Lucas Castor
Capítulo 1
Levantem-se, e, balançando as pernas, sem o alcançar, eu e Marcos olhamos para o chão. Meu irmão almoçava com a lata de achocolatado ao alcance das mãos. Ao longo da chuva de 1977-1978, de novembro a março levou-a ao colégio, à natação, ao parquinho, ao Beirute, à cama na hora de dormir. O papel, onde se leria Nescau e se veria a promessa de uma bebida cremosa e borbulhante, foi arrancado por papai, que fez pequenos furos na tampa, para que os tatuzinhos-bola respirassem. Viveriam apenas para serem torturados pelo meu irmão, quando tivesse vontade.
Marcos pingava água nos furos da lata, com cuidado. Abria no fim de tarde, após voltarmos do clube Vizinhança ou da aula de inglês, e deixava que passeassem pela mesa de jantar, tomando o banho de sol do dia. Depois os arrastava de volta para o cativeiro, com uma brutalidade que era mais falta de controle sobre o corpo do que desejo de machucar. Meu irmão tinha só cinco anos. Um ou outro tatuzinho dava sorte, e da mesa não caía para a lata, mas para o chão. Quando via isso acontecer, eu chamava a atenção de Marcos, tentava o distrair de alguma forma, dando chance para o bicho se enfiar entre as fendas do piso de taco e desaparecer. Mas a maioria voltava para a lata, e nela agonizava por alguns dias, até que morressem de fome ou de desgosto, ou até que meu irmão decidisse brincar com eles.
Brincava os matando. Fechava o punho e lançava golpes desajeitados contra a mesa, explodindo cinco, dez tatuzinhos, fazendo papai gargalhar na poltrona. Bernardo, se estivesse por perto, soltava o berro, então mamãe o repreendia. Não dava uma semana e lá estavam os dois, cavando os jardins em frente ao nosso bloco, em busca de novas vítimas. Muitas vezes quis libertar o exército dos encouraçados, mas não tive coragem. Se fosse surpreendido por papai, não só levaria uma bronca, mas perderia a chance de ganhar um pouco de carinho. Um dos atalhos para receber esse afeto era a caça aos tatus.
Levantem-se e olhem para o chão. Mamãe já está de pé. Marcos apanha a lata e se levanta, olha para o chão. Eu me levanto, pego Bernardo no colo e olho para o chão. Papai fica sentado na poltrona, bica o uísque e olha pela janela sem grades.
“Levantem-se e olhem para o chão. Vejam, meus filhos, as folhas não vieram desta terra, as frutas do suco não vieram desta terra, nem os legumes. O sangue do boi não escorreu neste solo. Agradeçam à Terra que não conhecem. Comamos”.
Gosto de imaginar que mamãe manteve uma comunicação inconsciente e transatlântica com Saramago, dando-lhe uma palavra, o começo de uma frase ou até uma página de seu Levantado do Chão. Enquanto ele escrevia o livro, mamãe procurava refúgios intelectuais para sua atuação na incipiente Comissão Pastoral da Terra. Não acreditava em Deus, mas tinha que o suportar na luta contra o latifúndio.
Quando enfim leu o livro, em meados da década de 1980, já estava em paz com suas crenças. Filiou-se, para o terror de papai, ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, dando aulas de português para os assentados e seus filhos nas ocupações do Norte e do Centro-Oeste. Imagino-a lendo Saramago em voz alta para os alunos, e aposto que não entendiam. Eu entenderia, acredito que Marcos também, mesmo que pouco, mas mamãe nos deixava mais da metade do ano com o silêncio de papai.