Revista de Cultura

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Vampiros

Mikael Kristenson

Jerônimo Teixeira

Nature, red in tooth and claw
Tennyson

Me convida para entrar, ele pediu, e em qualquer outra ocasião teria dito isso com ironia, o desprezo que ele nutre por mim e que talvez seja mútuo, e eu não disse nada, só abri passagem e Mateus entrou como quem se arrasta pela sombra. Não, a sombra era ele mesmo, o terno preto amarfanhado da noite em claro, os óculos escuros decerto para esconder pálpebras roxas e olhos avermelhados. Vaidade tola, consideradas as circunstâncias. Mas todas as vaidades são tolas consideradas as circunstâncias.

Passou pelo vestíbulo e tomou a direita, a caminho da sala, como se conhecesse a casa, e eu fantasiei uma improvável humilhação, Lígia contando todos os detalhes ao marido, Antônio me comeu no chão da sala, derrubou vinho nos meus seios e lambeu os mamilos e o vinho manchou o tapete – o tapete de que ela reclamava, Antônio, o teu tapete me dá coceira na bunda, ela dizia, e então ria, a risada clara, expansiva, que ocupa ainda agora todo o meu pensamento, é com doloroso esforço que tenho de retornar à figura escura à minha frente, Mateus na poltrona em que vejo TV é mais irreal do que a gargalhada de sua esposa morta, ele está dizendo alguma coisa, os lábios estão mexendo e deles sai um som agudo mas abafado, guincho de rato sob as tábuas do assoalho, eu custo a discernir palavras, morcegos, morcegos, supunha que ele vinha perguntar sobre minha ausência no enterro do filho e temia que o choque dessa morte finalmente rompesse os biombos inúteis da compostura e ele viesse me falar de Lígia, pedir desculpas por Lígia (sim, desculpas: é ele quem está em dívida, não eu). Não, nada disso: morcegos, ele fala de morcegos.

Sangue é recurso escasso, ele explica. Muitas vezes um morcego volta à caverna com o estômago vazio, e pode morrer depois de três ou quatro dias a seco. Imagine só, ele diz – logo ele, me convidando a imaginar o que quer que seja –, a mais tétrica das cavernas, morcegos famélicos agonizando entre as estalactites, caindo ao chão à medida que perdem as forças. Mas não acontece assim: eles compartilham o alimento – Mateus ergue um dedo categórico na minha direção, enfatizando um fato cuja relevância eu não percebo. Os morcegos compartilham, repete.

Ele pede algo para beber. No seu estado presente, e com seu histórico passado, eu deveria servir café. Mas trago uísque, balde de gelo, dois copos. Ele se serve com lentidão controlada, como se o pegador de gelo fosse um delicado instrumento de precisão. Não quer que eu note o tremor das mãos. Apruma-se na poltrona e está composto e firme quando diz estou vindo do enterro do Carlinhos. Eu sei, respondo, e ele diz que foi o menino quem lhe ensinou sobre os morcegos. Pai, o que significa hematófago?, Carlos perguntou, e Mateus quis saber onde o filho havia lido a palavra, e o menino mostrou uma matéria em uma revista de curiosidades, Monstros alados era o título, do qual Carlos não gostou, eles não são monstros, pai, ele me disse, ele era tão inteligente, tão inteligente. Mateus se curva, as mãos no rosto, repetindo tão inteligente tão inteligente. Esbarra com o cotovelo no copo que havia deixado sobre o braço da poltrona. Junta o copo, apressado e atrapalhado, não sabe o que fazer com o uísque que derramou, gagueja qualquer coisa sobre guardanapos. Deixa isso, digo. O tapete já estava manchado mesmo.

Sirvo uma nova dose, para poupá-lo do esforço e dar-lhe tempo de enxugar a face. Mateus toma um gole largo, pousa o copo sobre a mesinha de centro, recompõe-se. A foto na revista mostrava um beijo de sangue, ele diz, uma coisa nojenta. Pois é assim que eles agem: o morcego que consegue uma vítima sempre chupa mais do que precisa; de volta à caverna, ele regurgita para alimentar os companheiros famintos, que lambem o líquido vermelho e viscoso direto de sua boca. Carlos não via nada de grotesco nisso. Eles dividem, o menino disse. Os morcegos não são malvados, eles dividem o sangue uns com os outros. Isso foi há dois anos, diz Mateus, dois anos, Carlos já quase não andava mas ainda conseguia falar mastigar suas refeições virar as páginas da revista com fotos de morcegos hematófagos. Inteligente, muito inteligente. Você precisava ter conhecido o Carlinhos, para ver como ele era inteligente.

Minha vez de virar um copo sôfrego de uísque sem gelo, afogar isso que eu não sei bem o que é, ciúme mágoa raiva ciúme arrependimento ciúme dor ciúme ciúme, não conheci Carlos, o pouco de Lígia que permaneceu no mundo morreu sem que eu o conhecesse, e foi para dizer isso que Mateus veio do cemitério direto para minha casa, é com uma volúpia obscena que ele me conta do calvário hospitalar e me dá os detalhes técnicos da moléstia. Eu conheço a doença, interrompo. É até engraçado: só agora percebo que ele tirou os óculos escuros, primeira vez que nos encaramos em dez anos, e não dura muito, Mateus desvia os olhos para retomar a fala, ninguém conheceu a doença como eu, ele diz, em um tom de hostilidade contida, ninguém, e muito menos você, Antônio, e eu quase tenho vontade de rir por me terem conferido uma distinção tão especial entre todos os outros ninguéns. Mateus não sabe, só posso concluir que ele não sabe da última vez em que Lígia e eu conversamos. Recém haviam diagnosticado o mal de Carlos, ela telefonou para me perguntar de meus sobrinhos, o que morreu e o que estava a caminho, a mesma doença degenerativa, a mesma sentença sem recurso, e ela queria que eu lhe dissesse o que fazer, que tratamento seguir, que médicos consultar, mas só pude lhe passar o número de meu irmão, vai ser bom vocês dois conversarem, para dividir experiências, eu disse, e foi a coisa mais estúpida que poderia ter dito – se ninguém deseja dividir essa experiência, esse sangue amargo. Eu tenho que desligar, ela disse, e desligou. Decerto queria chorar. Nunca chorou na minha frente, nem quando veio me dizer que estava grávida e decidira ficar com o marido.

O marido segue com sua narrativa confusa e triste, deve estar chegando ao fim pois ele está dizendo morreu sozinho, meu filho morreu sozinho, e eu penso sim, sozinho, porque não bastou ter perdido gradualmente tonicidade muscular coordenação motora controle esfincteriano respiração, antes de tudo perdeu, perdemos Lígia. Aquela frase desastrada e nem pude pedir desculpas, Lígia desligou o telefone e morreu atravessada pelas ferragens. Mateus dirigia embriagado, saiu do acidente só com cinco pontos na testa, velório com caixão fechado, nem pude admirar o rosto de Lígia uma última vez, e o viúvo recebendo condolências com os miseráveis cinco pontos na testa. Não sei se ele me viu, eu não estava lá para dar meus pêsames a Mateus, e nem para consolar o menino pálido na cadeira de rodas que só vi de relance, o menino que pouco mais de um ano depois morreu sozinho, chamaram Mateus no meio da madrugada, estado crítico, foi o que disseram, e quando ele chegou ao hospital Carlinhos já se fora, inteligente, tão inteligente e morreu.

Mateus me encara novamente e desta vez não desvia o rosto quando volta a falar, quer ter certeza de que conta com minha atenção absoluta, de que não estou encantado pela risada de Lígia enquanto ele me fala do cadáver desamparado de Carlinhos, o auxiliar de enfermagem estava tirando o tubo quando ele entrou na sala, geralmente não deixam os familiares verem isso mas não perceberam que ele estava chegando, e a boca escancarada do menino morto lembrou Mateus dos morcegos, se eu pudesse vomitar sangue, diz Mateus, se um pai pudesse regurgitar sangue na boca do filho, alimentá-lo, reanimá-lo com calor vital, compartilhar seu bem mais escasso como os morcegos da foto, se Mateus pudesse, mas não pôde.

Ele bebe o pouco de uísque que sobrou no copo. Murmura qualquer coisa besta como nem sei por que vim até aqui. Não se despede, nem eu o acompanho até a porta. Deveria retê-lo, fazer com que descansasse no sofá antes de dirigir de volta para a casa vazia. Mas Mateus esgotou minhas reservas de generosidade. Para os morcegos, é mais fácil. Não é o próprio sangue que eles dividem.

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