Rúben Marques
Gritos mudos
Para onde vão as palavras não ditas, por entre nossas respirações finitas? Queremos largar cada sentir engolido na corrente de um rio desmemoriado, mas o silêncio assenta e pesa na consciência de uma vida presa. Aquilo que os lábios não dizem o corpo transborda inconsciente. O tempo não resolve tudo se a mesma dor for para sempre. Mas como exorcizar a pressão? Cada trago de sentimento tem o seu ideal momento cobrando escuta, aceitação e tradução para um código compreensível que se faça ouvir indelével. O que não dizemos nos cala além da voz, cala a razão de ser.
Processo de cura
Será que existe a cura completa? O cérebro tem a qualidade fantástica de alterar a sua química, mas parece não haver fórmula certa. Certas memórias remexidas são como um gume acutilante, mexer em certas feridas provoca um ardor desgastante. A cura não é linear, não apresses o processo, nem atalhos levam o passo a seguir uma reta exemplar. Ora se perde, ora se ganha, talvez a cura seja ciclo ondulante, numa persistência que nos acompanha talvez sejamos emenda constante.
Águas da alma
Umas vezes à ligeira superfície, outras nas densas profundezas. Umas vezes na confusa rebentação, outras na rasa tranquilidade. Umas vezes em calmo embalo, outras na repentina tempestade. Não é um percurso simples, muito menos de único sentido e sempre sujeito a bamboleantes sentimentos. Se as nossas almas fossem mesmo oceanos... Quantos se atreveriam a chegar ao leito da nossa existência?
Dias
Um dia nutrimos o sonho com desejo, um dia esvai-se a sorte num ensejo. Um dia acreditamos no destino como plano, um dia faz-se da expectativa um engano. Por vezes fantasiamos o tempo de um dia numa sequência de anos. Por vezes refazemos no tempo de um dia a existência de muitos anos.
O voo precisa do vazio
Nem sempre é coragem inabalável, nem sempre é decisão pensada, nem sempre é crença confiante. Talvez seja um precipício abrupto e um salto de olhos fechados, somado a um instante de franqueza.