Revista de Cultura

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Oratório em três poemas

Johannes Vermeer, "Mulher de azul lendo uma carta" (c. 1662)
Rijksmuseum, Amsterdã

Ana Salvagni

Casulo

caso descaso 
refaço a teia sem perceber
há sete dias no vão
na casa que me alimenta
no casulo que é morte e é vida também
que é luto e é aprumar-se
lavo os panos alivio gavetas
recolho-me aos incômodos
às inconclusas preces me deito
sou eu mesma a minha rede
e ainda que eu saia e olhe o mundo
ainda que eu encontre alguém pelo caminho
durmo ainda, pupa
mais sete dias e deixo a estufa
meu asilo meu exílio
a casa que me devolve
as asas

Partilha

aos filhos o amor em corpo, palavra e fotografias 
o sublime silêncio depois da história
a contemplação
o doce-amargo lavrar da memória

a ninguém a armadura de dores maciças
a ser arremessada de alguma altura
ou dissolvida em um pranto qualquer

aos vizinhos a minha música, não a que se canta
ou a que se escuta,
mas a que sai da boca da torneira
do tanger dos prendedores no varal
do farfalhar de um dia comum
das folhas da janela que percutem e se cumprimentam
no entardecer

aos pais a luz e as cinzas no ardor de mais uma vida
uma flor, uma filha

aos irmãos nada além das velhas lembranças
aquelas que serão sempre mais relevantes

aos netos os poemas e os jabotis
que caminham extensos no tempo

às amigas as rajadas de risos e os rios de aconchego
aos amigos o sereno e indecifrável encontro

ao avô a chuva que perfuma o domingo e repara malefícios

à avó todos os jardins do mundo

ao medo o meu adeus

à minha rua o respirar dos passos e as crianças, tal como sementes

às árvores da minha vida as maiores honrarias
o suave perecer, as nossas sombras

Prece IX

mãe, senhora 
leva-me ao teu caloroso colo
lava-me com teus cheiros
amacia-me com tuas ervas
enfeita-me com as miúdas flores
acalenta-me até que alvoreça em mim o sentido
e o impulso
senhora mãe dos abertos e seguros caminhos
dá-me a hora feliz de poder soltar-te a mão

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