No dia em que não fui

Almeida Júnior, "Saudade" (1899) (detalhe)
Pinacoteca, São Paulo

Andressa Arce

Capítulo 1 – A meia irmã da filha única

Se eu a visse na rua, não saberia dizer que era minha irmã. Quiçá reconhecesse a afinidade genética no formato característico dos olhos. Duas amêndoas tristes, tais quais as da avó paterna. Nenhuma fotografia havia me permitido espiar antes do tempo.

A irmã, que tinha 16 anos, era um amontoado de retalhos. Histórias mal contadas que eu entreouvia quando circulava em silêncio entre os adultos para coletar as peças do quebra-cabeças que deixavam cair.

Pintava o cabelo com frequência e nem sempre o resultado era bom, havia sido matriculada em uma escola pública e os estudos não iam bem, tentou matar-se mas foi salva, sumiu de casa durante duas ou três semanas e foi encontrada em circunstâncias suspeitas.

Tivesse visto alguma foto sua, talvez conseguisse imaginar com mais facilidade o que poderíamos ter em comum. Ninguém pensou em assegurar-me tal gentileza.

Eu tinha sete anos de idade. Já sabia ler, escrever e fazer operações matemáticas básicas. Não fazia ideia, contudo, qual era a cara daquela outra filha do meu pai.

Caso me pedissem para desenhar minha família, traçaria três figuras no papel. Meus pais. Eu.

Uma filha única assombrada por vultos fraternos de feições borradas – além dela, havia outras duas, a muito estudiosa que já trabalhava e a que frequentava a universidade pública à noite.

Essas irmãs rondavam-me como esculturas ancestrais de culto proibido aos não iniciados. Grandes, distantes, intocáveis.

As gigantes de pedra recusaram-me até que uma delas decidiu levantar-me o véu e convidar-me para a ciranda.

Você gosta de circo, não gosta, Alice? Liana disse que também quer ir. Podemos ir no sábado. Que tal?

Foi assim que meu pai anunciou o primeiro encontro.

Em poucos dias, daria um rosto à minha irmã.

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