Poemas de A forma do fogo

Albrecht Dürer, "Melencolia I" (1514) (detalhe)
The Metropolitan Museum of Art

Felipe Rodrigues

quando

Minhas neuroses embrulhando meu estômago,
Prostrando meus joelhos numa aceitação sem volta...
Muitas tentei, mas agora outra solução não era possível:
Finalmente, tinha de enfrentá-lo:

"E então, meu Coração, quando seremos felizes novamente?"
Mas meu Coração ele não responde.

"Porque seremos felizes novamente, não?"
Mas meu Coração ele não responde.

"E aquelas felicidades as mais ingênuas", lembrei,
"As mais genuínas - e por isso tão verdadeiras, tão inesquecíveis! -
Mas que, por inexperiência minha e crueldade do mundo,
Não pude vivê-las ao fundo, prolongá-las ao máximo,
E viver como tantos, inclusive tu, Coração leviano,
Haviam prometido?"

E meu Coração se contorce e machuca:

"Então você acha que sabe o que é felicidade?",
Ele responde enfim,
"Como a gente se desconhece!
Aquelas felicidades eram só o que tinhas
E só o que sempre terás!"

"Faz de conta", continua ele,
"Que o tempo cura, e não que faça esquecer!
Faz de conta
Das realidades paralelas, e que lá és feliz!
(Ah, sim! Sei que o fazes, e quanto!)
Faz de conta
Acreditar no amor, e não em remédios!
Faz de conta
Acreditar na liberdade, no sonho, na imaginação!
Num Deus, num sentido qualquer!
Faz de conta
Que eles se importam, e que há compaixão e verdade no mundo!"

Ele pausa, e cruel mas verdadeiro prossegue:
"E se duvidares se essa dor passa
Ainda hoje, semana que vem, ou nunca!
Faz de conta, faz de conta, faz de conta que sim!"

E então,
No tempo inclemente, entre o vento sibilante...

Meu Coração se cala.

oração ao meu corpo

Ajudem-me, joelhos, a não me prostrar
Ajudem-me, joelhos, a não me dobrar
A qualquer obstáculo,
Ídolo ou maldade.
A qualquer verdade.

Ajuda-me, mão direita
Ajuda-me, mão esquerda
E que uma saiba o que a outra aponta,
Dá e recebe.

Ajuda-me, fígado, a aguentar meus trancos
Que o vinho saiba o que a água faz.
Ajudem-me, pulmões, a respirar nos tempos tóxicos
Dos tempos atuais.

Ajudem-me, olhos e ouvidos, a ignorar
Mas, não podendo ignorar, a saber lidar.
Ajuda-me, coração, a esquecer
Mas, não podendo esquecer, a perdoar.

A curar e perdoar a mim mesmo:

Ajuda-me, corpo, a poder suportar
(-me).

os desertos da memória e do desejo

No princípio era o Nome.
Oco, singelo e informativo
Como quase todas as palavras
- Mas tão doce e musical!
Na boca ou na mente, pensado ou não -

De repente, muito menos que de repente,
Foi-se enchendo...
De vozes, imagens, cheiros, pulsações, ansiedades...
Foi-se transformando...
Em sugestões, bobagens, medos, saudades...

E do Nome, a palavra compartilhada,
Nome de tanta gente!
Fez-se A Pessoa.

(Era quem chamavam
"X.".)

Mas de repente, muito menos que de repente,
O tempo cuidando de sarar os desejos e as memórias...
- Esvaziar o conteúdo -
Da Pessoa faz-se Nome, e do Nome,
Uma palavra qualquer:
Oca, singela e (des)informativa
Como as palavras todas.

Quando não se quer, nem se pode mais voltar
À Pessoa e ao Nome desencarnados,
Perdidos lá... Ontem.

E o Nome, que era só dela,
A Pessoa,
E outras palavras,
Usadas só para ela,
Então se tornam de todas as pessoas,
De qualquer pessoa,
De nenhuma

Quando quase já não fazem eco ao meu coração.

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