Revista de Cultura

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Crítica, antissemitismo e engano

Ziva Jelin, "Estrada curva" (2010)
Museu de Israel, Jerusalém

Adriana Novaes

Queremos ordem. A aventura humana da busca por conhecimento é marcada pelas sucessivas tentativas de organização e sistematização. As definições e teorias dão inteligibilidade ao caráter múltiplo de nossas experiências, do que acontece freneticamente e buscamos apreender. Essa apreensão pode ser mais sofisticada, mais engenhosa, porque tenta abarcar a complexidade e sua trama mais elaborada. Contudo, mais comumente, por simplificação do que é sofisticado ou por puro chute para marcar posição, essa praga impulsionada e mantida pela pressa das redes sociais, a avaliação, julgamento ou opinião vira apenas “lacração”. Não consigo chamar a maioria das “opiniões” manifestadas nas redes de “avaliação” e principalmente de “julgamento”.  Minha atenção se volta aqui para dois objetos: um filme e uma declaração. Meu ponto é essa pressa em definir situações, colocar em caixinhas fatos complexos, querer apreendê-los por uma única ideia, simplesmente responder a uma provocação sem prestar atenção. Zona de Interesse estreou na semana passada e já rendeu muitas críticas negativas mundo afora. O tom dominante é de que o filme, por não mostrar cenas explícitas da terrível violência dos campos de concentração, estaria minimizando sua gravidade. Na mesma semana, uma declaração do presidente Lula foi alvo de uma saraivada de críticas, o que se desdobrou em convocação do embaixador brasileiro em Israel por Netanyahu e depois a convocação do embaixador por Lula. Instalou-se uma crise diplomática entre os dois países. Choveram postagens apoiando e criticando Lula, mais uma consequência da guerra sobre a qual muitos têm por esporte comentar. Vamos a ela e o faço na perspectiva da filosofia política.

Não é difícil identificar o desrespeito à dignidade humana. Toda guerra é lamentável, porque é a derrota de nossa capacidade de acordo, de uso da inteligência para resolver impasses, punir crimes, equilibrar a vida comum. Todas as guerras começam com derrota. Mas, para entendê-las, é preciso ir além dessas obviedades, pois cada conflito tem sua história e não é justo tratar com desfaçatez lacradora a destruição de cidades, de famílias, de grupos, de etnias. A modernidade nos legou o desafio de garantir a liberdade dos indivíduos e fazê-los agir conjuntamente em uma comunidade política, além de, mais recentemente, reconhecer a necessidade de acordos entre comunidades políticas. Da confiança inquebrantável no progresso, elaboramos duas linhas para sua ratificação – liberalismo e socialismo – e fomos tragados para a ruptura dessa confiança pelos totalitarismos, o esfacelamento das referências da vida comum. O que restaria como recurso político do erro grosseiro das elites que apoiaram o partido nazista e do ideal comunista? Uma defesa repetida e assustada da democracia, como se as instituições pudessem garanti-la absolutamente – não podem – e como se os cidadãos fossem verdadeiramente conscientes de suas escolhas – não são. Sustentar governos a qualquer custo se tornou uma busca incessante, mas apenas aparentemente repetindo Maquiavel, porque sem qualquer preocupação com a virtù; também como aparente proximidade com Hobbes, porque a soberania só resta como algo fantasmagórico. Os governos passaram a usar como recurso desesperado a falsa identificação a partir de um oponente, mesmo que seja preciso recontar a história. Nas circunstâncias da superindústria do imaginário, como define Eugênio Bucci, há múltiplas facilidades para tanto.

O conflito árabe-israelense começou com a quebra de uma promessa, é bom lembrar. A criação do Estado da Palestina foi uma promessa feita e não cumprida pelo então poderoso governo Britânico durante a Primeira Guerra Mundial. No período que se seguiu a essa guerra, o antissemitismo europeu contra os judeus, crescente desde o final do século XIX, recrudesceu. O judeu era persona non grata em vários países e a Palestina se tornou o refúgio para escapar do ódio. Aos poucos, colônias se estabeleceram, e então começou a Segunda Guerra Mundial com o hediondo, inaceitável e terrível processo de assassinato sistematizado que foi o Holocausto. O governo nazista tinha o projeto de exterminar todos os judeus da Europa, não só da Alemanha. E esse projeto foi posto em funcionamento com a conivência e participação de considerável contingente da população europeia. O judeu foi identificado com o que havia de pior, e culpado pelos males da Alemanha e do mundo. Um preconceito secular foi reforçado desgraçadamente pelas circunstâncias, acrescido de um longo e decisivo investimento em difamação e propaganda. Assassinato sistematizado como política de Estado, por anos e da maneira como foi feito, com campos de concentração e extermínio, só aconteceu na Alemanha de Hitler. Mas houve guetos e vários outros genocídios. Destaco que não é correto nem moralmente aceitável usar os termos “fascismo”, “nazismo”, “totalitarismo”, “genocídio” como categorias aplicáveis com facilidade a toda e qualquer violência. Claro, esses conceitos são usados por quem quer enfatizar a gravidade da opressão que quer denunciar. Mas essas pessoas fazem essas associações para esclarecer ou para marcar posição?; no caso de governantes: para juntar forças contra uma ameaça real ou para posicionamento de acordo com seus interesses imediatos em um contexto mundial de grande fragilidade como o nosso?

A Palestina vem sofrendo violência atroz. Israel, com o argumento da autodefesa e a postura, desde sua criação, de que não vai renunciar ao único lugar em que os judeus se sentem mais protegidos do antissemitismo, ataca mais violentamente do que seria compreensível e admissível, ainda mais com um governo como o de Netanyahu, que comparou os assassinatos cometidos pelo Hamas no dia 7 de outubro de 2023 ao Holocausto, que apoia o discurso mentiroso do governo da Polônia segundo o qual todos os poloneses lutaram contra o nazismo e que não apoia a Ucrânia, pois acreditou na historieta dos grupos neonazistas ucranianos contada por Putin que, por sua vez, envia dinheiro ao Hamas e ao Hezbollah. Lidar com esses jogos de cena e elaborações de mentiras intencionais, o que significa lidar com as consequências assustadoras de sua defesa e manutenção, é muito mais difícil do que chamar qualquer crítica ao governo de Israel de antissemitismo. Se tudo é antissemitismo, nada é antissemitismo e entramos em perigoso terreno conhecido.

A jornalista Masha Gessen, no texto “In the Shadow of the Holocaust: How the Politics of Memory in Europe obscures what we see in Israel and Gaza today”, publicado na New Yorker, em 9 de dezembro de 2023, faz um alerta sobre a escalada do desengano sobre o antissemitismo desde 2016, quando a Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA, em inglês) adotou a seguinte definição de antissemitismo: “antissemitismo é uma certa percepção dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são dirigidas a indivíduos judeus e não judeus e/ou suas propriedades, a instituições da comunidade judaica e instalações religiosas”, seguida de vários exemplos que incluem “dizer que a existência do Estado de Israel é racista” e “fazer comparações da política israelense contemporânea com a dos nazistas”. Apesar de essa definição não ter força legal, comenta Gessen, tem exercido uma influência extraordinária.

A partir dessa definição, a declaração de Lula na Etiópia – “o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino não existe em nenhum momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar judeus” – é antissemita. Outra definição, formulada em 2020 por um grupo de acadêmicos e intitulada “Declaração de Jerusalém” é a seguinte: antissemitismo é “discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus enquanto judeus (ou instituições judaicas enquanto judaicas)”, também seguida de exemplos para ajudar a distinguir afirmações e ações anti-Israel de afirmações e ações antissemitas. Mas a primeira, da IHRA, foi e continua sendo muito mais influente. Percebem as consequências das diferentes definições?

Não se trata, portanto, de escolha de lado. Quem coloca a questão da guerra nesses termos se deixou engolir pela lógica da redução. Como mencionei acima, as apreensões reducionistas são usadas para facilitar interesses imediatos, compradas pelas pessoas na era das redes sociais para demonstrar “opinião”, o contrário de qualquer consideração de razoabilidade. Mas, como bem pontua Celso Lafer em seu livro sobre a reconstrução dos direitos humanos, a razoabilidade jurídica, fundamento da unidade política, há tempos caiu em descrédito. O comprometimento da razoabilidade institucional se desdobra na dificuldade de consideração de qualquer razoabilidade, de qualquer busca de equilíbrio.

Ninguém pode negar em sã consciência e sinceridade que o que os palestinos vivem na Faixa de Gaza é a opressão de um gueto. Ninguém em sã consciência pode deixar de afirmar que Netanyahu é um político nefasto e que suas ações são opostas ao que prega a sofisticação e grandeza do pensamento judaico. Portanto, apesar do exagero de Lula, é preciso reconhecer quem realmente contribui para o pior em Israel e no mundo. Não é Lula. É preciso parar de brigar com a sombra.

Masha Gessen cita Hannah Arendt. Arendt já havia feito o paralelo entre a política de Israel e o governo fascista e nazista em texto de 1948, publicado na coletânea Escritos judaicos: “entre os fenômenos políticos mais perturbadores de nosso tempo está o surgimento no novo estado de Israel do ‘Partido da Liberdade’ (Tnuat Haherut), um partido político que se assemelha em sua organização, métodos, filosofia política e apelo social aos partidos nazista e fascista”. Pergunto: Arendt era antissemita? Claro que não. Mas, segundo a definição da IHRA, ela seria. Aliás, suas duras críticas a Israel foram bem guardadas e alimentaram as represálias sórdidas que sofreu após a publicação dos textos sobre o julgamento de Adolf Eichmann. Ela sempre se preocupou com as consequências da transferência da unidade de uma crença religiosa para o sentido de fundamentação do Estado de Israel. Mas disso, assunto espinhoso de verdade, ninguém fala.

A virulência da reação ao comentário do presidente Lula – que pode ser criticado por fazer um paralelo entre Gaza e o Holocausto, o que não é igual à comparação que faz Arendt, mas não está distante – deixa evidente, a meu ver, o estado de nervos da situação, muito mais do que a preocupação com esclarecimentos. Por que não se usa tamanha virulência para criticar o governo e as decisões de Netanyahu, muito mais decisivas para o fim da guerra?

As simplificações que acometem tantas pessoas e, claro, políticos são o mal de querer dar resposta a um problema a qualquer preço. Pessoas que, apesar de assinarem acordos, de modo algum se preocupam com a especificidade do problema que estavam tentando “resolver”. E aqui aparecem os “resolvedores de problemas” de que Hannah Arendt trata em seu texto sobre a Guerra do Vietnã; grandes cérebros que tentam encaixar a realidade em seus esquemas inteligentes, novamente a apreensão que mencionei. Assim, pretensos estrategistas de think tanks não se diferenciam muito de Youtubers ou influencers: de certo modo, eles tratam essas questões de modo raso, como se bastasse escolher um lado por comodidade.

Por fim, volto ao filme. É de uma aflição crescente assistir à vida familiar de quem despreza e usufrui de tamanho sofrimento. É atroz, leviano, abjeto. Mas esse terror não surgiu ali. Foi gestado durante bastante tempo, formando uma conjuntura propícia a esse tipo de mal. Os seres humanos foram considerados supérfluos bem antes, não apenas por um sistema triturador de boas intenções, mas pela dificuldade em se efetivar um modo de convívio igualitário que preserve a liberdade. Essa superfluidade também se faz presente na manipulação da história, no uso inconsequente de definições, na trama nefasta de governantes que demonizam qualquer grupo para manter sua posição. Em quem você pensou? Pois é. Não bastam indignação, pretensas frases de efeito “inteligentes” ou usar bandeira aqui e ali, de acordo com o que convém. É preciso, depois de um profundo lamento, objetivamente compreender o processo que nos trouxe a essas circunstâncias difíceis e tentar corrigir os erros do passado com ações, como os protestos de israelenses pedindo o fim da guerra. Como escreveu nosso ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida, “nada pode nos indignar mais do que a situação pela qual passam as pessoas – todas as pessoas, sem exceção – afetadas por esta violência”. É óbvio, mas não custa lembrar: todos merecemos uma vida digna.

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