Jessica Cardin
Dez anos atrás, o Heitor já escrevia para jornal, eu era insônias e cigarros e bares, você era um lar a beleza o balé e a flauta: era como eu te enxergava.
Minha mãe tinha uma banca de jornal ao lado de uma lixeira, uma lixeira onde a padaria depositava o lixo, o chorume vinha riozinho passando perto da banca / aquele cheiro.
A banca de jornal é um container, uma grande caixa de metal, no inverno o frio é inacreditável; no verão minha mãe colocava um ventilador escondido atrás do balcão, mas a pior parte, que é a parte que me dá a saudade, é o abrir e fechar. Abrir e fechar a banca com pinos e cadeados, a gente ajoelhava para pegar os pinos debaixo da banca, a mão abraçando a um só tempo o pó e o pino, minha mãe, uma rainha, minha rainha, a gente ajoelhava (eu às vezes, ela sempre) assim, no asfalto / o negrume / as margens de um rio que corria / o chorume.
Como abrir a banca.
Primeiro montar os expositores, depois fazer o encalhe do dia anterior, que significa pegar os jornais e revistas que sobram para devolver às editoras. Receber a distribuição do dia (juro que até hoje chegam em kombis) e arrumar em seus devidos lugares / as prateleiras. Depois, podemos ficar conversando ou lendo tudo aquilo. Podemos ficar juntas até enjoar uma da outra, as duas presas naquela caixa. Se você trabalha sozinha e nunca sabe a que momento poderá sair para ir ao banheiro, é muito provável que tenha infecções urinárias recorrentes, sei disso porque minha mãe tinha. Eu não, eu fazia passeios na feira, na locadora, ou seja, todos os pequenos comércios da vizinhança, mas o que eu queria mesmo era “ir para a cidade”, como se aqui e o centro fossem coisa tão distante (eram mesmo). Queria ir para o centro te visitar, Fabí, mas eu morava muito longe. Além de toda a vizinhança, eu conheci todas as ruas cambaleantes. O dinheiro dos jornais me paga o vinho barato da adolescência, as navalhas assépticas, tudo que me faz suja enquanto você era pura, Fabí.
Eu aprendi os sambas antigos no livro de um banco do estado de Minas Gerais que não existe mais e agora tanto os bancos estatais quanto os sambas de raiz me parecem coisas lendárias, desaparecidas acho que desde antes mesmo da Copa de 98, antes dos minicraques, antes do Ricky Martin, antes das primeiras eleições presidenciais das quais posso lembrar. A escola nos pedia trabalhos sobre o governador substituto enquanto o Mario Covas morria de câncer na bexiga (será que ele segurou muito o xixi, Fabí?) e, também sobre o José Serra – para mim ele ia ser o presidente do Brasil e acabar com a dengue, ele era maravilhoso nas notícias de jornal e nos trabalhos que eu escrevia. Aqueles anos foram uma mistura de Aedes aegypti, cavaleiros do zodíaco e a pornografia escondida no guarda-roupa do papai que meu irmão vinha me ensinar.
Antes da banca de jornal eu aprendi todos os sambas antigos naquele livro e de tanto tentar entender decorei a letra de Saudosa Maloca; mais tarde, o Cartola / o som do fagote triste. Mas eu não entendia aquela letra.
Como pode ser saudosa uma maloca?
Meu joelho dobrado com o da minha mãe, joelhos felizes, porque dobrados com os da minha mãe. Acho que agora eu entendo.
Toda vez que sai um de seus textos, o Heitor compra quatro Estadão e plastifica um. Toda vez que sai um texto, o Heitor quer comemorar. Então a gente viaja. Todo domingo sai o texto na internet e em todas as outras bancas. Todo sábado a gente compra quatro jornais naquela outra e viaja. Elogia minhas sapatilhas vermelhas de bico fino, diz que me fazem uma boneca.
Ele disse que não queria / eu vou me tornando / uma boneca.