos ou separados, sabendo que amanhã estaremos de volta a nosso caminho. Eu sei que na maior parte do tempo sou feliz e que a vida é boa. Eu não digo isso casualmente ou de forma trivial. Digo que a vida é realmente boa. As pessoas são boas. Eu raramente vejo maldade nas pessoas; ao contrário, vejo camadas de sofrimento. E acho que as pessoas podem fazer coisas terríveis e coisas extraordinárias quando são confrontadas com o entendimento de sua própria fraqueza, vulnerabilidade e falta de poder. E acho que Susie e eu estamos agudamente conscientes da precariedade não só das nossas vidas, mas também de todas as vidas – a sua raridade, a sua preciosidade – e que tudo pode desaparecer num instante. Na luz do nosso entendimento, encontramos na gratidão um ato simples e essencial. E Arthur nos mostrou isso, a necessidade urgente de amar a vida e um ao outro apesar da crueldade casual do mundo. Amor, esse ato mais contraintuitivo, crucial de todos, é ser responsável uns pelos outros.

O’Hagan: Você enxerga o mundo como essencialmente bom?

Cave: Bem, no Livro do Apocalipse, há aqueles versos esplêndidos: “vejam, ele está descendo das nuvens / e cada olho haverá de vê-lo”. Eu sinto que a bondade do mundo deve ser experienciada, em certa medida, por meio do mecanismo de sofrimento – o Deus nas nuvens – se a noção de bondade existe para sustentar qualquer forma de verdade ou substância real. Além da superfície, felicidade simples dificilmente é simples, de fato, e é na maioria das vezes difícil de ser conquistada e o preço pode ser alto. Como eu e Susie chegamos a esse lugar é algo de que eu simplesmente não sei. Eu não sei, Seán. Como disse, eu nem sei o que é esse lugar estranho, mas foi alcançado com passos de bebê e através de quartos escuros e incontáveis cigarros e uma multidão de gentileza de muitas pessoas, e muitas lições no meio do caminho – como todo o resto.

Nick Cave, “White elephant”

“White elephant”, quarta faixa de Carnage e um dos trabalhos mais distintos de Cave, sintetiza bem todas essas ideias. A primeira metade da canção é formada por um monólogo de um suposto atirador prestes a cometer um extermínio, com direito a ameaças contra os próprios ouvintes: “Eu atiro na porra do seu rosto se você aparecer aqui / Eu atiro apenas por diversão”. A voz de Cave é grave, furiosa, sinistra. Na metade da música, de maneira abrupta, um coro frenético, contagiante, como vozes num culto pentecostal, lideradas por Cave, invade e proclama: “O tempo está chegando / O tempo é agora / Há um Reino nos Céus / Apesar de ser selvagem, apesar de ser cruel, / há um Reino nos Céus”. O paradoxo chocante da fé cristã – a existência de um domínio soberano de paz e amor num mundo de miséria, dor e escuridão – é afirmado, com violência e vigor, por Nick Cave: em seu trabalho e em sua vida pessoal.

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