Luiz Eduardo de Carvalho
O sertão é tema dileto na literatura desde José de Alencar, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna e, mais recentemente, Itamar Vieira Junior e seu best-seller mundial Torto arado. O sertão é o mundo desde antes disso, quando a história toda ainda não cabia na literatura, desde antes de ser contado com a linguagem da poesia na prosa de João Guimarães Rosa e nos versos de João Cabral de Melo Neto, de Patativa do Assaré e de outros ilustres cordelistas, poetas e romancistas. No conjunto das obras desses vultosos autores, o sertão, que já era por si imenso território, tornou-se infinito universo, sempre em expansão. Tanto que, agora, ganha novo astro em sua constelação: a poeta mineira Mell Renault, que estreia na prosa com Na véspera do tempo, redemoinho, escrito em 2019 e trazido ao público em 2023 na edição da Editora Mondru.
Na véspera do tempo, redemoinho não trata de um sertão premeditado, estudado à luz de sociologias, antropologias, linguísticas e outras ciências para, travestido de literatura em alegorias, ser apresentado como produto artístico. A própria autora alerta, logo nas primeiras frases: “Não sei. Sinto”. E repete tal convicção, qual ladainha, inúmeras vezes ao longo do livro, para que não restem dúvidas de que se trata de um relato produzido a partir de uma qualidade de composição que é intuição e percepção antes de ser decifração e conclusão, embora o resultado também se adeque perfeitamente a essas qualidades do entendimento.
Não faltam tensões sociais, econômicas, religiosas, humanistas. Na história que se conta, não se excluem a luta de classes, o determinismo histórico condicionado por herança escravagista, coronelista e essas circunstâncias a determinar as relações de exploração, de espoliação, de expropriação e de mais e mais ação sempre a colocar o sertanejo na hipossuficiente posição de presa passiva das atrozes desigualdades. Em Na véspera do tempo, redemoinho, entretanto, tudo isso é tratado com espontaneidade, como parte do cenário, como caráter dos personagens, como elemento do tempo que ali passa de forma diferente, quase detida, e não como objeto de premeditadas análise e crítica escamoteadas por metáforas literárias. Isso traz naturalidade ao que se conta, não no sentido de conformismo ou aceitação cega, mas de leveza para que sentimentos não racionalizados possam emergir sem o peso do juízo que impede essa outra forma, mais emotiva e tão rara, e porque não dizer poética, de perceber e digerir a dura realidade que é exposta.
Na véspera do tempo, redemoinho é arte antes de ser tese, antes de ser engenho ou teorema, o que é plena e generosamente ratificado pela fluência de uma linguagem de talhe poético, empregada não só na construção dos sintagmas, com escolhas apuradas das palavras, como principalmente na sugestão das imagens mentais que colorem a narrativa com sentimento. Aliás, nessa obra, toda digressão é poesia, o que definitivamente a distancia das formas teóricas já tão vistas e revisitadas acerca das contingências e agruras da vida sertaneja.
Assim, Mell Renault nos apresenta o seu olhar para um sertão intuído por um agrupamento de miudezas e sede que nos faz beber o livro com ânsia anidra a fim de saciarmos e hidratarmos, mais do que nossa percepção, o nosso sentimento desse vasto universo representado pelo microcosmo do humilde casebre de taipa e de suas eiras ressecadas onde habita a família da protagonista, Flor de Cacto, cujo nome demoramos a descobrir – só aparece lá pelo meio do livro e corresponde a um nome de coisa e não de gente, ainda que coisa rara, bela e sempre aguardada como índice de que a ansiada chuva cairá no sertão. Isso insinua que sua identidade está à margem de propor uma individualidade marcante e resta representada por uma espécie de caráter genérico que, mesmo com o desenrolar do romance, não se alça ao grau de uma personagem perfeitamente contornada por marcas de personalidade distinguíveis e, nesse sentido, ela se torna universal, uma sinédoque da condição feminina: a parte pelo todo que marca com indistinção a vida das mulheres do sertão.
Ao redor deste microcosmo doméstico, condicionado pelos hábitos de uma típica família de colonos rurais do semiárido, orbitam um sem número de personagens para compor o coletivo necessário não apenas à consecução do enredo, mas à ilustração dessas tantas miudezas e sedes aludidas logo no primeiro parágrafo. Um diversificado painel de tipos humanos que trazem em comum a secura da realidade circunstanciada pela privação de recursos materiais, porém distintos pela profusão de expressões espirituais, anímicas, num universo em que ser ainda é mais do que ter. Essa difusão é um dos truques que dá ao romance um quê impressionista, com as costumeiras descrições adjetivadas substituídas por sucintos e competentes elementos de sugestionamento substantivados: a vida vista num amarelado, tingido de sol e secura.
No sentido mais moderno do romance, a protagonista narradora não é propriamente a condutora de seu destino, pois que o vive passivamente, mais submetida à situação circundante do que agente de ações determinantes para a construção de sua própria história. Inerte, na véspera do tempo, vive, pois, presa a uma sucessão de esperas do desenrolar dessas circunstâncias. Ela pouco realiza em termos dos feitos que possam colocá-la no domínio ou à mercê de seus desejos, os quais, pela tradição da escassez, submetem-se ao condicionamento de um destino preestabelecido e aceito desde o nascimento e para além da morte, por toda a vida, assim posta, sempre severina.
Emerge a tônica pós-expressionista prevalente do enredo: as digressões, repletas de anseios e angústias, sem literatices alongadas e lamurientas, eclodem das esperas a partir do fluxo de pensamentos de Flor que ascende à consciência de que o tamanho de cada um é a imensidão, num ir sendo a avolumar o vazio de uma vida num lugar em que Deus apenas vigia, enquanto a matéria da vida arde, onde viver é ir domando o bruto. Cava é a alma esperar. É isso sertão, em tudo, locus físico redimensionado, onde o seco cenário à espera da chuva e sua gente à espera da própria sina são fios indistintos da trama tecida num silêncio, numa quase ausência, que por dentro espinha.
Mesmo que a espera distorça a noção do passar do tempo, a vida segue e o embaralhado do destino dá nisso, pega a gente nos imprevistos. A história de Na véspera do tempo, redemoinho dá suas voltas, sem grandes peripécias, pois não é nisso que reside o movimento de um destino submetido à situação e não à ação, e a trama se sucede pela força de seus amenos desígnios, sem grandes sobressaltos no estado dos personagens, o que lhes priva, inclusive, de qualquer pretensão trágica. Revela-se, contudo, já que a dor é aprendizado de libertação, a busca pela liberdade anunciada pelo amor que migra do sentimento pela família de origem para aquela que se quer constituir para ser a herança das ausências, numa nova espera que de pronto transforma passado em futuro pela insignificância do presente. O presente é a própria espera, ou seja, aquilo que não acontece. Viver é no detalhe, principalmente nesse sertão, que é tudo isso: um redemoinho na travessia.
O título do livro, por fim e em síntese, traz uma sutil paráfrase, porém extremamente pertinente – principalmente pelo seu desdobramento em dois enunciados – ao da obra máxima do gênero: Grande Sertão: Veredas. Enquanto Guimarães Rosa apresenta o gigantismo espacial e repleto de ação do sertão daqueles que empreendem os feitos masculinos, dos quais até mulheres travestidas de homem querem participar, sertão que para ele é o mundo no aspecto físico e concreto da existência, as retinas femininas de Mell Renault enxergam o sentido do aprisionamento do tempo nesse mesmo vasto terreno que, para os que ficam distantes daquelas epopeias e, portanto, presos à situação da imobilidade expectante, é a penitente e persistente espera. O sertão é também o mundo, talhado, porém, pela imaterialidade do tempo a observar sem pressa o redemoinho dos acontecimentos.
Li José de Alencar, Euclides da Cunha, José Lins do Rego, Graciliano Ramos, Ariano Suassuna, Itamar Vieira Junior, João Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto, Patativa do Assaré… Então, digo: há, neste romance de estreia da poeta Mell Renault, um pouco de tudo disso, devidamente transcendido, visto, enfim, pelo olhar arguto e sensível de uma mulher e narrado pela sua correspondente voz feminina. Tal feito, não bastasse o restante esmero da obra, sobremaneira a entonação poética a contar, quase cantar, a história, bastaria para fazer de Na véspera do tempo, redemoinho um dos livros mais bem-vindos de nossa literatura contemporânea. Foi, enfim, plantada uma flor no deserto da espera.