Revista de Cultura

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Da costela do impossível

Gustave Courbet, "Natureza morta com maçãs" (1872)
Coleção Mesdag, Hague (Holanda)

Marcela Alves

Ponto de referência

a casa não está na casa
está na calçada de amoras roxa
no semblante do porteiro
empurrando com força
as pálpebras
para recepcionar o sol

nas três colheres
e mais um tanto
esse tanto é fundamental
o mistério é fundamental

não está nos móveis
mas no vão entre os móveis
onde o sol já recepcionado
faz uma segunda casa
para o cachorro morar
está no jeito certo
de pegar o cachorro

a casa está nas pintas trigêmeas
do peito nu arfante
se um dia encontrasse
apenas duas
não saberia 
me orientar
se um dia as pintas trigêmeas 
não dissessem nada
do mistério
a casa não estaria mais na casa
e pelas paredes frias eu te choraria

Medida

experiências seguem inteiras
o que estica é a pele
de dentro
para caber o novo
histórias, dúvidas, cenas
até que aquele pedaço de vida
já não seja mais
quem vê de fora
um metro e setenta e três
não imagina o tamanho 
a que pode chegar
uma pessoa
tudo isso para dizer
sonhei com você
como há muito não acontecia
sonhos não respeitam cronologia
encolhi durante o sono
senti o mesmo pavor
de quando te amar
ocupava todos os espaços
entre os meus órgãos
acordei
dolorida ainda pelo seu rastro
lavei o rosto
não mudou muito
mas
a imagem no espelho
era tão grande
se você me olhasse
não reconheceria

Obsessão

Pensei em você até te gastar
Meus dedos ficaram dormentes
como quando em água por muito
murcham feito maracujá
comi maracujá, manga
e a tal da maçã
pensando-pensando
diacho!
nada tinha gosto
mordida por mordida
no que não era sua carne
era quase nada
tenho fome da fome
não da saciação
engasguei a fruta e a palavra
que eu não disse
covarde!
tossi feito louca
acordei a vizinhança
que agora sabe de tudo
que nem eu mesma sei
doma-se a ação
não o desejo
enquanto eu não te vejo
te limpo cinquenta vezes
nos fiapos entre os dentes
e você não sai
mas quando eu te vir
vou te morder feito bicho
às vezes detesto ser gente
pra ver se o gosto da fruta volta
e eu possa viver em paz

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