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Modernidade e loucura: razão, consciência e hipertrofia

Salvador Dalí, "Daddy Longlegs of the Evening - Hope!" (1940)
O Museu Dalí, São Petersburgo, Flórida, EUA

Jocê Rodrigues

Não há lirismo sem um grão de loucura interior 
Emil Cioran1

A esquizofrenia é o ponto mais baixo da doença mental, mas não pelos motivos propostos por enorme parte dos pesquisadores dos séculos XIX e XX, que a viam como um estado mental primitivo ou simplesmente deficiente. Com o aprofundamento dos estudos sobre a doença, tornou-se claro que a esquizofrenia é, na verdade, um transtorno mental que, com seus fenômenos incomuns, desafia a compreensão humana e que ainda hoje suscita mais perguntas do que respostas.

Entretanto, em meio a tantas dúvidas, surgem igualmente parcas certezas em relação ao estado singular de existência de quem dela padece.

O esquizofrênico está condenado a viver dentro de si mesmo, entre a fantasia e a realidade. A esquizofrenia transforma quem a possui em um habitante de uma zona crepuscular, sem qualquer linha demarcatória. Por conta dessa existência que se plasma entre o real e o fantasioso, o esquizofrênico pode ser considerado como o mais filosófico dos psicóticos.

Não é incomum, por exemplo, que eles nutram profundo interesse por temas metafísicos, ao mesmo tempo em que negam a realidade do senso comum. Não se importam com a verdade do mundo e seus detalhes inscritos no céu, nas nuvens, no vento ou na pupila que as observa. Para eles, o mundo que realmente importa é o mundo interior, trancado a sete chaves para as investidas da razão empírica. São quase como solipsistas, que acreditam que a realidade só existe quando criada por suas próprias consciências. Características que, curiosamente, são bastante próximas daquelas apresentadas pelo pensamento moderno.

Igualmente marcada por uma ontologia que tem como conclusão a negação da existência de um mundo compartilhado e a supervalorização de visões particulares da realidade, a modernidade (termo aqui usado em seu sentido amplo, para abranger também a chamada pós-modernidade) tem nas suas manifestações culturais, artísticas, literárias e intelectuais o seu principal testemunho. É nelas que inúmeras semelhanças com a condição esquizofrênica podem ser encontradas e, quando colocadas lado a lado, criam um mosaico que ajuda a compreender melhor a complexidade e a perplexidade dos tempos atuais.

Um dos primeiros a lançar luz sobre a relação entre o comportamento esquizofrênico e o modernismo foi o psicólogo clínico Louis Sass, que em 1992 publicou Madness and Modernism, um livro seminal que traz uma análise fenomenológica da esquizofrenia e traça paralelos inéditos com a obra de importantes nomes da arte e da literatura como Franz Kafka, Samuel Beckett, Paul Valéry, Giorgio de Chirico, Alain Robbe-Grillet, Salvador Dalí, entre outros.

Louis Sass, psicólogo e autor do livro Madness and Modernism

De acordo com Sass, os sintomas que denunciam a natureza esquizofrênica são marcados por dualidades, confrontos e contradições. Dualidades que, quando observadas de perto, “aproximam-se muito de um conjunto de contradições e paradoxos que são igualmente básicos para o pensamento moderno”. Para ele, esquizofrenia e modernismo apresentam semelhanças inegáveis e impressionantes, como fragmentação, relativismo extremo, autorreferencialidade, ironia e niilismo. Semelhanças, aliás, que não são meras coincidências, mas manifestações de uma crise cultural e existencial que marca a modernidade.

A arte moderna tem como modus operandi o desapego pela representação objetiva da realidade. Cada criador é livre para desconstruir o mundo e reconstruir subjetivamente a experiência humana sem qualquer referência à realidade objetiva. De modo similar, o esquizofrênico parece experimentar um profundo sentimento de alienação do mundo empírico. Em 1960, R. D. Laing arranhou a superfície dessa relação em seu livro The Divided Self ao afirmar que existe entre os escritores e artistas modernos um esforço para comunicar o que é a vida, sem se sentir vivo.

Outra característica que marca a ligação entre esquizofrenia e modernismo é o que Sass denomina de hiperreflexividade, compreendida como a tendência de se distanciar da ação, das emoções e do corpo para se concentrar na consciência e na linguagem. Essa forma de autoconsciência aguda funciona como uma defesa contra o caos e a angústia que ameaçam a identidade e a ordem do mundo. Entretanto, ela cobra um preço alto: a perda do contato com a realidade vivida, a alienação do eu e dos outros, e a dissolução do sentido do mundo.

A partir da porta aberta por Sass para o debate sobre um tema tão espinhoso e desafiador, outros pesquisadores puderam adentrá-lo com novas proposições e complementos. Talvez seja justo dizer que o posto de maior destaque entre eles deve ficar para o psiquiatra e filósofo escocês Iain McGilchrist, que há décadas se dedica a estudar o funcionamento dos hemisférios cerebrais e de como eles se relacionam com a formação da cultura e da mentalidade do que chamamos de Ocidente.

Com forte e declarada inspiração no trabalho pioneiro de Sass, McGilchrist defende, em The Master and His Emissary (2009), que a modernidade ocidental “tem muitas características que se sobrepõem à fenomenologia da esquizofrenia […] e afirmo que isso ocorre porque a modernidade simula não um estado de doença, mas um desequilíbrio hemisférico”. Ele concorda com a tese de que os sintomas do esquizofrênico não apontam para um desligamento da razão, mas justamente o oposto, como comenta em seu monumental The Matter with Things (2021): “o problema na esquizofrenia não é uma falha da lógica, mas exatamente o oposto: uma hipertrofia da faculdade lógica”.

Os posicionamentos de Sass e McGilchrist chamam atenção por conta da prudência com que ambos dirigem suas pesquisas. Em seus trabalhos não há uma exaltação do esquizofrênico como um herói ou um mártir torturado pelas condições culturais, políticas e sociais do seu ambiente. Tampouco há uma defesa ferrenha do aspecto puramente médico da condição esquizofrênica.

No caso de Louis Sass, o que existe é um esforço intelectual que tem como meta um diagnóstico e não a receita de um tratamento, até porque se trata de uma avaliação com matizes de ineditismo acerca de um vínculo que até hoje permanece pouco explorado, mas que fascina aqueles que se dedicam a pesquisá-lo.

Já Iain McGilchrist se utiliza da relação entre loucura e modernismo apenas como base para dar saltos maiores em direção a questionamentos ainda mais complexos e profundos, que envolvem temas metafísicos como os conceitos de propósito, significado, beleza e bondade, além de fazer um alerta consciente, parcimonioso e sem julgamentos sobre a possibilidade de se resgatar o sagrado em uma sociedade cada vez mais racionalmente hipertrofiada.


1 Emil Cioran, Nos cumes do desespero. Tradução de Jorge Melícias. Lisboa: Edições 70, 2020.

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