Marcelo Módolo e Henrique Braga
No campo da linguística, é bastante conhecida a correlação entre língua e recorte da realidade: as palavras não são rótulos postos sobre coisas que já existem, mas sim expressões da nossa forma de ver o mundo. Essa correlação ficou conhecida como hipótese de Sapir e Whorf. Ao estudarem as línguas indígenas da América do Norte, Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin Lee Whorf (1897-1941) chegaram à conclusão de que a língua não é “um instrumento de comunicação”, como afirmava a linguística estruturalista de então, mas sim um fator decisivo na formação da visão do mundo. O “mundo real” é construído, de maneira inconsciente, por meio dos padrões linguísticos do grupo humano a que se pertence.
Para exemplificar como isso ocorre, recorremos a um estudo do pesquisador Paulo Henrique de Felipe, que identificou interessantes correlações entre os termos que designam relações de parentesco e o modo como laços consanguíneos direcionam relações sociais no idioma mehináku (falado pelo povo de mesmo nome, no Território Indígena do Xingu). Em artigo publicado na revista Estudos Linguísticos do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo (GEL), o estudioso destaca, entre outros, os termos “paˈpa” e “mãˈma”, que nomeiam, respectivamente, “pai/irmão do pai” e “mãe/irmã da mãe” (em uma tradução aproximada para o português).
Entre o povo mehináku, portanto, “pai” e “tio” (desde que esse tio seja irmão do pai, não da mãe) formam uma mesma relação de parentesco: ao utilizar uma única palavra para se referir ao pai e ao tio paterno, a criança mehináku está assinalando, por meio de sua língua, que o irmão do pai também é seu pai, ou seja, que ele desempenha, na comunidade, a mesma função social de seu pai biológico. O mesmo ocorre com “mãe” e “tia” (desde que esta seja “irmã da mãe”).
Como se vê, os nomes não são “apenas nomes”: ao orientar nossa forma de ver o mundo, a língua dá sentido ao nosso modo de viver a “realidade”.
A invenção da “mudança climática” e do “aquecimento global”
Está em cartaz no Sesc Pompeia a exuberante exposição Amazônia. Com curadoria de Lélia Wanick Salgado, a exposição conta com fotos monumentais de Sebastião Salgado e com belos recursos audiovisuais. Entre eles, há vídeos com depoimentos de lideranças indígenas das regiões fotografadas, relatando dificuldades que lhes vêm sendo impostas pela ação dos não indígenas – inclusive na forma de políticas públicas.
Em um desses depoimentos, Afukaká Kuikuro, cacique do povo kuikuro, denuncia como agressões do “homem branco” à natureza têm gerado prejuízos imensuráveis à sobrevivência na/da floresta. A certa altura, falando dos efeitos danosos da ação humana, ele pondera: “o homem branco chama isso de ‘mudança climática'”.
É um rico exercício de alteridade tentarmos analisar essa expressão linguística sob a ótica indígena. O termo “mudança climática” chama atenção do cacique, ao que tudo indica, por soar conveniente, quase hipócrita. Sem fazer menção explícita ao ato de devastar e destruir o meio ambiente, adotamos regularmente um substantivo que expressa um processo, o que acaba por criar a impressão de que se trata de algo em curso natural, espontâneo.
Mesmo o termo “aquecimento global” pode ser visto nesse viés. Ainda que “mudança” e “aquecimento” possam ser (e no caso são) processos induzidos, o responsável por essa indução desaparece em ambas as expressões. Nessa ótica, não deixa de parecer desfaçatez do nosso mundo dizer aos indígenas que está havendo uma “mudança climática” ou um “aquecimento global”, quando o que temos é a destruição do meio ambiente.
Pode chamar de “Antropoceno”
O conhecimento científico de geólogos, arqueólogos, geoquímicos, oceanógrafos e paleontólogos já permite afirmar que entramos em uma nova era geológica, a qual vem sendo chamada de “Antropoceno”. O termo, ao incorporar o radical grego “antropo-” (“homem”), explicita os impactos da ação humana na crise climática atual, deixando claro o papel que temos – uns menos, outros bem mais – nesse atual estado de coisas. Segundo artigo de José Eustáquio Diniz Alves:
O Antropoceno representa um novo período da história do Planeta, em que o ser humano se tornou a força impulsionadora da degradação ambiental e o vetor de ações que são catalisadoras de uma provável catástrofe ecológica.
Com algum otimismo, porém, se o termo “Antropoceno” aponta explicitamente a responsabilidade humana em uma “provável catástrofe ecológica”, ele também pode nos mostrar a possibilidade de intervirmos nesse rumo. Ou, recorrendo mais uma vez à sabedoria de povos originários, podemos investir em “ideias para adiar o fim do mundo” – título do brilhante ensaio de Ailton Krenak, liderança indígena que precisa ser cada vez mais ouvida.
Texto publicado originalmente no Jornal da USP em 01.04.2022