Rafael Senra
Estrada perdida (1997), de David Lynch, é uma narrativa construída como uma fita de Möbius: um loop de identidade, desejo e violência que, à primeira vista, parece desafiar qualquer interpretação racional. A linguagem onírica e labiríntica do diretor (que muitos críticos definem de maneira simplista e anacrônica como sendo “surrealista”) não se aclimata bem em interpretações que se pretendam definitivas. A estrutura ambígua e fragmentada da maior parte dos seus filmes evoca o que Umberto Eco definiu como “obra aberta” – longe de oferecer significados fixos ou unívocos, é uma perspectiva semelhante a um jogo, convidando o espectador a participar ativamente da construção de seu sentido.
Através desse ensaio, proponho, portanto, uma via de entrada nessa Estrada perdida me valendo da metodologia da psicologia analítica junguiana, considerando aqui a narrativa de Lynch como amparada em uma realidade psicológica que se sobrepõe à lógica objetiva. Nesse sentido, o filme pode ser interpretado como a dramatização de um processo interno de cisão da personalidade, onde o ego, diante de conteúdos inconscientes insuportáveis, fragmenta-se para evitar a confrontação com a sombra.
A narrativa representada por Lynch nessa obra apresenta diversos desdobramentos que confundem o espectador acostumado a traçar elos racionais e objetivos. A chave para entrar (mais do que “decifrar”) o que está posto aqui é simbólica – ou, no caso deste ensaio, arquetípica. É possível ler o filme como a jornada psíquica de um homem diante daquilo que ele não suporta enxergar em si mesmo: seu fracasso diante do elemento feminino.
Apresentaremos no presente ensaio uma leitura simultaneamente estética e psicológica, buscando compreender a representação de uma crise pessoal como a expressão de uma estrutura imaginária mais ampla, que inclui diversos mitos, símbolos da tradição cinematográfica, além de idealizações arquetípicas universais a homens e mulheres.
Dissociação e o ego ameaçado
Em um primeiro momento, Fred Madison (Bill Pullman) parece amealhar para si uma aparente destreza libidinal invejável. Belo, elegante e bem-sucedido, com profundo domínio do saxofone (instrumento cujo significado fálico é totalmente pertinente para uma leitura psicológica de Estrada perdida), Fred é um músico de jazz com notável habilidade de expressão simbólica.
Apesar de sua persona supostamente cativante, o avanço da narrativa rapidamente mostrará que tantos méritos não impedem o personagem de se desconectar da própria libido. Por trás das aparências, Madison carrega a imagem de um ego diante do colapso. Não à toa, a primeira ação do filme envolve a cena em que Fred ouve no interfone uma voz que diz “Dick is dead” – a frase, que aparentemente tem a ver apenas com o personagem Dick Laurent, chama a atenção pela semelhança entre o nome próprio e a alcunha anglo-saxã do órgão sexual masculino.
A dicotomia entre o mundo dos palcos e o interior da casa de Fred é representativa do espaço exterior e interior da psique. Em sua interioridade, o músico tão hábil com o saxofone não consegue se comunicar em nenhum nível com sua mulher Renée (Patricia Arquette). Os diálogos levam ao nada, as frases entre ambos parecem soltas, os olhares não se tocam, e essa é a primeira das muitas estradas perdidas do filme. Esse desencontro psíquico entre marido e mulher reflete inevitavelmente em uma incomunicabilidade sexual. Fred se mostra impotente diante da bela esposa. O único afeto que a figura de Renée lhe evoca é um ciúme vagamente perturbador.
Diante da mulher real que lhe esvazia, ele busca maneiras de elaborar projeções, mesmo que sejam negativas. O ciúme, a impotência e a alienação de Fred em relação à esposa revelam um distanciamento da anima, o arquétipo do feminino que, para Jung, representa não apenas a figura da mulher exterior, mas a totalidade psíquica da alma no homem.
Psicologicamente, a tragédia de Fred em Estrada perdida permite também uma leitura dentro da psicanálise freudiana (e podemos até especular se a semelhança dos nomes Fred e Freud não seria assim tão gratuita). Não me parece incoerente evocar aproximações entre as metodologias de Freud e Jung, visto que o próprio Jung já declarou algumas vezes sobre como existem similaridades conceituais entre as duas linhas (há teóricos que dizem que a psicologia analítica complementa e aprofunda a psicanálise, mas isso mereceria um texto mais aprofundado).
Nesse sentido, Freud parecia ter se apropriado do conceito de arquétipo do Jung quando estabeleceu os deuses Eros e Thanatos como imagens das duas forças fundamentais que são a pulsão de vida e a pulsão de morte. A primeira (positiva) tende à união, à criação e à preservação; a segunda (negativa) se dirige à repetição, à dissolução e à aniquilação do sujeito. Essas duas forças não atuam separadamente, mas se entrelaçam, podendo uma infiltrar-se na outra.
Incapaz de realizar um gozo vital através do erotismo e da comunicação afetiva, Fred se vê à mercê da pulsão de morte, visto que essa dimensão não se configura apenas no desejo de cessação ou de silêncio, mas pode carregar também uma intensidade libidinal própria — um gozo obscuro, frequentemente ligado ao sadismo, à compulsão e à autodestruição. O gozo que Fred não encontra em Eros lhe é oferecido em Thanatos, através da chegada do personagem do “homem misterioso” (“Mystery Man”), que seria a personificação do arquétipo da sombra – ou o retorno do recalcado. Um recurso técnico que demonstra o caráter interior do personagem envolve a supressão da trilha sonora ambiente no momento em que Fred e o Mystery Man se encontram pela primeira vez, como se fosse realmente um evento mais subjetivo do que objetivo. Ainda nessa cena, podemos identificar na mão de Fred a tatuagem de uma meia lua, indicando que o personagem é realmente incompleto e cindido psiquicamente.

Em Estrada perdida, Mystery Man representa a Sombra absoluta: a instância arquetípica que observa, registra e ameaça. Sua presença indica que, por mais que o ego fuja, o inconsciente está ciente. Ele é o vigilante noturno da psique. Quando ele diz a Fred: “estou na sua casa agora”, o que se revela é o colapso das defesas psíquicas. A sombra está dentro. Esse personagem lembra a descrição junguiana do antagonista interior, muitas vezes demoníaco, que se apresenta quando a consciência está em desequilíbrio. Ele não é apenas o lado sombrio de Fred; ele é a força que conduz Fred ao inevitável confronto com a verdade – o assassinato de sua esposa.
O Mystery Man está ligado ao já citado personagem Dick Laurent, uma espécie de gângster que ganha a vida realizando filmes pornográficos. Aqui, temos um tema recorrente nos filmes de David Lynch: a representação do submundo urbano como espaço de uma sombra psíquica. Em Veludo azul, podemos ler a aparição de Frank Booth (Dennis Hopper) e seus capangas na mesma chave interpretativa do microcosmo de Dick Laurent em Estrada perdida.
A repressão compulsiva de Fred fica clara na cena em que dois detetives investigam os acontecimentos passados na casa do casal (quando Mystery Man invadiu o imóvel e realizou suas filmagens). Diante da sugestão de um dos detetives para que se instalasse uma câmera no corredor de entrada, Fred afirma que não gosta de câmeras, prefere lembrar das coisas a seu próprio modo. Aqui nos cabe citar nem tanto um psicanalista, mas um poeta brasileiro, Waly Salomão, que diz que a memória é “uma ilha de edição” – cuja analogia cinematográfica parece perfeita para o drama de um personagem que filma (involuntariamente) a própria desgraça.
O pico de dopamina tão esperado por Fred (ou o clímax sexual que tanto lhe assombrava) acaba por acontecer através de um colapso psíquico. A violência por trás do assassinato de Renée, para além de uma expressão de raiva, traz uma tentativa falha de recompor a unidade do eu, através da descarga pulsional de Thanatos sobreposto a Eros, oferecendo ao sujeito a miragem de um alívio que, no fundo, apenas aprofunda sua cisão interna. Quando Fred diz que prefere lembrar das coisas do seu jeito, ele está revelando o mecanismo de defesa do ego frente à realidade: a repressão e a fantasia. Isso prepara o terreno para a criação do alter ego Pete Dayton.
Dissociação como busca de novos caminhos
Seria simplista afirmar que Pete é a encarnação do que Fred gostaria de ser. Na verdade, o personagem que emerge na segunda metade do filme oferece uma compensação para várias das faltas de Fred. Um jovem, que detém funções sexuais saudáveis e intensas, sem repressões aparentes que paralisem sua libido aparentemente ilimitada. Em vez de um mundo permeado pela expressão simbólica, Pete trabalha em uma oficina, espaço que é associado no inconsciente coletivo como um local tipicamente masculino.
A fantasia de homem viril parece significar uma tentativa delirante de uma psique cindida buscando uma segunda chance. Mas, como a psicologia bem define, os conteúdos recalcados sempre encontrarão um modo de retornar à superfície consciente.
O primeiro indício dessa repressão transbordante ocorre na oficina, quando um colega de trabalho de Pete escuta no aparelho de som uma performance jazzística baseada em um saxofone virtuosístico e experimental – o mesmo tipo de som que Fred explorava na sua carreira de músico. Pete diz que aquele som lhe incomoda, e aqui o personagem certamente não está se referindo a seu gosto musical, e sim ao recalque que sustenta a estrutura de todo o mundo ao seu redor.
O processo da repressão se intensifica, novamente no espaço de performance da masculinidade idealizado da oficina: o surgimento da amante de Dick Laurent, Alice – na verdade, um duplo de Renée, um novo alter ego. A mulher de Fred ressurge reconfigurada como uma femme fatale, bem ao modo das representações típicas de antigos clássicos do cinema noir.
Nesse sentido, vale salientar como David Lynch explora em seus filmes representações da anima cujas imagens arquetípicas remetem à memória cultural do cinema e da TV. Em Veludo azul, a personagem Dorothy (Isabela Rosselini) carrega o nome da protagonista de O mágico de Oz, da mesma forma que ocorre agora com Alice (em referência à personagem de Lewis Carroll) em Estrada perdida. Ambas são mulheres que emergem do submundo, o espaço já citado nesse ensaio como sendo a dimensão simbólica do inconsciente. No filme Coração selvagem, temos também uma personagem femme fatale vinda do submundo, que é Lula (Laura Dern). Em um primeiro momento, podemos considerar que seu nome quebra o padrão de referências da memória cultural; mas precisamos considerar que David Lynch adaptou a versão cinematográfica de Coração selvagem do romance de Barry Gifford. De maneira mais sutil, Lynch enxerta a referência cinematográfica nem tanto no nome de Lula, mas na cena em que, ao ser assediada por Bobby Peru (Willem Dafoe), a personagem de Laura Dern bate os pés com o mesmo traquejo imortalizado pela personagem Mary Poppins.
Em todos esses filmes acima citados de Lynch, percebemos a repetição de um motivo: a dicotomia de um homem dividido entre uma mulher comum, “normal”, e, de outro lado, mulheres que assumem dimensões idealizadas. O mesmo papel de mulher “do lar” de Sandy (Laura Dern) em Veludo azul é ocupado por Renée em Estrada perdida (assim como Dorothy seria equivalente à Alice). A diferença no filme de 1997 é que Lynch não mais apresenta a dicotomia “normal/fantástico” em personagens diferentes. A mesma imago fenotípica aparece e reaparece com diferentes possibilidades arquetípicas.

Decorre disso a inversão proposta por Fred em sua dissociação psicogênica: ele, enquanto artista estabelecido, não se vê capaz de empoderar a própria esposa, de conceder a ela todos os méritos que ele atribui a si mesmo. Sua sombra, portanto, opera uma violenta recriação de mundo onde a assimetria se inverte: o artista Fred se torna o comum Pete, enquanto a comum Renée se torna a femme fatale Alice. Nos dois casos, o eixo assimétrico se impõe, e não há horizontalidade entre homem e mulher.
É diferente da dinâmica de Lula e Sailor em Coração selvagem, onde ambos são pessoas normais que se apossam de imagens arquetípicas (o cantor à la Elvis e a femme fatale), empoderando a si mesmos e vivenciando uma experiência erótica e afetiva horizontal e mútua. Em Estrada perdida, o homem que encarna em si as potências arquetípicas não consegue projetar isso na mulher. Sua fantasia psicogênica inverte a questão: esvaziar o arquetípico em si mesmo e projetar toda essa carga na mulher.
História que se repete como tragédia e como farsa
A desilusão de Pete ocorre no momento em que realiza um último sexo com Alice no meio do deserto, e, ao fim do ato, ouve sua amada dizer que é impossível possuí-la. Alice é a projeção da anima como sedução inatingível. Ela é a imagem da mulher que provoca e escapa – que convida ao prazer, mas nega a posse. Como se o inconsciente dissesse: “você deseja o arquétipo, mas não pode possuí-lo como se fosse uma coisa”.
A célebre frase “you’ll never have me” sela a impossibilidade de Pete de integrar o feminino a partir da fantasia. Afinal, para Jung, arquétipos são formas sem conteúdo, que só podem existir em nosso mundo a partir de imagens arquetípicas provisoriamente incorporadas por pessoas reais. Enquanto artista e enquanto ser humano, Fred/Pete fracassa porque não consegue simbolizar essas forças dentro de si. Ele tenta colocá-las fora, objetificá-las. E isso destrói tanto a mulher real quanto o seu próprio psiquismo. Ele insiste em ver as imagens como coisas, e não como símbolos.
O loop temporal que aprisiona Fred/Pete pode ser lido como um retorno perpétuo ao ponto de origem, à cena do crime e à própria dissolução do eu. Aqui inevitavelmente identificamos a ideia do Eterno Retorno proposta por Friedrich Nietzsche, ainda que esteja subvertida de sua carga afirmativa. Em vez de representar a aceitação jubilosa da vida como ela é, esse retorno ocorre como um pesadelo cíclico, uma repetição compulsiva da neurose que bloqueia a individuação.
Ao contrário do super-homem nietzschiano, que diria “sim” a tudo o que viveu, Fred é o sujeito da negação eterna, e por isso condenado a reviver eternamente aquilo que não foi capaz de integrar em sua psique. O eterno retorno, aqui, não é redenção – é prisão. É o castigo psíquico de quem não suporta encarar sua sombra. É a estrada perdida.