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Um ônibus em direção ao caos

© Pxfuel

Rodrigo Barcellos Hoff

Inebriante chacoalhar, estradas de asfalto, estradas de terra. O cheiro de roupas molhadas, de mofo, tudo coberto precariamente com camadas de algum pinho barato. De novo está chovendo, o vidro das janelas do ônibus está embaçado e fico observando o perfil fractal dos pingos que caem no vidro e que são prensados e transportados pelas forças gravitacionais, pelos algoritmos ditados pelo atrito e a aceleração. Imagino que alguma equação extremamente complexa possa definir e prever quais gotas vão percorrer com esta ou aquela velocidade a superfície do vidro, quais irão colidir e se fundir, qual será o padrão desses movimentos serpentinos. Uma equação sobre-humana, que nunca será elucidada, nunca será exposta nem interpretada. Mais um segredo natural à vista de todos, mas simultaneamente oculto. Para nossas limitações, simples caos e aleatoriedade; para a realidade, um singelo resultado matemático.

Algumas gotas penetram nas frestas da janela, pelas falhas das borrachas de vedação velhas, e começam a se acumular, molhando a horrenda cortininha-modelo desses ônibus de padrão intermediário, certamente pensados para passageiros sem muita opção, sem muito dinheiro e sem muitas expectativas. Não consigo manter meus olhos abertos. Me esforço nesse sentido, penso que estou tendo sucesso, mas na verdade a paisagem chuvosa que passo a ver já não é mais deste mundo, já é onírica, já estou dormindo de novo. Forço meus olhos uma vez mais. O ciclo se repete mais algumas vezes, não sei dizer quantas. Enfim tomo uma decisão com um pouco mais de energia e firmeza e, além de abrir os olhos, me remexo na poltrona, me espreguiço um pouco e tomo um pouco de água para tentar espantar o sono. Pego minha mochila e remexo um pouco nas minhas coisas buscando um chiclete, uma bala. Tenho certeza de que tinha pelo menos uma meia embalagem de Trident de hortelã por aqui. Nada. Bom, por enquanto o negócio é aguentar esse gosto de sono e de baba ressecada na boca. Que horas será que são? Parece que já é quase noite, mas a chuva está tão forte e o céu tão escuro que pode ainda ser quatro ou cinco da tarde e mesmo assim parecer noite. Pela janela a água escorre com violência e só o que consigo discernir são relances de pastagens escuras e algumas luzes de casas aqui e ali. Faz tempo que o ônibus não faz nenhuma parada. Ninguém sobe, ninguém desce. A estrada agora parece bem melhor, não temos solavancos e o ônibus parece deslizar numa velocidade absurda, mas acho que é só a impressão causada pela água na pista, que reduz o atrito do contato dos pneus com a estrada. Parece perigoso, mas o motorista não alivia o pé e segue em velocidade constante. Debaixo da camada de barulhos do motor e da chuva, escuto o choramingo baixo e sem muita convicção de algum bebê. Parece vir do fundo do ônibus. Da parte da frente do veículo, escuto trechos de uma conversa entre dois homens, o som chega ininteligível, somente de vez em quando consigo definir uma que outra palavra: provavelmente “barbaridade” e talvez “inacreditável”. Talvez. De vez em quando um dos homens ri e a risada parece cascalho sacudindo dentro de uma lata. Um tabagista inveterado? Não sei dizer. Pelas trepidações nas vozes, penso que são dois idosos. Enfim, quanto mais me sinto acordado, mais forte vai desabrochando a sensação de tédio. Aquele tédio das viagens que parecem intermináveis. Sinto uma certa vontade de mijar, mas ainda falta muito para que seja uma vontade robusta o suficiente para me fazer levantar daqui. Não deveria ter tomado remédios para dormir de novo. Me sinto embriagado e com ressaca ao mesmo tempo, o pior dos mundos.

Às vezes, tenho a impressão de que passamos por um povoado, ou algum bairro periférico de uma cidade industrial e operária. Mas é sempre noite, ou está muito nublado ou então chove forte. Dificilmente percebo quando o ônibus para nessas estações. O mais comum é que acorde quando ele voltar a arrancar e só consiga perceber remotamente que alguém acabou de embarcar ou desceu naquela estação. São lugares ermos, periféricos, sombrios, turvos. Parecem mais estar no leito do mar, parecem fossas abissais habitadas por velhos, crianças com aspecto de doença. Mas não vejo casas nesses lugares, nem de relance, o que ressalta são os galpões industriais, as grandes fábricas abandonadas, as ruínas industriais de um mundo decomposto, que posso perceber somente pelo perfil das construções contra o fundo de escuridão e de umidade. Entre um e outro arremedo de edifício residencial que parece ter séculos, terrenos baldios horrendos com capim alto, de cor cinza ou palha, nunca verde. Sempre tudo muito escuro, iluminado por lâmpadas amarelas, de um tipo que eu julgava não existir mais. Às vezes, costumo também sonhar com esses terrenos baldios. Com as carcaças de tratores e bancos podres de carros antigos que apodrecem e oxidam em meio ao desolamento do capim encharcado. Existe lugar mais horrível que um terreno assim?, onde a natureza parece aderir com paixão ao aspecto de decaimento dos homens e se torna igualmente feia, perigosa e decadente.

Lembro que uma vez, quando era criança, andava de bicicleta por terrenos assim e, em uma ocasião, caí por haver batido contra os restos de um cavalo morto, que agora nada mais era que uma carapaça de couro apodrecido que ainda teimava em cobrir o que restava dos ossos, com pequenos pontos brancos surgindo ali e aqui, como uma roupa velha cheia de furos. Não era possível ver a carniça devido ao capim alto e, quando a bicicleta acavalou, eu caí. Rá, acavalou no cavalo morto. Não deixa de ser irônico, suponho. Talvez alguém ache graça. Enfim, quando caí, não caí em cima dos restos do que um dia havia sido um cavalo, mas sim em cima de um resquício de tronco de uma árvore que existiu ali um dia e que foi cortada quase rente ao chão, mas deixando um toco residual de, estou chutando, uns 15 centímetros de altura. Caí com o peito diretamente em cima desse tronco. Se ele fosse mais estreito, se tivesse um raio algo menor, talvez tivesse me atravessado o esterno e tudo terminaria ali mesmo, num terreno baldio, um dos lugares mais feios de toda a terra. Poderia ter morrido ali, talvez quase de imediato, se o tronco atingisse diretamente o coração, ou talvez em lenta agonia. Poderia ser que alguém ouvisse meu grito e chegasse a tempo de me socorrer. Mas duvido, o terreno era cercado por outros terrenos tão pavorosos quanto ou por casas de veraneio que estavam vazias. Na rua, dava para sentir o cheiro de mofo que saia pelas frestas daquelas portas e janelas. Era baixa temporada. Baixíssima talvez fosse o termo mais adequado. Uma umidade pegajosa e cobria tudo como um plástico filme. O capim alto não permitiria que alguém vislumbrasse nem corpo nem bicicleta na rua mais próxima, que era de chão batido e, naqueles dias, de pouquíssimo movimento. O fato, porém, é que não morri. O tronco era muito grosso, havia sido uma árvore enorme. Acredito que uma árvore ali não poderia mesmo ser tolerada, teria de ser removida obrigatoriamente, ainda mais se verdejante ou florida, daí seria uma afronta contra a feiura do local. Inadmissível um sinal de vida, um símbolo de perseverança, onde só deveria reinar o decaimento, a involução, o fim de todas as coisas. Às vezes, nesses terrenos, eu fantasiava que o mundo tinha acabado há muito tempo, que os homens já não caminhavam sobre a terra e que aqueles objetos que eu habitualmente via por entre o capim podre – os cacos de vidro, as tampas de garrafa cobertas por ferrugem, os pedaços de plásticos já leitosos, rasgados e desfigurados, as chaves, parafusos e pregos -, tudo isso eram vestígios de um povo que viveu e morreu ali, detritos de uma civilização extinta. Mas estou me distanciando do tema. O tronco: caí por cima de um tronco escondido na vegetação, projetado a partir de uma bicicleta Monark cross amarela e vermelha, que teve sua trajetória interrompida pelos restos de um cavalo morto, uma múmia equina que jazia ali despercebida e insepulta. Injusto dizer que o tronco me atingiu. Fui eu que me lancei contra a triste figura, fui eu que golpeei violentamente o tronco lenhoso com meu esterno. Eu era o elemento agressor que, para cúmulo da ofensa, aos onze ou doze anos ainda parecia uma manifestação da vida, cuja simples presença feria aquele lugar, que só desejava se degradar e disfrutar da entropia em paz. 

Na hora do golpe, todo o ar que eu tinha no corpo se esvaiu. Me vi anulado, como se tivesse caído o disjuntor geral que mantém qualquer corpo coeso. Demoraram alguns longos instantes para que eu conseguisse aspirar um ínfimo fio de ar, que parecia somente o mínimo necessário para que não desmaiasse, o equivalente ao reacender daquelas velas mágicas de aniversário logo após serem sopradas pela primeira vez: a expectativa infantil e a incerteza do retorno da chama. Com uma lentidão assombrosa e respirando por um apito frágil, sibilando de modo agônico, fui me reerguendo com extrema dificuldade, peguei a bicicleta e fui me arrastando num slow motion quadro a quadro em direção à rua. Não havia ninguém. Nenhuma pessoa que pudesse me ajudar. Me senti aliviado, pois sentiria mais vergonha se alguém tivesse presenciado a cena; seria muito pior se outra pessoa tivesse assistido àquele vexame. Preferia a dor e a agonia do que ser visto naquela condição. Fiz um esforço supremo para caminhar até a minha casa arrastando vagarosamente a bicicleta. Inimaginável tentar subir e pedalar naquela condição. Fui desejando ardentemente todo o tempo que nenhum conhecido, nenhum amigo, nenhum colega da escola, nenhum amigo da minha família passasse e viesse puxar conversa ou qualquer coisa; procurei caminhar por ruas secundárias, imundas pelo barro e ladeadas por valetas de esgoto com suas águas espumosas e com cheiro remetendo à anfíbios. Me concentrava única e exclusivamente na minha respiração, que pela primeira vez na vida havia se tornado uma tarefa complicada que demandava comprometimento e esforço hercúleo, uma concatenação muito ajustada de diversos sistemas do organismo e cujo resultado era só o suficiente para evitar a falência.

Depois de um tempo que parece terem sido dias, cheguei até a minha casa. Naquela época, vivíamos numa casa que não tinha muros nem grades, somente um longo e malcuidado gramado, com a pequena casa no fundo do terreno. Cheguei sem fazer ruído, vi que a porta estava aberta. Deixei a bicicleta no alpendre como sempre fazia, entrei e vi que minha mãe estava lendo deitada no sofá. Com muita dificuldade, dei um oi e consegui fingir que tudo estava normal. Resgatei alguma força de algum lugar muito profundo de mim mesmo e disse que ia subir e me deitar para ler gibis. Ela concordou com um sorriso, acostumada que estava com meu entra e sai de casa diversas vezes ao dia, entre passeios de bicicleta e intervalos em casa. Subi a escada de madeira me apoiando no corrimão, o chiado se intensificando. Sibilava em ritmo curto, errático e certamente ineficiente. Achei que ia desmaiar no meio da escada, mas cheguei até a cama. Me deitei em decúbito dorsal e ali fiquei por horas, me concentrando em tentar aumentar pouco a pouco o volume de ar que conseguia puxar. Assim permaneci por um longo tempo, que não sei precisar; em algum ponto desse processo adormeci. Acordei bem melhor, a respiração estava mais profunda e produtiva, mas agora a dor havia se intensificado no peito, era de um tipo mais ósseo, mais muscular. Com esforços inacreditáveis, mantive uma aparência de vida normal, até a hora de dormir. Desci, jantei, conversei. Como se tudo estivesse normal. No dia seguinte, ao acordar e ir ao banheiro, me contemplei no espelho. O hematoma que havia se formado parecia uma espécie de mandala, de tão perfeita que era a forma arredondada, um novo chacra em púrpura. Me lembrei da HQ de origem do Homem de Ferro, em que ele instala aquela roda no peito. Era de um roxo profundo com algumas nuances amareladas nas bordas. Ainda bem que o verão havia se ido e poderia facilmente controlar as coisas para que ninguém visse aquilo. Fiquei em silêncio absoluto sobre o assunto, nunca disse nada, nem para meus pais, nem para ninguém. O medo de ser repreendido, de ter de escutar lições e ter de encarar sanções e restrições era mais forte do que a dor.

Enfim, desculpem se me distraio. Devem ser os remédios. Em suma, esse é o mundo dos terrenos baldios, das casas mortas, dos galpões industriais fossilizados. Em alguns momentos, eu tenho clareza absoluta de onde estou, sei onde embarquei e sei para onde estou indo e o que devo ou quero fazer quando chegar lá. Mas logo em seguida aquilo se desvanece e ter de pensar sobre isso, tentar reter as lembranças, se torna difícil, fugidio. Sabe quando você acorda e lembra vividamente de um sonho? E, em seguida, ao menor movimento, aquilo se desbota, se esfumaça no nada, ficando só uma sensação mas não lembranças de fato? Assim estou nesse exato momento; não sei se estou nesse ônibus há horas ou há semanas. Não lembro. Ou melhor, parece que daria na mesma. Acho que quando comer alguma coisa mais substancial, der uma caminhada, o efeito dos remédios vai passar e esse embotamento vai dar lugar a uma lucidez matutina, uma determinação férrea de seguir, de concluir a viagem, de batalhar pelas minhas metas. Mas agora, nesse preciso instante, o que eu quero, não, do que necessito, é dormir um pouco mais. 

Acordo bem depois, me sentindo vagamente mais animado. Reina silêncio no interior do veículo, não há vozes, nem ruídos humanos de nenhum tipo. Nenhuma sacola sendo manuseada, nenhuma poltrona rangendo, nenhuma boca mastigando salgadinhos fedidos. Tenho a nítida impressão, mesmo sem olhar, de que há bem menos passageiros. Onde desceram? Será que dormi tão profundamente que não percebi alguma parada? O tempo continua feio, mas pelo menos há uma espécie de luz alaranjada lá fora e tento me distrair lendo as poucas placas e outdoors de propaganda ao longo das paisagens, agora mais campestres do que antes. Mas as placas parecem antigas, a maioria parece estar desbotada, dificilmente consigo ler ou definir alguma coisa. Tem algumas que se repetem mais do que as outras, numa delas uma mulher vagamente camponesa leva uma fruta até a boca, parece um morango, mas o tamanho é desproporcional. Há junto um letreiro, um logotipo em amarelo e azul, mas não consigo ler. Não me lembro de ter visto essa marca em nenhum outro lugar. Deve ser algo regional, uma marca popular por aqui, mas onde será aqui? Não consigo nem ver com certeza se está em português ou espanhol. De repente, me surge a convicção de que não estou no Brasil, em algum momento parece que atravessei a fronteira. Será que foi por isso que o ônibus se esvaziou tanto? Paramos em algum posto alfandegário? Como me deixaram entrar em outro país sem a tradicional conferência de documentos, emissão de guias, carimbos? Dormia tão profundamente que me esqueceram? Onde estaríamos agora? Uruguai, provavelmente. Mas poderia também ser Argentina. Não consigo lembrar agora, ainda com a cabeça entre dois mundos, misturando cenas da estrada com cenas de sonho.

De novo, mais um outdoor da camponesa. O que será que ela anuncia? São mesmo morangos? A camponesa parece apática, o desenho é péssimo, ou eu não estou enxergando direito, provavelmente as duas coisas. Tenho algum problema com esse tipo de placas, tenho uma espécie de dislexia para imagens. Durante muitos e muitos anos, acreditei que o rótulo da cerveja Antarctica era o rosto do Homem-Aranha e só quando já era quase adolescente, por causa de um comercial na TV, me dei conta que eram dois pinguins. O choque foi incrível. Uma coisa que sempre acreditamos entender de uma forma de repente se transforma perante nossos olhos em outra totalmente diferente. Será que ainda faço isso? Será que não é isso o que estou fazendo exatamente agora? Será que isto aqui onde estou é mesmo um ônibus? Será que quando alguém me mostrar a realidade, me dizer, “isso é um túmulo, isso é um necrotério, isso é uma sepultura, isso é uma fossa abissal”, tudo não vai ficar claro de um instante ao outro? Não me sentirei um idiota por não ter enxergado o que é tão claro, o que é tão gritante?

De repente, me lembrei de que tinha Satie e De Hartmann no velho Ipod shuffle. Pareciam perfeitos para o momento. Achei facilmente o dispositivo na mochila, mas estava sem bateria. Estava mesmo mais do que hora de essa viagem acabar. Como eu ainda tinha aquele Ipod? Como era possível que ainda funcionasse? E meu celular? Onde está? Lembro-me com certeza de que tenho um, mas não sei como ele é, modelo, tamanho, megapixels, terabytes. Bem, nada de música. Já era hora de ir ao banheiro; do nada lembrei que tinha uma bexiga e que ela chegava ao seu limite fisiológico. Acumulava energia potencial para vencer a inércia e ir ao banheiro quando bruscamente o ônibus virou à direita, entrando em um trecho esburacado para logo em seguida frear. Surpreso com o novo estado das coisas, me espantei mais ainda quando o motorista abriu a porta que o separa da área dos passageiros e anunciou em alto e bom som, olhando-me diretamente nos olhos: “parada de 30 minutos”.

Incrédulo e – confesso – até um pouco nervoso, vasculhei a mochila em busca da minha carteira. Uma vez que a achei, enfiei no bolso do casaco. Procurei mais um pouco pelo celular que possivelmente devo ter, mas não achei nada. Quando começava a elaborar estratégias de manter minha mochila em segurança ou decidia se descia com ela, percebi que não havia mais ninguém no ônibus. Deixei minha mochila da forma como estava e desci do ônibus. O motorista já havia feito igual e eu o havia perdido de vista. Desci os degraus do ônibus com certa vertigem; parecia fazer muito tempo que não usava as pernas e tinha de reaprender a mecânica da locomoção. No exterior do ônibus, o ar era frio e úmido, a luz alaranjada que permanecia no céu parcialmente nublado não anunciava suas intenções: poderia ser o prenúncio do nascer do sol, poderiam ser as luzes do ocaso.

O paradouro não destoava do restante do ambiente. Era decente, pequeno, com aquele ar de decadência que eu vi durante toda essa maldita viagem. Além do nosso ônibus, havia um Sandero branco e uma Kombi também branca nas poucas vagas de estacionamento, delimitadas por marcas de cal no piso de cimento rachado. As placas dos veículos atestavam minha vaga noção de que estávamos no Uruguai.

Entrei e me dirigi diretamente ao banheiro onde, depois de mijar, lavei demoradamente o rosto e o pescoço na água gelada, com o sabonete líquido com aspecto de gel. Quando saí do baño, já estava com outra presença de espírito.

Me sentei em uma pequena mesa junto à janela; uma senhora com ar cansado veio mecanicamente me atender. Pedi uma água mineral com gás, um café preto, duas empanadas de jamón y queso. Ela respondeu em português perfeito, o que me fez concluir que ainda estávamos muito próximos da fronteira. Ela se afastou com meu pedido antes que me desse conta de que queria lhe fazer algumas perguntas simples: onde estou, que horas são, isso tudo é real?

Estava pensando no conteúdo da minha mochila e o que ele poderia me dizer a respeito de mim mesmo quando o motorista saiu de dentro da cozinha junto com a senhora que me atendeu e veio com ela até minha mesa. “Estamos quase lá, né? Agora falta bem pouco”. Nem bem terminou essa frase e já se sentava à minha frente, demonstrando uma intimidade que eu não reconhecia.

“Acho que agora é o momento de te devolver isso aqui”, disse ao mesmo tempo que me estendia um celular e um envelope pardo pequeno. Refleti um pouco antes de perguntar o que significava tudo aquilo, mas antes que pudesse formular perguntas que não me fizessem parecer louco, o motorista me ajudou com minhas questões ao comentar que nunca, em todo seu tempo como motorista, nenhum passageiro tinha pedido para ele custodiar pertences, nem dado orientações tão precisas a respeito do que ele, o motorista, deveria esperar dele, o passageiro, em termos de comportamento durante o trajeto. Pensei em pedir detalhes, comecei a ficar um pouco irritado com tudo aquilo, que mais me parecia um jogo, algum tipo de golpe, mas não atinei em dizer nada. Pelo menos nada que não denunciasse minha ignorância em relação à situação. Resolvi agir com prudência, e me limitei a responder “muito obrigado”.

Estava mais necessitado de comer e beber do que de elucidar questões existenciais que, imaginava eu, de uma maneira ou de outra, acabariam por se desvelar. Além do mais, tinha certeza de que café quente e empanadas uruguaias rapidamente me reestabeleceriam de algumas noções e processos neurológicos normais.

Com uma espécie de sorriso paternal, o motorista me anuncia que já vai lá para fora religar o motor, fumar um cigarro. Mas que antes de embarcar, quer me mostrar algo. O motorista é um homem próximo de seus sessenta anos, algo alto, magro e inegavelmente, inquestionavelmente uruguaio. Porém, assim como a senhora que atende as mesas, fala um português quase sem vestígios de sotaque, senão naquelas palavras terminadas em ão, que é que se nota algo fora do lugar, um vestígio de castellano

Ainda pensando em como agir e o que virá a seguir, termino minha refeição. Pergunto se posso pagar em reais, o que a senhora consente no ato, sem maiores comentários. Mais reestabelecido, pergunto para ela as horas, pois meu novo/velho celular está morto, sem bateria (será que levo um carregador na mochila?). Ela responde, de fato é de manhã. Quando me encaminho para a porta, percebo que minha pergunta já seria mesmo respondida de qualquer modo, pois agora é evidente o nascer do sol, mesmo em meio à massa de nuvens carregadas.

Com o olhar, busco o motorista junto ao ônibus, mas ele está afastado, à direita do pequeno paradouro, fumando e com o olhar perdido em direção aos campos que se estendem desde o local até a linha do horizonte. Pampa em estado bruto. Me dirijo até ele lentamente. Quando percebe minha aproximação, se volta com aquele sorriso paternal e me oferece um cigarro, o qual declino com um agradecimento. Não fumo. Ou não fumo mais. “Eu me criei aqui mesmo nesse pueblo”, ele me fala, voltando a fitar o campo que se perde. “Como se chama esse lugar?”, pergunto com legítimo interesse. “Pueblo Herrera“, responde ele. “Está vendo aquela cerca que passa ao fundo do terreno do paradouro? Quando meu filho tinha treze anos, ele caiu do cavalo bem ali, onde tem aquele butiazeiro”. Perguntei para ele se o menino havia se machucado seriamente. “Ele morreu na hora, pelo que parece. Quando caiu, caiu em cima de um tronco de árvore que havia ali, um resto de pinheiro. O peito estava afundado quando o acharam”. Não sei dizer o que senti naquela hora. De repente, um choque de autoconsciência corporal tomou conta de mim. A materialidade física do mundo se apossou de mim de um momento para o outro e me dei conta de que aquilo não poderia mesmo ser real.  O aspecto onírico da viagem sumiu por completo e uma espécie de instinto de autopreservação assumiu o controle, uma sensação de perigo iminente, de alerta máximo. Olhei com surpresa e raiva para o motorista. Ele continuou: “o cavalo também morreu, nunca se soube como nem o porquê. Deixei a carcaça apodrecendo lá ao léu”. Agarrei o braço do homem e disse “que tipo de brincadeira é essa? Por que está me contando essa história?” O homem afastou minha mão de seu braço com firmeza, mas de forma lenta e até gentil. Com uma expressão seríssima, me disse: “por que você me pediu”. Contestei imediatamente que essa brincadeira não ia acabar bem, que não estava gostando nem um pouco desse tipo de zombaria. O motorista seguiu sereno, polido e firme, como um bom uruguaio: “você mesmo já tinha me avisado dessa possível reação. Por favor, abra e leia o bilhete que está dentro do envelope que lhe devolvi com o celular. Estou me dando conta de que certamente você não o abriu e leu o conteúdo enquanto tomava café, como eu pensei que faria”.

Busquei o envelope no bolso da minha jaqueta, me afastei instintivamente do motorista recuando algumas passadas para trás, sem dar as costas para ele em nenhum momento. O homem seguia fumando, olhando o campo com uma expressão quase maníaca. Na folha A4 dobrada, reconheci minha letra. Eram instruções na forma de itens para o motorista. Para não me acordar durante a viagem. Para ficar com meu celular e com o envelope durante toda a viagem, devolvendo-me somente neste paradouro. Para entregar na aduana um determinado documento que me garantiria a passagem na fronteira sem maiores contratempos. Ao final do documento, a instrução precisa de me relatar a história do menino, do cavalo, a queda, o trono, a morte. Ao final da leitura, senti uma certa náusea, sentia como se estivesse me dividindo em milhares de pedaços; meu corpo vibrava em outra frequência agora e era uma frequência bem desagradável. 

Percebendo meu olhar atônito, o motorista se aproximou de mim novamente e disse: “amigo, fiz exatamente como está escrito nas suas instruções. Agradeço o pagamento e espero ter feito tudo da maneira correta. Vamos seguir nossa viagem?” Não lembrava de nenhum pagamento, nem de ter dado tais instruções, nem sequer de ter falado com o motorista em algum momento da viagem. Entretanto, o documento obviamente tinha a minha caligrafia e algo na voz do motorista me transmitia algo de segurança e de familiaridade. Com receio de parecer louco ou perigoso e de induzir o motorista a chamar a polícia, concordei com ele e retornei ao ônibus. “Se quiser, pode fazer o restante da viagem aqui na frente comigo e vamos conversando e tomando um mate para o tempo passar mais rápido. Mais algumas horas e estaremos em Salto”. Agradeci, mas disse que não me sentia muito bem e que tentaria dormir mais um pouco. Tentei refazer meus passos, reconstruir e reconectar memórias para entender o que estava acontecendo, mas só resgatei algumas imagens desconexas. Provavelmente, ainda era o efeito dos remédios. Não dormi, mas também não estava acordado no sentido comum do termo.

Aos poucos, comecei a perceber os subúrbios de alguma cidade; torcia para que já fosse Salto. A densidade das casas foi aumentando e logo em seguida o ônibus chegou no terminal de ómnibus de Salto. Reuni meus pertences e, conforme o veículo diminuía sua marcha e se dirigia ao box designado, abri a porta interna e me postei ao lado do motorista. “Obrigado pela viagem e obrigado por ter atendido aos pedidos que lhe fiz”, disse-lhe sem muita convicção. “Tranquilo. Fico feliz de ter contribuído com um artista. Além disso, o dinheiro que me pagou vai ajudar bastante no orçamento”. Um artista? O que será que lhe disse que o faz pensar nisso? Arrisquei: “que tipo de arte você imagina que eu trabalho?” Sorrindo, o motorista me diz que não entende nada de arte, só um pouco de música, mas que me deseja muita sorte com o puma. “Com o puma?”, devolvi a ele sem pensar. “Sim, com seu projeto. Pelo menos foi o que entendi que você me disse quando me entregou o celular e me explicou sobre as orientações do envelope. Que vinha para Salto para iniciar o projeto puma”. Agora notei que seu olhar passava de curioso para desconfiado. Achei melhor não alimentar receios e temores que pudessem ter como consequência complicações com as autoridades locais. Respondi, comentando um simplesmente “ah, sim”, e me despedi. Já ia saindo em direção ao interior do terminal, quando o motorista me chama: “homem do puma! Não vai levar sua bagagem?” Rindo e sacudindo a cabeça em negação cômica, ele desce, abre o bagageiro e me alcança duas grandes malas, uma preta e outra bordô. Me dá um tapinha no ombro e se despede desejando sorte no projeto, seja lá do que se trate. Sem reação, simplesmente assenti com um maneio de cabeça. Devo ter pagado uma quantia significativa para o motorista para ter esse tipo de tolerância com as excentricidades de um passageiro tão atípico. 

Entro na estação e busco um local para recarregar o celular. Me concentro ao máximo para manter afastado um pensamento que sinto que tenta vir à tona com determinação: que estou louco. E o que é pior: loucura com método, o tipo mais perigoso que existe. Enquanto espero que a bateria tenha o mínimo de carga para religar, observo um anúncio no outro lado da rua. É o mesmo anúncio da estrada, da camponesa comendo um morango. Agora vejo com nitidez que é um anúncio de um frigorifico. A camponesa e o morango são na verdade um boi antropomórfico com um garfo e uma faca na mão.

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