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Vira uma pedra o tempo

Sebastian Pether, "Igreja gótica em ruínas junto a um rio, à noite" (c. 1841)
National Trust, The Vyne

Maíra Dal’Maz

Apresentação por Caio Cesar Esteves de Souza

No dia 31 de maio de 2024, Maíra Dal’Maz trouxe à público o seu terceiro livro de poemas, Vira uma pedra o tempo, pela Editora Patuá. O título, retirado de um verso da música “Cidade Americana”, de Carlos Walker e Piry Reis, já indica a divisão do livro em duas partes, sendo a primeira intitulada “Tempo” e a segunda, “Pedra”.

Nos dezenove poemas que constituem “Tempo”, nota-se a recorrência de temas familiares, como a figura de sua Vó Maria, que aos oitenta e tantos anos ainda se arruma para esperar a terapeuta, ou da Vó Primina, que em tempos de fome cozinhava polenta para o marido e os filhos. “Até hoje minha mãe não come polenta / (…) / não gosta / tem sabor de fome”. A mãe, que foi “mãe de suas irmãs” e acumulou diversas profissões para a sobrevivência, hoje sonha com “ser reintegrada à universidade / tomar vinho na piscina sob a luz / da lua / nós ao redor / inclusive os cachorros”. Esses poemas são marcados por uma voz em primeira pessoa que olha para o que é familiar buscando entender esses outros que a constituem indiretamente. O “Tempo” dos poemas é marcado na carne das personagens – não se trata de uma abstração. A passagem das gerações, os desafios que mudam com essa passagem de tocha das avós para a mãe e para a autora – é esse o tempo que se transformará em “Pedra”. Trata-se de um tempo simultaneamente familiar e autobiográfico, pois o que resta das vidas daqueles que a cercam decanta e constitui a voz autoral. Não é acidental, portanto, que essa seja a primeira parte do livro, e que seja aberta por um texto metapoético – “Entrada”, que transcrevemos abaixo.

Os temas da segunda parte já constituem um desafio maior para a delimitação crítica. Isso porque há alguma continuidade temática, com a retomada de personagens familiares, mas em tom bastante diverso. Tudo parece transfigurado pelo olhar da autora que busca, em meio a um turbilhão de referências, se definir em meio ao caos e à perda. As referências familiares coabitam esses vinte e nove poemas com referências a Patti Smith, Sylvia Plath, Hélène Cixous, Clarice Lispector, Joan Didion etc. Trata-se da constituição de um novo tempo familiar, dessa vez com uma família constituída subjetivamente, como se a voz autoral buscasse suprir uma falta causada pela violência do Estado policial com a presença dessas outras vozes que a acompanham em sua jornada em busca de si mesma. Esses poemas são marcados sobretudo pela sugestão, e o leitor sente constantemente que há algo não dito por trás de cada palavra.

O movimento geral do livro parece buscar a transformação desse tempo em pedra. Sendo o tempo ruinoso, pela falta que impede a sua completude, a pedra na qual se transforma também não é um monolito, mas ruínas. Em meio a essas ruínas, Maíra Dal’Maz busca encontrar sua voz poética nos textos que compõem Vira uma pedra o tempo. Haveria muitas outras coisas a comentar sobre o livro, como a persistência dos temas da morte, da fome e da violência, ou ainda o “você” a quem a autora frequentemente se dirige. Deixamos ao leitor, no entanto, essa tarefa, e apresentamos quatro de seus poemas como convite à leitura.


Entrada

você sabe que eu preciso me retirar
por causa de como eu mexo as orelhas
em direção a todos os ruídos
exceto o da morte
então você me encontra
em posição fetal nos fundos da casa
e não se preocupa
você sempre entende
que te convido
a deitar-se comigo

te mostro o nome deste livro
em cidade americana
de carlos walker e piry reis

estamos sobre a cisterna fria
você ri da música e zomba de mim
é claro, só poderia ser aquela
a minha música preferida


peço que me ajude a escolher a ordem
1) vira o tempo uma pedra
2) vira uma pedra o tempo
eu preciso voltar ao início deste arquivo
ainda não memorizei qual escolhi
não sei se decidi certo
não importa

o primeiro nome do arquivo foi
onde soluça o silêncio
da mesma música
cidade americana
como chamavam o distrito onde nasci

dá na mesma
vira o tempo uma pedra
vira uma pedra o tempo

ou onde soluça o silêncio
como seria, afinal,
a voz das ruínas?


Heranças

o cheiro da minha vó
em talco, hidratante nivea, minancora
batom da avon, perfume natura

quando morreu, foi um pouco para cada filha
o cheiro e as roupas
uma dezena delas que até chegou
às netas, mesmo eu - que só a via
a cada dois anos e não sabia bem o que falar
diante dela

minha forma de mostrar deferência
era comer a salada de acelga até o final
esperava que todos terminassem
esperava que ela reparasse

dia desses, levei para lavar roupas
na casa da mãe, que reconheceu
as roupas da vó
levou ao rosto e eu sabia
que ali ela também sentia
aquele cheiro que hoje à noite
vestindo minhas próprias roupas
eu sinto.


Barragem

se arrependimento matasse
não precisaria me explicar
nunca mais. essa queimadura
o buraco na sua blusa
nunca mais o barulho que faz
a minha língua seca ao lembrar
e o choque de lembrar de tudo
o que você me disse
mesmo sendo uma só palavra
uma só palavra: aquela
que eu não disse, aquela que insiste
em conter a morte.


Epitáfio

(com Eugênio de Andrade)

navego - 
com nomes, rumores
e corações
- por um labirinto
que arde.

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