Revista de Cultura

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Um diálogo (para uso próprio)

Willem Drost (1633-1659). O estudante (c. 1653).
Galeria Nacional da Dinamarca, Copenhagen.

Ivanes Freitas

Foi em uma tarde de junho, eu acho, a última vez que fui à casa do professor. A tarde não estava quente, como de costume. No céu, não se via um azul encardido, como o de outras tardes.

O professor nunca deu aula. Talvez nunca tenha chegado a pisar em uma faculdade. Chamávamo-lo assim por respeito; no começo, antes de o conhecermos, pela piada. 

Ele era um pouco mais velho que eu, e mais calvo também. Por causa de sua afortunada condição financeira, teve tempo e material para estudar, para ler. Aprendeu, ainda na adolescência, e por conta própria, o romeno, o francês e o italiano; depois de adulto, latim, alemão, e, por necessidade, o inglês (idioma que execrava).

Uma semana antes da minha última visita, entregando-lhe o manuscrito de um romance, o primeiro que escrevi, pedira-lhe que o lesse. Ele, aceitando a ingrata tarefa, me disse, folheando-o, que, apenas o lesse, entraria em contato. Como sou agoniado, não esperei o seu retorno. Não me aguentava, ansioso. Ele, em se tratando de literatura, não era lá muito amistoso. Literatura ruim é literatura ruim, mesmo se de amigos. E isso me animava.

Fui a casa dele sem o avisar previamente, o que o irritou, mas paciência. Chegando à porta, hesitei, quis voltar. Não tinha jeito. Não ia dar viagem perdida. Toquei a campainha. A esposa dele me atendeu. Convidou-me a entrar, entrei. Na sala, depois de trocadas duas, três palavras, mandou-me esperar e foi chamá-lo.

A casa era pequena: dois quartos, sala, cozinha, um banheiro. Era bem arrumada, muito limpa, mobiliada com um gosto invulgar. Um dos quartos o professor fez de escritório, onde trabalhava o dia todo. Em que trabalhava, não tenho ideia. O escritório era seu refúgio, a sua solidão íntima materializada. Fora a mulher, ninguém entrava lá.

A esposa do professor voltou e me pediu que fosse vê-lo, no escritório. Grande não foi o espanto. Conhecia-o há uma década, frequentava sua casa há cinco anos, mais ou menos, e nunca tinha passado da sala. 

Ser convidado a entrar em seu refúgio, ser a outra pessoa a fazer parte daquela sua solidão, mesmo que por uma tarde, foi uma prova de estima. Naquela tarde, sim, senti a estima. E ser estimado por um grande homem é um presente que poucos têm a sorte de ganhar.

Entrei no escritório, meio acanhado. Lá, havia apenas uma estante de livros, não muitos – não contei mais de cem; uma mesa, que lhe servia de escrivaninha, e duas cadeiras, sendo uma de balanço. Nas paredes, alguns quadros, representações de pinturas: um retrato de seu poeta, feito por Emile Deroy; a Salomé, de Moreau; uma pintura de um artista contemporâneo; e um desenho que o próprio professor fizera de sua esposa.

O professor estava sentado na cadeira de balanço, carrancudo.

“Por que não avisou que vinha? Deve-se avisar, sem-pre, antes de bater à porta de al-guém!”, falou, com uma voz sumida.

Desculpei-me meio vexado. Percebi-lhe nos lábios um meio sorriso. A sua carranca começou a se desfazer. Apertamo-nos as mãos.

O professor não era feio, mas a sua beleza, se é podemos chamar a sua não fealdade de beleza, era desagradável. Esguio, disciplinamento ereto, sempre vestido com uma certa correção. – A sua feliz condição financeira o permitia esses caprichos.

Uma vez perguntei o porquê de sempre estar vestido com apuro, mesmo em casa, sozinho, ao que ele me respondeu, irônico: “Ces choses ne sont pour le parfait dandy qu’un symbole de la supériorité aristocratique de son esprit. Baudelaire – BÔ-D’-LER – (sempre falava assim, sílaba por sílaba, nomes de escritores estrangeiros) responde melhor que eu”. A sua voz baixa nem sempre era audível. “A audição das pessoas de hoje se adaptou ao inferno de sons”, ele falava sempre, quando lhe pedíamos que repetisse o que acabara de dizer.

Depois que me desculpei, e que nos cumprimentamos, fui à estante de livros. Eles estavam belamente organizados: por gêneros, por países, por tamanhos. Dos quase cem livros, conhecia quarenta, e tinha lido vinte. Do seu poeta, apenas duas obras: a de poemas em versos e a de poemas em prosa.

“Um terço desses livros são de poetas brasileiros contemporâneos”, ele falou, “os melhores, o que quer dizer: nenhum aplaudido na academia. Não interessa a você, não é?” E, com um sorriso irônico, fitou-me.

Peguei o livro de um tal de G…, folheei-o. Era um poeta italiano. Não compreendendo nada, pu-lo de volta no lugar. Peguei outro, um poeta francês.

“Tem alguns belos livros aqui”, disse ao professor, “mas poucos. Pensei que você tivesse mais. Pensei que tivesse uma biblioteca”.

“Tenho a-qui o que preciso. Já gastei muito tempo com livros de uma só viagem. Aqui”, e apontou para a estante, “todos os que estão aqui, revisito-os sem-pre. São meus amigos… sempre que os visito, aprendo alguma coisa… nunca me decepcionam… sem-pre têm o que me ensinar”.

Ele me convidou para sentar na outra cadeira. Sentei-me.

“Você leu o romance?”, perguntei-lhe.

“Li, sim. Não me foi fácil lê-lo, mas o li”.

“Não foi fácil?”, perguntei, espantado, “Por quê? Complicado?”

O professor olhou-me, deu uma risadinha, balançou a cabeça, numa negativa.

“Não. Não é complicado; é chato. Sua história é batida, o que, sinceramente, é o de menos; as personagens, sem psicologia; sua escrita é fraca, sem ritmo. E o autor conversando diretamente com as personagens, sério? Em que estava pensando?”

“Achei que seria interessante conversar com meus personagens. Sabino foi o único que fez isso, pelo que sei”.

“Não, não foi! Vergílio Ferreira o fez. Miguel de Unamuno o fez antes dos dois, e com certeza uma outra pessoa fez isso antes do velho de Salamanca. E outra, se não tem nada que dizer aos leitores, que o leva a pensar que tem algo a dizer às personagens?”

Não lhe respondi. Não soube que dizer. Depois de uma pausa, perguntei-lhe:

“Devo corrigi-lo? Cortar o diálogo com as personagens?”

“Corrigir, não. Não vale a pena. É inútil. Você deve é rasgá-lo, queimá-lo, e jogar as cinzas na privada”.

“Mas já conversei com um editor. Ele aceitou publicá-lo”.

“Publicá-lo? Não! Pelo amor de Deus, não faça isso. Você se arrependerá no futuro, quando já tiver dominando a arte, se chegar a dominá-la. Rasgue-o, é o melhor a fazer”.

“E esquecer que o escrevi?”

“Não. Não o esqueça. Nun-ca es-que-ça nada que escreveu. Este seu romance, é o primeiro, não?, dever ser o modelo para os que virão depois… o modelo do que não se deve fazer”.

“Escrevi-o visando o público, admito. Talvez o público goste”.

“Você escreve para o público? Você os quer ganhar? Que triste”.

“Talvez, sim. Não é o público o consumidor do meu produto?”

“Ah, meu amigo!”, o professor sorriu, balançou a cabeça, “você já começou errado… nunca se deve escrever visando ao público. O consumidor do seu produto é você. O público é uma infeliz consequência da publicação. Se for para o público, ótimo! Talvez adore essa besteira toda! O público é o misérable chien de Baudelaire… – Bo-d’-LER -! Oferte-lhe um saco de merda, que o cheirará com gosto, talvez até o devore… Talvez até publique um ensaio acadêmico sobre esse saco de merda”.

“Então devo escrever para mim, só para mim?”

“Sim! Seus es-for-ços são seus, o tra-ba-lho é seu! O que arrancou de si, o des-gos-to do fracasso, só você o sentirá! A fe-li-ci-da-de do sucesso, se houver, só você o gozará! Essas coisas, essas besteiras para os outros, não se compartilha com ninguém; só interessa a você. O público é indiferente a tudo isso. O público – e, aqui, tô sendo otimista – rirá do seu fracasso, será indiferente ao sucesso. Lhe lerá a obra uma vez, e pronto! Sua obra ficará esquecida em uma estante ou nas prateleiras empoeiradas de um sebo”.

Confesso que, naquela hora, fiquei triste. Tinha me arrependido de ter-lhe mostrado o manuscrito. Ele crucificara todas minhas esperanças.

“Então devo parar de escrever?”, perguntei, triste, a voz sumida.

“Eu disse isso? Não! Você deve escrever, e escrever muito. Escrever e publicar. Mas, antes de publicar, ter a certeza de que seu trabalho tem algum real valor para você, de que presta para alguma coisa. Aposte todas suas fichas no romance… O que você tem a perder?”

“A vida?”,  falei abruptamente.

“Sim… Isso, a vida! É uma aposta alta, né? Mas a literatura…” Ele não terminou a frase. Depois de uma longa pausa, disse, “antes que esqueça: pare de citar poetas toda hora. Se for citar algum, cite os que conhece a obra, a vida. Em um capítulo, você cita cinco poetas alemães, dos quais conhece apenas um… se muito, dois. Você fala alemão, lê alemão?”

“Não, não”.

“Mas gosta da literatura alemã?”

“Gosto”.

“Pois aprenda o idioma! E de todos os poetas citados, de todos os autores aludidos, nenhum brasileiro? Por quê? Em sua galeria de representação de pinturas clássicas, não há espaço para as pinturas de brasileiros?”

“Não conheço os escritores daqui”, respondi, hesitante.

“Você devia era ter vergonha de dizer uma coisa dessa. Pois leia os brasileiros. E os portugueses, claro. E outra: pare de escrever frases inteiras de outros autores. Precisa de muletas para andar?”

“Não”.

“Então use as próprias pernas. Se aquele autor escreveu algo que reflita algo que deseja dizer, use o sentido do que ele falou, não as palavras; a essência da frase, a alma, não pertence a ele; o que lhe pertence, o que é dele, são as palavras, o corpo da frase. E leia muito teatro. Seus diálogos são uma bosta. Leia, leia, mes-mo, muitos romances. Para ser músico, é preciso que conheça muita música. Conheça sua arte! E leia poesia. O seu romance carece, e muito, de poesia. Romance sem poesia é coisa de jornalista, e você não quer ser confundido com um jornalista. E fique longe de Bakunin e de outros teóricos”.

Calou-se de repente, levantou-se da cadeira de balanço, foi à estante de livros, pegou um, folheou-o como se estivesse procurando algo, e, com um sorrisinho nos lábios, entregou-mo.

“Leia-o, releia-o… Leia uma terceira vez, uma quarta vez. Esse livro, e que beleza de livro, ser-lhe-á útil, ú-til. Pare de ler essas bobagens comerciais, deixe de ver esses filmes ruins… essas coisas estão lhe fodendo a cabeça. Agora, meu amigo, se me der licença, tomarei um banho, e depois dormirei. Desde ontem que não durmo”.

Despedimo-nos. Antes de eu chegar à sala, ouvi-o gritar: “não precisa devolver esse livro! É seu!” Agradeci-lhe o presente. Despedi-me da sua esposa, que me acompanhara até a calçada.

Chegando em casa, tranquei-me no quarto. Tentei ler o livro. Não consegui. A voz do professor ainda ecoava em minha cabeça. Joguei o livro na cama, e, mentalmente, revisitei aquela conversa com o professor, a última que tivemos.

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