Tradução de Miguel Forlin
Novembro de 2011, Madri
Caro Monte,
Foi-me pedido para escrever um cartão postal para você, o que aceitei com muito prazer, sob a proteção, como pode ver, de nosso velho amigo em comum, Boris Karloff, o melhor intermediário possível.
Poucas semanas atrás, eu finalmente pude assistir a “Caminho para o nada”, numa cópia em DVD. Gostei muito e fiquei gratíssimo por você ter citado “O espírito da colmeia” em suas imagens.
Pude sentir em “Caminho para o nada” o espírito de um jovem cineasta: desnecessário dizer, jovem de espírito, maduro em experiência e em plena posse de seus meios. É o tipo de filme que prefiro – uma produção modesta, mas ambiciosa no que é essencial: o compromisso radical entre autor e tema. Em “Caminho para o nada”, o tema não é outro senão a eterna canção, a relação entre o cinema e a vida.
Eterna canção em que o cinema se apresenta como a arte funerária par excellence, capaz de fazer os mortos retornarem do além, assim como na lenda, segundo a qual o Livro de Thot foi depositado por milhares de anos numa sepultura, do lado de Imhotep, sumo sacerdote enterrado vivo por um crime passional.
Num ato de redenção, também por amor, os filmes nos trazem de volta aqueles que já faleceram. Além de Sir Alfred Hitchcock, houve outro mestre desse mistério: Ardath Bey-Imhotep, uma das encarnações mais sublimes de Boris Karloff. Para isso, basta ver a foto que estou enviando, em que ele nos olha intensamente, enquanto sua lamparina a óleo ilumina a escuridão mais ancestral. Uma vez que sua empreitada amorosa fracassou (pois não queria salvar apenas o corpo de sua amada, mas sua alma também), ele foi reduzido a cinzas para sempre, junto ao Livro de Thot. Isso me faz lembrar de seu filme “Corrida sem fim”, em cujo último rolo os frames pegam fogo.
Talvez seja por isso que a imagem de Ardath Bey–Imhotep tenha aparecido para mim como uma palavra de ordem, reivindicando seu reinado sobre este cartão postal que estou escrevendo de um lugar eliminado dos mapas. Um lugar chamado Cinema, bem conhecido por você, para além de todas as estradas que levam para o nada.
Que você tenha saúde e muitos filmes a fazer no futuro.
Um abraço:
Victor Erice
O original pode ser encontrado aqui.