O dente quebrado

José Solana, "A tertúlia do Café de Pombo" (1920), Museu Reina Sofia, Madri
Coll está de bigode e gravata borboleta

Pedro Emilio Coll

Tradução de Rafael Rocca dos Santos

Pedro Emilio Coll (1872-1947) foi um escritor, jornalista e diplomata venezuelano. No campo da literatura, é reconhecido como um dos grandes entusiastas do modernismo na Venezuela e um dos propulsores das vanguardas latino-americanas.


Aos doze anos, Juan Peña, lutando com uns moleques, recebeu uma pedrada num dente; o sangue correu, lavando-lhe o sujo da cara e o dente partiu em forma de serra. Desde esse dia começou a idade de ouro de Juan Peña.

Com a ponta da língua, Juan tocava sem cessar o dente quebrado; o corpo imóvel, vago o olhar – sem pensar. Assim, de encrenqueiro e briguento, tornou-se calado e tranquilo.

Os pais de Juan, fartos de escutar queixas dos vizinhos e de vítimas transeuntes das perversidades do garoto, e havendo esgotado todo tipo de reprimendas e de castigos, estavam agora estupefatos e angustiados com a súbita transformação dele.

Juan não dizia palavra e permanecia horas inteiras em uma atitude hierática, como em êxtase; enquanto isso, lá dentro, na obscuridade da boca fechada, sua língua acariciava o dente quebrado – sem pensar.

“O menino não está bem, Pablo”, dizia a mãe ao marido; “tem que chamar o médico”.

Chegou o doutor grave e pançudo e procedeu ao diagnóstico: bom pulso, bochechas sanguentas, excelente apetite, nenhum sintoma de doença.

“Senhora”, terminou por dizer o sábio depois de um longo exame, “a santidade de minha profissão me impõe que eu declare à senhora…”

“O que foi, senhor doutor da minha alma?”, interrompeu a angustiada mãe.

“Que seu filho está melhor que uma maçã. O que é, sim, indiscutível”, continuou com voz misteriosa, “é que estamos na presença de um caso fenomenal: o filho da senhora, minha cara, sofre do que hoje chamados de mal de pensar; em uma palavra, seu filho é um filósofo precoce, um gênio, talvez”.

Na obscuridade da boca, Juan acariciava seu dente quebrado – sem pensar.

Parentes e amigos ecoaram a opinião do médico, acolhida com júbilo indizível pelos pais de Juan. Logo, em todo o povoado, citou-se o caso admirável do “menino prodigioso”, e sua fama cresceu como uma bomba de papel cheia de fumaça. Até o professor da escola, que o havia considerado a cabeça mais lerda do mundo, submeteu-se à opinião geral, por causa daquilo de que a voz do povo é a voz de Deus. Para uns mais, para outros menos, todos traziam à comparação um exemplo: Demóstenes comia areia, Shakespeare era um travesso em frangalhos, Edison etc.

Juan Peña cresceu em meio a livros abertos diante de seus olhos, mas que não lia, distraído pela tarefa da sua língua ocupada em tocar a pequena serra do dente quebrado – sem pensar.

E junto com seu corpo crescia a sua reputação de homem judicioso, sábio e “profundo”, e ninguém se cansava de louvar o talento maravilhoso de Juan. Em plena juventude, as mais belas mulheres tratavam de seduzir e conquistar aquele espírito superior, entregue a profundas meditações, para os demais, mas que na obscuridade de sua boca tocava o dente quebrado – sem pensar.

Passaram-se meses e anos, e Juan Peña foi deputado, acadêmico, ministro, e estava a ponto de ser coroado presidente da república quando a apoplexia o surpreendeu enquanto acariciava seu dente quebrado com a ponta da língua.

E dobraram os sinos, e foi decretado um rigoroso pesar nacional; um orador chorou em uma oração fúnebre em nome da pátria, e caíram rosas e lágrimas sobre a tumba do grande homem que não havia tido tempo de pensar.

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