Revista de Cultura

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Quem somos quando ninguém nos vê?
Cinco poemas

John Ruskin, "Viterbo" (c. 1840-1849)
Art Institute Chicago

Rúben Marques

Gritos mudos

Para onde vão as palavras não ditas,
por entre nossas respirações finitas?
Queremos largar cada sentir engolido
na corrente de um rio desmemoriado,
mas o silêncio assenta e pesa
na consciência de uma vida presa.

Aquilo que os lábios não dizem
o corpo transborda inconsciente.
O tempo não resolve tudo
se a mesma dor for para sempre.

Mas como exorcizar a pressão?
Cada trago de sentimento
tem o seu ideal momento
cobrando escuta, aceitação e tradução
para um código compreensível
que se faça ouvir indelével.

O que não dizemos
nos cala além da voz,
cala a razão de ser.

Processo de cura

Será que existe a cura completa?
O cérebro tem a qualidade fantástica
de alterar a sua química,
mas parece não haver fórmula certa.

Certas memórias remexidas
são como um gume acutilante,
mexer em certas feridas
provoca um ardor desgastante.

A cura não é linear,
não apresses o processo,
nem atalhos levam o passo
a seguir uma reta exemplar.

Ora se perde, ora se ganha,
talvez a cura seja ciclo ondulante,
numa persistência que nos acompanha
talvez sejamos emenda constante.

Águas da alma

Umas vezes à ligeira superfície,
outras nas densas profundezas.
Umas vezes na confusa rebentação,
outras na rasa tranquilidade.
Umas vezes em calmo embalo,
outras na repentina tempestade.
Não é um percurso simples,
muito menos de único sentido
e sempre sujeito a bamboleantes sentimentos.

Se as nossas almas
fossem mesmo oceanos...
Quantos se atreveriam
a chegar ao leito da nossa existência?

Dias

Um dia
nutrimos o sonho com desejo,
um dia
esvai-se a sorte num ensejo.
Um dia
acreditamos no destino como plano,
um dia
faz-se da expectativa um engano.

Por vezes
fantasiamos o tempo de um dia
numa sequência de anos.
Por vezes
refazemos no tempo de um dia
a existência de muitos anos.

O voo precisa do vazio

Nem sempre é coragem inabalável,
nem sempre é decisão pensada,
nem sempre é crença confiante.
Talvez seja um precipício abrupto
e um salto de olhos fechados,
somado a um instante de franqueza.

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