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Fosse amor uma palavra feminina

Giorgione, "Venus adormecida" (c. 1510)
Gemäldegalerie Alte Meister, Dresden

Pedro Rocha Souza

Relendo, pela quinquagésima vez, The old man and the sea, de Hemingway, minha atenção recai, pela quinquagésima vez, neste trecho:

He always thought of the sea as la mar which is what people call her in Spanish when they love her. Sometimes those who love her say bad things of her but they are always said as though she were a woman. Some of the younger fishermen, those who used buoys as floats for their lines and had motorboats, bought when the shark livers had brought much money, spoke of her as el mar which is masculine. They spoke of her as a contestant or a place or even an enemy. But the old man always thought of her as feminine and as something that gave or withheld great favours, and if she did wild or wicked things it was because she could not help them. The moon affects her as it does a woman, he thought.

Em português, na tradução de Fernando de Castro Ferro, ficou:

O velho pensava sempre no mar como sendo la mar, que é como lhe chamam em espanhol quando verdadeiramente os que querem bem. Às vezes aqueles que o amam lhe dão nomes vulgares, mas sempre como se fosse uma mulher. Alguns dos pescadores mais novos, aqueles que usam boias como flutuadores para as suas linhas e têm barcos a motor, comprados quando os fígados dos tubarões valiam muito dinheiro, ao falarem do mar diziam el mar, que é masculino. Falam do mar como de um adversário, de um lugar ou mesmo de um inimigo. Entretanto, o velho pescador pensava sempre no mar no feminino e como se fosse uma coisa que concedesse ou negasse grandes favores, mas se o praticasse selvageria ou crueldades era só porque não podia evitá-lo. A lua afeta o mar tal como afeta as mulheres”, refletiu o velho.

Entre todos os momentos geniais de Hemingway, acho esse parágrafo, particularmente, um de seus melhores enquanto romancista. Nele, Hemingway mostra-nos o que só os grandes romancistas nos conseguem demonstrar: fala-nos de como nós nos relacionamos, quais são as verdades mais sinceras do humano. Aqui, um romancista americano, para o qual ‘‘mar’’ é uma palavra de gênero neutro (the sea), consegue nos mostrar como uma simples mudança no gênero das palavras transforma totalmente a concepção que fazemos do referente. El mar: um ‘‘adversário’’, um ‘‘lugar’’ ou mesmo um ‘‘inimigo’’; aqui, a única relação possível de se estabelecer é a de domínio, a de posse, tudo o que se pode fazer é vencê-lo, é explorá-lo ao máximo. La mar: ainda que por vezes possam impor aos homens dificuldades imensas, as águas e os homens se entregam um ao outro; agora, já é possível o encanto pelos seus mais diversos movimentos e cenários, a paz de nelas se encontrar, a admiração por toda a sua fecundidade: aqui, o homem já pode desejar retornar às águas. De igual modo, Hemingway aborda aqui uma questão importantíssima dos estudos geográficos, a saber: como concebemos a natureza que nos circunda? Quão decisiva é concepção que fazemos dela? Como interpretar a maneira pela qual os homens a ela se referem? Como a paisagem e a linguagem que a designa se relacionam? Um parágrafo interessantíssimo, verdadeiramente fecundo em discussões, mas não de fácil tradução, no entanto: durante todo ele, Hemingway se refere ao mar pelo pronome feminino, her, e não pelo neutro, it. Como traduzi-lo para o português? Como fazer o leitor brasileiro perceber que em todo o parágrafo o próprio Hemingway se refere ao mar no feminino? Que o próprio Hemingway concedeu à literatura americana uma concepção feminina de mar? É uma questão fundamental, um grande desafio para os tradutores brasileiros. Talvez um parágrafo que possa passar despercebido na leitura de alguns, esse é um dos trechos mais interessantes que Hemingway escreveu em sua obra.

Foi lendo esse parágrafo fundamental de Hemingway, foi vendo-o nos descrever as consequências que decorrem da maneira como nós concebemos determinadas realidades que uma pergunta me ocorreu: e se fosse o amor um palavra feminina? A essa pergunta, uma outra se seguiu: haveria, então, alguma língua em que amor estivesse no feminino? Logo me pus a pensar: em italiano, amore é um sostantivo maschile. Em francês, amour, igualmente, é um substantif masculin. Em espanhol e português, línguas irmãs, amor também é um substantivo masculino; naquela, um nombre masculino. No inglês, love nos aparece mais propício à diferenciação já que é gênero neutro. Das grandes línguas europeias, apenas o alemão, esta língua aparentemente tão rude, põe amor, die Liebe, no das Femininum. Assim, a própria língua nos imporia uma dificuldade: não é fácil se referir ao amor como um sentimento de natureza feminina. Mas a essa dificuldade se junta uma outra: não basta a palavra estar num determinada gênero; ainda seria preciso diferenciar, entre os dois gêneros, duas naturezas distintas, assim como o fez Hemingway: duas maneira de se conceber a natureza da realidade amorosa.

Foi assim que, a buscar uma solução possível, recorri aos gregos: vieram à cabeça os deuses gregos Eros e Afrodite. Afinal, esses deuses do amor se diferenciam não pela natureza de cada um deles, mas pelo gênero: Eros é um deus, enquanto Afrodite, uma deusa. Segundo a mitologia grega (e aqui, que me perdoem a ignorância os antropólogos, filólogos, filósofos e todos os outros trop savants que me possam ler), tanto Eros quanto Afrodite são deuses que representam o Amor. Eros é o deus do amor, filho da Riqueza e da Pobreza. Afrodite, cujo nome deriva de ‘‘espuma’’, já que teria a deusa nascido da espuma do mar, era para os gregos a deusa do amor. Assim, nesse jogo que nós nos propusemos, poderíamos dizer que conceber o amor como uma palavra masculina seria pensá-lo sob o signo de Eros, enquanto concebê-lo como palavra feminina seria pensá-lo sob o signo de Afrodite. De um lado, o deus do amor e do erotismo e de outro a deusa do amor, da beleza e da fertilidade.  Que significaria, então, amar sob Eros? Que significaria amar sob Afrodite?

As repostas são várias, e para estas notas de leitura, improviso a minha: na história da arte, as representações de Eros o mostram como um deus brincalhão, enganador e, se considerarmos o mito de Apolo e Dafne, até mesmo sádico. Diferente é a representação de Afrodite (Vênus): jamais a veremos representada como esquiva, jamais a veremos se negar, bem ao contrário: frequentemente, Afrodite é representada de uma tal maneira que nos parece convidar a contemplá-la, como se quisesse nos chamar para gozarmos junto a ela de uma felicidade tão maior, tão mais apascentada, de modo que diante todos os grandes quadros venusianos podemos passar horas a contemplá-la. Para citar os mais famosos: como não se quedar horas diante da Vênus adormecida, de Giorgioni? Como não se encantar diante da Vênus de Urbino, de Ticiano? Como não se alegrar a ver a meninice do Triunfo de Vênus, de Boucher? Como não se perder nas linhas deíficas da Vênus de Botticelli? Mesmo a Vênus de Milo parece nos convidar para que nos aproximemos dela, que gozemos da sua presença. Entre as diversas representações de Afrodite, jamais o sadismo, jamais o jogo, jamais o engano, jamais as ilusões.

Gian Lorenzo Bernini, “Apolo e Dafne” (c. 1625)

Assim, não amaríamos sob Eros de modo sempre ilusório, joguetes expostos à sádica vontade desse deus-cupido traiçoeiro? Por outro lado, não amaríamos nós sob Afrodite de modo muito mais apascentado e, assim, sem as ilusões ou os sadismos eróticos? Não seria o nosso amor tão mais fértil nessa calma e nessa paz em que Afrodite aparece mergulhada desde as mais antigas obras de arte? De um lado, nos veríamos como Apolo a perseguir Dafne de Bernini, incessantemente a buscarmos a posse de um desejo que jamais se realizará por completo, a vontade de vencer e possuir; por outro lado, veríamos Vênus a nos implorar para que esqueçamos os nossos frívolos orgulhos, que repousemos e gozemos desse amor que ela nos oferece, como em Vênus e Adonis de Ticiano.

Que nos aconteceria se trocássemos o desejo pela entrega? Que nos aconteceria se trocássemos os jogos e seduções pela fértil sinceridade? Que nos aconteceria se trocássemos os desejos cáusticos, os jogos de sedução, pelo gozo da presença, pelo afeto carinhosamente concedido? Mas, meu Deus!, estas notas já soam por demais românticas. Excessivamente fantasiosas. Hoje, mais que nunca, só podemos conceber o amor sob o signo de Eros e, assim, nosso amor será dito amor sempre no gênero masculino. No entanto, a pergunta me fica: “e se amor fosse uma palavra feminina?”

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