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Sobre Zona de Interesse

Miguel Forlin
Rafael Rocca dos Santos

Entre todos os assuntos, o Holocausto, ou, em hebraico, a Shoah (“catástrofe”), talvez seja o mais delicado de ser representado na arte. Desde as notícias da libertação dos campos, entre elas as famosas capas da revista Life, o mundo tentou lidar com as informações que provinham daqueles universos concentracionários, como os designava David Rousset (em 1948, o autor um sobrevivente), nos quais a moral, a ética, os valores religiosos e políticos e o senso de comunidade eram brutalmente destruídos e reduzidos à mera sobrevivência, quando não às cinzas que, dia e noite, emanavam das chaminés dos campos de extermínio nazistas.

Os primeiros relatos foram publicados em jornais, revistas e livros que, já em 1946, procuravam lançar luz à memória daqueles que sobreviveram à logística de extermínio. Junto a eles, representações pictóricas produzidas dentro dos próprios campos também vieram à tona, dando forma plástica à tentativa de relatar o cotidiano massacrante. Posteriormente, foram publicados dezenas de milhares de relatos, fotos, peças de teatro, livros de memórias, romances que ficcionalizavam a experiência concentracionária, entre outros.

No caso do cinema, não foi diferente. Um dos filmes mais representativos, A Última Etapa, de Wanda Jakubowska (ela também uma sobrevivente), veio ao mundo já em 1948, apenas três anos após o fim da guerra e a consequente libertação dos prisioneiros. Pouco tempo depois, em 1956, surgiria outro filme igualmente representativo, Noite e Neblina, de Alain Resnais. Aos dois, seguiu-se, pelas décadas subsequentes, uma série numerosa de produções, como, por exemplo, os premiados A Lista de Schindler, A Vida é Bela e O Pianista. Entre as mais recentes, o destaque fica por conta de Zona de Interesse, de Jonathan Glazer.

Porém, antes de adentrarmos de modo mais detalhado no filme, é importante dizer que, subjacente a tudo isso, sempre esteve presente uma questão relacionada à ética da representação do sofrimento. Vários sobreviventes, estudiosos e artistas se debruçaram sobre ela, e até hoje ressoam dúvidas. Que forma dar àquela experiência? De que maneira representar o “incomunicável”? Como abordar o Holocausto?

Em seu mais novo filme, Jonathan Glazer escolheu fazê-lo de um jeito nada ortodoxo e tradicional: em vez de imagens denunciadoras ou gráficas, imagens “desinteressadas” e sons advindos do extracampo; ao invés da perspectiva de uma das vítimas, a perspectiva de um dos perpetradores; e, no lugar de uma abordagem explicitamente humanística, certo distanciamento brechtiano, frio e cerebral. Como afirma a historiadora portuguesa Irene Flunser Pimentel, o longa “[…] está assombrado pela ausência das vítimas, apenas ouvidas através de gritos, tiros e da música…”. No entanto, não demorou muito para que críticas às escolhas feitas e textos destinados a denunciar a suposta falta de ética delas surgissem, colocando em xeque ou até mesmo diminuindo as muitas conquistas obtidas pelo cineasta.

Todavia, tais críticas e textos, produzidos em diferentes línguas e partes do mundo, são de uma fragilidade embaraçosa, ora porque falam de um filme que não aquele realizado por Glazer, mas um imaginário e inexistente (o que infringe a primeira regra do exercício crítico: ater-se ao objeto de análise), ora porque incorrem em um dos males de nossos tempos, a infame sinalização de virtude, uma pretensa superioridade moral cuja base é sempre a total e completa ignorância.

Feito em parceria com o Memorial Auschwitz-Birkenau na Polônia, Zona de Interesse retrata, em resumo, o contraste gritante entre a vida privada, familiar e cotidiana de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, e, ao fundo, onipresente, seja pela imagem da parte superior dos blocos, seja pelo som grave e constante do forno trabalhando de maneira incansável, aquele campo, com os dois separados por um muro que delineia o “mundo de lá” e o “mundo de cá”, este um jardim cultivado contendo diversas espécies de plantas frutíferas e florígenas.

Uma das críticas mais recorrentes feitas pelos detratores é a de que Glazer, resguardando-se da acusação de sentimentalismo ou melodramaticidade, esquivou-se de representar os horrores de Auschwitz. No entanto, eles estão presentes em todo o longa, sendo transmitidos pela sensação de desconforto preconizada pelo diretor e intensificado pela faixa sonora do filme, que faz com que o espectador, munido de um conhecimento básico sobre o assunto, preencha lacunas que a escolha de ponto de vista deixa subentendida ou parcamente explícita. O constante sussurro do forno de Auschwitz I, os insistentes gritos, os tiros esparsos que se ouvem durante a obra inteira, abafados ou não nas cenas filmadas no interior da casa de Höss, e, por fim, as luzes vermelhas, vacilantes, que se percebe à noite, são os indicativos de que o morticínio é constante. Assim, em vez de focar na representação do assassinato em si, exibindo em tela cenas que facilmente poderiam se tornar sem propósito, a sugestão – e nisso reside um dos pontos altos do filme – é precisamente o que torna a abordagem de Glazer fecunda. É de se notar, aliás, que os topos dos blocos estão presentes na maior parte das cenas situadas no jardim da casa de Höss, acima do muro e do arame farpado eletrificado. Portanto, Glazer não se esquivou de representar o horror de Auschwitz. Pelo contrário, ele o fez, mas de um modo cinematograficamente criativo e incomum.

Isso nos traz à outra das críticas que têm sido feitas, a saber, a de que Glazer transformou um dos eventos mais trágicos da história num exercício estético, pessoal e egocêntrico. Porém, que exercício seria esse? Qual seria o egocentrismo que representa justamente o alheio, o Outro? Se um filme é uma obra de arte, por que o controle e a destreza técnicos seriam somente exibicionismo virtuoso? Não seriam eles mecanismos para transmitir algo aos espectadores? Posta assim, essa discussão soa mais autoindulgente do que propriamente crítica. É um “não ponto”, uma “não discussão”, uma “não questão”. Em nenhum momento, o representado em tela perde seu protagonismo; ao contrário, toda a técnica empregada por Glazer está a serviço da história.

E qual é a história? O plot retrata a vida cotidiana de Rudolf Höss (Christian Friedel), um funcionário da imensa burocracia nazista que se destacou pelas suas habilidades em gerir campos de concentração e campos de extermínio. Essa vida cotidiana é partilhada com sua esposa, Hedwig Höss (Sandra Hüller), seus filhos e seus serviçais, poloneses que vivem constantemente sob ameaça da governanta da casa. Todo o episódio se desenrola entre 1943 e 1944, período em que o casal é atribulado pela iminente transferência de Höss para outro campo de concentração. Ele é transferido, a esposa fica com a “vida que o Führer nos deu, até mais” e a casa nas proximidades de Auschwitz, dentro da Interessengebiet, a “zona de interesse”, como os nazistas chamavam a área ao redor de Auschwitz I, II, III e seus campos satélites. O filme retrata as ações miúdas de Höss, como refeições, sua festa de aniversário, as conversas burocráticas ao telefone, sua relação protocolar com outros nazistas, seu caso amoroso com uma polonesa etc.; o longa também retrata o cotidiano de Hedwig, sua relação abusiva com as empregadas, a visita de sua mãe, suas preocupações em manter seu status social, as visitas íntimas e seu caso com um empregado polonês. Ou seja, as atividades cotidianas que se suporiam normais em uma vida familiar.

Se não fosse essa família a família Höss… Precisamente por isso, todos esses atos ganham outra dimensão. Acusa-se Glazer de ter escolhido uma figura histórica incompatível com o conceito de “banalidade do mal”, tal como Hannah Arendt o discute. Segundo as críticas, Höss era perverso e importante demais dentro da burocracia nazista para ser visto como um outro Adolf Eichmann. Todavia, são justamente essas características que dão maior relevo ao contraste entre sua vida privada e sua vida “profissional”. É a capacidade de ele levar aquela existência comum, mesmo fazendo o que faz, que gera o desconforto na plateia. Sim, Höss é a representação de o quanto o ser humano é capaz, se mergulhado em uma ideologia genocida, de parar de enxergar no outro seres humanos iguais ao si mesmo, tratando-os como “peças” (o termo empregado pelos representantes da Topf & Söhne, no filme, é esse – Stücke) que devem ser destruídas. Seria isso alienação? Não é, por exemplo, o que a mulher de Höss indica, ao ameaçar suas empregadas de morte, dizendo “vocês sabem o que fazemos lá”. A banalidade do mal não é a alienação da pessoa em relação aos fins do trabalho que ela executa, mas sim, tendo consciência desses fins, fazê-los com a mesma frieza com que se faria qualquer outra atividade burocrática, aparentando ser, por sua postura “calma”, ou seja, uma pessoa “normal”, somente um funcionário pequeno em uma grande engrenagem. Eichmann tinha consciência de suas ações, assim como Höss, e teve uma participação muito maior na preparação do genocídio do que comumente se lhe imputa. Além disso, segundo o próprio Höss em sua autobiografia, ele e Eichmann se encontraram em diversas ocasiões, inclusive dentro de Auschwitz, para discutirem a melhor maneira de levarem a cabo a “Operação Hungria” (a recepção e o assassinato de 400 mil judeus húngaros), indicada no filme.

Toda essa questão é abordada por Glazer mediante a forma com que ele filma. Höss é quase sempre mostrado a uma certa distância, como se a inexistência de uma real humanidade impossibilitasse a aproximação da câmera e um maior nível de intimidade. Glazer não está interessado em suavizar os personagens ou em tornar o Holocausto a analogia de qualquer outra situação. Assim como os sons e barulhos do extracampo nos convidam para que imaginemos as atrocidades sendo cometidas no campo, o distanciamento nos convida a olhar, a partir do conhecimento prévio que trazemos, para além da aparência, para além do que uma falsa normalidade esconde, em suma, para que participemos inteira e ativamente do filme, como espectadores racionais, reflexivos e críticos. Glazer nos mostra, por meio de suas imagens e de nossa imaginação, um enorme e doentio teatro de costumes, e mostrá-lo em sua pérfida normatização é tudo ao que ele se propõe, daí a recorrência de certos elementos visuais e sonoros, os quais remetem tanto à repetição enlouquecedora e sanguinolenta da vida nos campos quanto à burocracia e perversidade da rotina familiar dos Höss, e o prendimento à situação retratada, única em suas particularidades.

Em síntese, Zona de Interesse pode ser concebido como um convite à reflexão sobre a capacidade humana de normatizar o mal. A representação do cotidiano normal e brutal, justapostos, aliado aos elementos estéticos cinematográficos, causa o desconforto pretendido pelo diretor. Não se trata de um convite a analogias a outros eventos históricos ou uma pretensa crítica, inexistente, a “momentos atuais”. É um filme sobre o Holocausto, um dos maiores crimes, por sua extensão e principalmente por sua logística, já cometidos por uma sociedade que sempre se gabou de sua racionalidade. Não é barbárie; é um dos cumes da civilização empregando a tecnicidade para fins obscuros. A existência do memorial de Auschwitz, retratado no filme com o respeito e a reverência que merece e cuja visita fez com que Glazer decidisse o tema de seu longa, é em si um alerta sobre as capacidades humanas para o mal. Não é um “passeio turístico”: é uma aula, mais concreta impossível, sobre o ser humano e o poder da memória. Nas palavras do diretor do Memorial de Auschwitz, Dr. Piotr M. A. Cywiński: “Esse filme vai fazer muitas pessoas refletirem, e esse é precisamente o objetivo”.


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