Bernardo Esteves é repórter na Revista Piauí, professor no Amerek (UFMG) e autor de Admirável novo mundo pela Companhia das Letras
Caio César Esteves de Souza: Bernardo, em primeiro lugar, muito obrigado pelo livro. O tema da ocupação humana da América tem uma bibliografia imensa, mas poucas vezes encontrei um livro de divulgação que desse uma visão de conjunto tão completa e complexa para o leitor não-especializado. Minha primeira pergunta tem a ver exatamente com isso. Você é jornalista, mas você também tem uma longa trajetória acadêmica, tendo feito doutorado em História da Ciência e das Técnicas e Epistemologia. Você poderia nos explicar como essa sua trajetória te leva a desenvolver uma pesquisa jornalística sobre o tema da ocupação humana das Américas durante dez anos?
Bernardo Esteves: Admirável novo mundo não é um livro acadêmico, é um livro jornalístico, mas o olhar que eu apresento ali sobre a ocupação das Américas está muito impregnado pelas leituras que eu fiz e pelos métodos que eu emprego nos estudos sociais da ciência, que é o campo acadêmico ao qual eu me filio. Um denominador comum para os meus dois campos de atuação, que são o jornalismo de ciência e os estudos sociais da ciência, é o interesse pelas controvérsias científicas. E o Admirável novo mundo pode ser lido como a crônica de uma grande controvérsia científica, que são as disputas em torno de quem foram os primeiros americanos e quando chegaram ao continente.
Nos estudos sociais da ciência, temos uma série de ferramentas para entender melhor as controvérsias científicas. No meu doutorado eu recorri a essas ferramentas para investigar o negacionismo climático, e no livro eu lanço mão de algumas delas para entender as brigas sobre a ocupação das Américas. O olhar que eu lanço sobre a controvérsia é muito influenciado pelo pensamento de autores como Bruno Latour, filósofo e sociólogo da ciência francês. Mas como se trata de um livro para o grande público, não fico citando referências teóricas a cada frase.
O livro pode ter camadas diferentes de leitura, que eu considero igualmente importantes. Ele investiga quem foram e quando chegaram os primeiros americanos, mas também como nascem e morrem as verdades da ciência, como os cientistas constroem consensos e validam seus achados. No primeiro nível, é um livro de divulgação sobre arqueologia, genética e as outras ciências que estudam a ocupação das Américas; numa segunda camada, é um livro de divulgação de história e filosofia da ciência.
O embrião desse livro é a matéria “Os seixos da discórdia“, sobre as controvérsias em torno dos sítios arqueológicos da Serra da Capivara, que saiu em janeiro de 2014 na Piauí. Passei boa parte do segundo semestre de 2013 fazendo pesquisa para essa reportagem. Fui à Serra da Capivara e a Santa Fé, nos Estados Unidos, onde aconteceu um congresso sobre a ocupação das Américas que reuniu os principais especialistas do campo. Eu estava trabalhando nessa apuração ao mesmo tempo em que estava lendo sobre a sociologia das controvérsias para o doutorado. E esses conceitos pareciam muito apropriados para explicar a controvérsia em torno da antiguidade humana nas Américas.
CS: Faz todo o sentido que seu doutorado seja sobre controvérsias, porque o que vemos no livro é justamente uma série de controvérsias sobre a ocupação humana do continente. Inclusive, acho interessante como muitos dos debates arqueológicos que você apresenta saem do campo acadêmico mais restrito e atingem o grande público. Quanto que essa dimensão pública do debate arqueológico não acaba modificando o próprio debate acadêmico sobre o tema?
BE: Em certa medida, a arqueologia é uma ciência mais acessível do que outras. Os físicos, por exemplo, têm lá suas controvérsias em torno de temas como a matéria escura, a energia escura ou a incompatibilidade entre a mecânica quântica e a teoria da relatividade, mas o leitor leigo não vai conseguir passar da terceira ou quarta linha dos artigos técnicos em que essa controvérsia está se desenrolando. Já os papers de arqueologia são mais acessíveis, você consegue acompanhar os conceitos e argumentos, mesmo que seja difícil interpretar os resultados e suas implicações se você não tiver familiaridade com a área. Além disso, a controvérsia da ocupação das Américas mexe com questões que interessam a todo mundo, que é de onde a gente vem, e há quanto tempo está aqui, e que a arqueologia pode ajudar a responder.
Outro fator que ajuda a atrair o interesse para essa questão é o fortalecimento da bandeira pela decolonização da ciência e do pensamento, que está fazendo com que nós, brasileiros e sul-americanos, estejamos revisitando a nossa história e, nesse caso, a nossa história profunda – que é o termo que eu prefiro usar no livro, alinhado com muitos autores que entendem que o termo “pré-história” não é adequado para designar o período anterior à chegada dos colonizadores europeus às Américas. E Admirável novo mundo conta a história de como os arqueólogos sul-americanos estão se libertando dos paradigmas sobre a ocupação do continente que eram impostos pelos colegas da América do Norte.
CS: E até sobre isso, uma coisa que eu achei interessante foi que você comenta como alguns paradigmas vão perdendo força com o tempo e com o surgimento de novas técnicas de pesquisa. Um caso que me interessou bastante no livro foi o do Walter Neves, que é muito respeitado, tem uma importância que é inegável no campo. Mas o paradigma dele passa a perder força a partir do momento que o DNA antigo passa a ser mais estudado. Eu fiquei curioso para saber como os cientistas que formularam hipóteses que não resistiram ao tempo reagiam diante de um jornalista como você, que busca entender o atual estado do campo. Você vê uma resignação, uma aceitação do que ocorreu, do desenvolvimento do campo, ou você nota ainda uma resistência e uma tentativa de defesa das suas hipóteses à revelia dos pares?
BE: O Walter Neves viu os estudos genéticos questionarem e desbancarem o modelo de ocupação das Américas que ele construiu ao longo da carreira. Ele fica muito contrariado com a proeminência que o DNA antigo ganhou no debate, e reagiu a isso com amargura e resistência. Ele aponta que há muita incerteza nos dados, e não está totalmente errado. Ele segue obstinado com a sua hipótese e ainda acha que vão provar que seu modelo está correto.
O livro não pretende fechar um debate que está em aberto. De fato há incerteza nos dados genéticos, mas não acho provável que o modelo dele seja reabilitado um dia por alguma reviravolta. No entanto, ele parece convicto disso, e dá para entender por que ele não quer jogar a toalha: ele dedicou parte da trajetória acadêmica para elaborar uma ideia que está sendo descartada pelos estudos genéticos.
CS: Eu queria te pedir para comentar um pouco essa posição atual do DNA antigo como uma espécie de VAR da arqueologia. Para leitores leigos, parece que o DNA antigo apresenta um dado absolutamente inquestionável e que ele responde todas as perguntas. E, na verdade, é um método com muitas limitações, como você demonstra no livro, mas que também contribui imensamente para o campo. Então eu queria pedir para você comentar um pouquinho só essa posição do DNA
antigo hoje no debate.
BE: Acho que o DNA antigo vai ser o fiel da balança da resolução da controvérsia sobre a ocupação das Américas, por mais que alguns arqueólogos sejam reticentes em relação à centralidade que essa ferramenta vem tomando no debate. Em última instância, a arqueologia é quem pode validar ou não um determinado sítio e, portanto, consagrar ou derrubar um paradigma. Nesse sentido, a genética é mais uma opção na caixa de ferramentas do arqueólogo, ao lado da datação por carbono-14, da análise de sedimentos e de tantas outras que o ajudam a reconstituir a história antiga. O DNA antigo revela informações sobre as populações do passado que antes estavam inacessíveis, mas só conta um pedaço da história.
Como diz o Thomaz Pinotti, geneticista que entrevistei em algumas ocasiões e que me sugeriu o título do livro, os geneticistas têm que aceitar os consensos dos arqueólogos, mesmo que sejam incompatíveis com os da genética. Se os arqueólogos disserem que os sítios de 40 mil anos na Serra da Capivara são válidos, os geneticistas têm que incorporar isso a seus modelos. No final, como disse o André Strauss, um arqueólogo que entrevistei várias vezes para o livro, quem vai dar a palavra final da controvérsia são os arqueólogos. Mas eu acho que dificilmente ela estará em desacordo com os resultados da genética.
CS: Eu queria te pedir para falar um pouco sobre a dimensão ética que vem associada tanto à arqueologia, no que diz respeito aos restos humanos encontrados, quanto à genética, sobre o material genético colhido de populações indígenas atuais. Você discute no livro o debate sobre a destruição ou não desse material após a morte das pessoas de quem eles foram coletados, por respeito à cosmovisão dos povos indígenas. Eu queria entender como que você percebe hoje essa dimensão ética sendo trazida para o debate. Ela está sendo percebida como um empecilho por parte dos cientistas, ou ela está sendo percebida como uma parte constitutiva do campo? E queria saber também sobre como os povos indígenas com os quais você conversou percebem essa questão e lidam com ela.
BE: Esse olhar cuidadoso e atencioso para os interesses e as subjetividades dos povos indígenas veio para ficar. Eles são os descendentes dos grupos humanos que os arqueólogos estudam, cujos remanescentes foram escavados nos sítios arqueológicos. Esse cuidado e atenção são inseparáveis do jeito de se fazer ciência hoje e andam de mãos dadas com o esforço pela decolonização da ciência.
O jeito como se fazia ciência no passado objetificava os povos indígenas e era totalmente alheio aos interesses desses povos. Veja o caso do Aleš Hrdlička, um bioantropólogo norte-americano que foi muito influente no começo do século passado. Ao deparar com remanescentes humanos em suas escavações, ele olhava para aquilo só como um objeto que poderia ajudá-lo a resolver problemas científicos, sem parar para pensar nos significados desses remanescentes para os indígenas que descendem daqueles grupos. Um indígena norte-americano disse certa vez que a atitude dos cientistas que escavam remanescentes humanos sem consultar os povos originários é o equivalente de alguém violar os túmulos do Cemitério Nacional de Arlington, nos arredores de Washington, onde os militares norte-americanos enterram seus mortos. É impossível não estar atento a essas questões quando se faz arqueologia e genética no século XXI.
Você perguntou se tem quem veja isso como um empecilho. Hoje, acho difícil encontrar algum pesquisador que admita isso publicamente. Mas nem sempre foi assim. Eu discuto no livro o caso do Francisco Salzano, geneticista brasileiro, falecido em 2018. Ele coletou amostras biológicas de povos indígenas brasileiros dos anos 1950 aos anos 1990. E fez ciência com os critérios do tempo dele, com a mentalidade que os colegas tinham. Salzano é um monumento da genética brasileira, uma figura importantíssima. Ele geralmente era admirado pelos povos indígenas que estudava e agiu no interesse deles. As amostras que ele coletou constituem um biobanco na Universidade Federal do Rio Grande do Sul que tem potencial valiosíssimo para a ciência. Mas não acho que os cuidados que ele tomou para essa coleta, que talvez estivessem adequados aos padrões que a ciência da época adotava, estejam alinhados com o nosso jeito de olhar para essa questão hoje. Mas há pesquisadores que continuam querendo fazer ciência com essas amostras.
Hoje, não dá mais para pensarmos simplesmente que, já que o material está coletado e o dano já foi feito, podemos continuar utilizando sem maiores preocupações. Em 2003, o Salzano publicou um artigo argumentando que seria uma pena se a ciência não pudesse estudar aquelas amostras que ele coletou com novos métodos de análise genética que não existiam na época que essas coletas foram feitas. Mas essa possibilidade nunca foi conversada com os povos e indivíduos que forneceram esse material genético.
A questão da imortalização das células, por exemplo, é um ponto central nesse debate, porque é uma afronta aos princípios éticos e morais desses povos. Amostras de sangue de indígenas brasileiros coletadas nos anos 1980 deram origem a linhagens celulares imortalizadas sem que eles fossem claramente informados sobre isso, e estão sendo estudadas com técnicas que não existiam na época da coleta. Essas amostras levaram a descobertas importantes sobre o perfil genético dos primeiros americanos, mas que não levaram em conta os interesses dos indígenas. Diferentemente do que defendia o Salzano, eu acho que não dá para continuar usando essas amostras sem envolver os povos indígenas na conversa. Hoje em dia, talvez haja pesquisadores, sobretudo da velha guarda, que enxergam isso como empecilho, mas não vão dizer isso em voz alta, porque eles entenderam em que direção o vento está batendo.
A Rosanna Dent, uma historiadora da ciência americana que estudou as coletas de sangue indígena feitas pelo Salzano, propõe uma saída para esse impasse que me parece razoável. Para essas amostras que já estão colhidas, por vezes há 40 anos ou mais, a solução é voltar aos povos indígenas, explicar as circunstâncias nas quais elas foram colhidas, deixar claro que hoje a gente entende que o uso dessas amostras é mais problemático do que os colegas que coletaram lá atrás entendiam, e perguntar se eles estão confortáveis com os usos que queremos dar a essas amostras hoje.
No fundo, o que vai mudar a atitude dos cientistas em relação a essa questão é a mudança geracional. Os jovens arqueólogos e os novos geneticistas já não fazem esse tipo de estudos sem antes consultar os povos indígenas. Eles precisam ser consultados se você vai fazer uma escavação num território em áreas que hoje são habitadas por indígenas. É preciso cuidado especial no caso de se encontrarem remanescentes humanos. É preciso conversar com quem pode ser descendente desse povo, explicar o que você quer fazer com os remanescentes e perguntar se eles estão confortáveis com a ideia da exumação do cadáver e de seu estudo pelos cientistas.
A geração do Salzano acreditava que a busca por um conhecimento universal, que tinha por base os interesses da ciência, deveria sempre prevalecer. Isso por vezes servia como um álibi para se passar por cima dos interesses de um povo. Já a geração atual de pesquisadores tem um entendimento diferente de que os interesses dos povos envolvidos têm de prevalecer. Se eles não querem que um estudo seja feito, a pesquisa não irá adiante. O Eske Willerslev, geneticista dinamarquês que coordena um dos maiores laboratórios de DNA antigo do mundo, entendeu isso. Quando pretende extrair DNA de fósseis humanos, antes disso ele vai conversar com os povos indígenas que podem ter algum parentesco com a população à qual pertence o indivíduo. Se os indígenas não quiserem que seu material biológico seja estudado, ele não será. Com isso a ciência talvez fique sem resposta para algumas perguntas, mas esse é um preço razoável a se pagar para se fazer pesquisa alinhada com a ética.
Eu me alinho muito com essa nova geração de pesquisadores que entendem que a ciência tem que estar alinhada com os interesses dos povos indígenas e a partir de muita conversa e muita escuta. E o resultado dessas conversas pode ser complexo. Os Paiter-Suruí que eu entrevistei para o livro, por exemplo, dizem que gostariam de saber quem são os seus ancestrais e, se essa pesquisa trouxer luz sobre a sua ancestralidade, eles têm interesse em colaborar. Ao mesmo tempo, eles entendem que, quando um de seus parentes morre, seu corpo e seus objetos devem ser enterrados, seu nome deixa de ser falado. Portanto, é inaceitável a ideia de que um laboratório na Europa possa ter suas células se reproduzindo eternamente ao mesmo tempo em que eles têm tanto cuidado em respeitar a morte dos antepassados. A busca pela sua ancestralidade vale esse custo? Não há uma opinião única entre os indígenas, isso tem que ser muito discutido caso a caso.
CS: Bernardo, para encerrar, eu queria saber se você já tem algum outro projeto engatilhado, se você pretende continuar lidando com esses temas e qual será o próximo passo para você.
O meu interesse pela arqueologia continua muito vivo. Publiquei recentemente na Piauí um perfil do arqueólogo Eduardo Neves, nome de referência no estudo do passado profundo da Amazônia. Ele já tinha sido entrevistado para o livro, leu o manuscrito antes da publicação, apontou erros e deu contribuições valiosas para o texto final. Fazendo esse perfil, fiquei muito fascinado pela forma como ele e outros colegas estão reescrevendo a história da ocupação da floresta. Ultimamente, ando muito interessado por esse tema específico, que tenho estudado e no qual pretendo me aprofundar. Se vai sair um livro daí, é cedo para dizer.