Revista de Cultura

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Adão

John Martin, Ilustrações para "Paraíso Perdido" (1827)

Jerônimo Teixeira

Son scellerato
perché son uomo

Adam, meu nome é Adam. Não foi assim que me ficharam? Fica sendo Adam Smith, como está no passaporte. Um nome na verdade bem comum. Já me diverti bastante com ele. Esses tipos ridículos, querendo soar inteligentes – “Adam Smith, como o economista?”, eles perguntam. Eu respondo “não, como o economista não: como o filósofo moral”. Ficam desconcertados, todos eles: o recepcionista de hotel, o gerente de banco, o corretor, o CEO. Ninguém se dá conta de que o economista e o filósofo podem ser a mesma pessoa. Como o fazendeiro e o escroque – o industrial e o golpista – o filantropo e o assassino.

Tão fácil enganar as pessoas: não precisa nem mentir.

Está anotando isso? Foi só uma observação trivial, não vejo por que tomar nota. Aliás, não estão gravando o que eu digo? Tenho certeza que sim. Deve haver uma câmera escondida em algum canto da sala. Já aviso que é inútil. Não estou aqui para admitir nada do que me acusam. Tudo que estou dizendo é em abstrato. Em tese, enganar é fácil. É um princípio geral; nenhum homem de negócios discordaria. Muito fácil. Nem precisa mentir.

Outros nomes, que outros nomes? Ah, sim, os passaportes no cofre. Mas se o cofre foi arrombado ilegalmente, sem mandado judicial… Meus advogados vão contestar a validade da investigação, pode ter certeza. Tudo no devido tempo. Por ora, se você quiser, posso ser qualquer um: Giuseppe Balsamo, Theodore Lent, Felix Krull, Han van Meegeren, Jeremy Leroy, Raul Stapler. Sim, sou todos eles. Não adianta insistir nesse ponto. É uma expressão tão vazia, essa que você gosta de usar: “nome verdadeiro”. Que verdade há em um nome? Uma rosa, com outro nome, não teria o mesmo perfume?

Já vi que você não se impressiona com citações. Ou não as reconhece. É mesmo uma frase muito idiota, que coloca mal o problema. Pois – veja se você acompanha meu raciocínio – a palavra “rosa” designa uma realidade palpável, um conceito bem delimitado. É só uma convenção, claro, mas uma convenção socialmente bem estabelecida, que não deixa margem para dúvidas. A rosa é uma flor, e não uma flor qualquer: tem um perfume característico, espinhos no caule, e pétalas que… bom, que têm aquele formato de pétalas de rosa. Não sou botânico, não saberia fazer uma descrição técnica, mas todos sabem que uma rosa é uma rosa é uma rosa – é outra citação, bem conhecida, você deveria ler mais –, e não é um cravo, nem um antúrio, nem muito menos um carrilhão, um bonde, uma estrela. A palavra “rosa” invoca imediatamente uma realidade específica, inconfundível. Agora, me responda: o que é um Miguel, um Michel, um Michael? Que diferença terá em relação a um Juan, Jean, John? Percebe o que estou dizendo? Não há fundamento, não existe critério algum para definir se um nome próprio é verdadeiro ou não. A expressão “o verdadeiro Adam” é vazia de sentido.

Vai ser uma conversa cansativa, a nossa. É esse o objetivo, sei bem disso. Desde que me algemaram no aeroporto e me arrastaram para cá, vocês estão fazendo o possível para me cansar, para me humilhar. A via crucis conduz à confissão, ao arrependimento do bom ladrão. Só que não tenho nada a confessar, e muito menos do que me arrepender. Sua pergunta é bastante previsível: o nome primeiro, aquele que meus pais me atribuíram. Pois se é isso que define um nome verdadeiro, tenho uma surpresa para vocês: que eu lembre, meus pais não me deram nome nenhum. Minha infância não é o que você imagina. Não nasci rico, penei para chegar onde estou – bom, não para chegar aqui, agora, nesse interrogatório idiota, mas você entende o que eu quero dizer. Tenho uma bela história de superação pessoal, uma coisa edificante mesmo. Podia até gerar um daqueles filmes chatos, “baseados em um caso real”, que ninguém vai ver mas que dão o Oscar ao ator principal. Se você tiver paciência, resumo esse meu Bildungsroman em umas poucas linhas. E no caminho, até conto o meu primeiro crime – o único crime que vou admitir, e o único de que não sou acusado.

O porão era escavado na terra, e ninguém se deu ao trabalho de pavimentar o chão. Era uma terra úmida, avermelhada, que se entranhava na pele. O pai, a mãe, os irmãos eram todos vermelhos. Não sei quantos irmãos eu tinha. Na última noite, contei doze, mas houve muitos outros antes. Essas doenças comuns de criança eram fatais naquela casa. Qualquer tosse, qualquer diarreia era uma condenação. É até surpreendente que tantos tenham sobrevivido, pois nunca se viu uma vacina, um médico naquele lugar, e não havia água encanada, nem luz. Vivíamos na imundície. Sujos, primitivos, vermelhos.

Dormíamos, os filhos da casa, em colchões de palha, amontoados nas poucas áreas relativamente secas do chão. Os móveis se resumiam a uma mesa, para as atividades da cozinha, e cinco ou seis cadeiras – a maioria comia no chão, e com as mãos. O pavimento acima, onde vivia o pai – eu quase nunca subia até lá – também era pobre: uma cama de casal, um armário roído de cupim, um baú (que eu nunca vi aberto), uma mesa. Mas era seco e tinha janelas amplas. No porão, a única luz vinha do forno de barro onde se assava a carne, e de umas velas de sebo fedorentas. Sol nenhum, fora as réstias que passavam entre as frestas do teto. A construção toda era muito precária, feita de umas tábuas vagabundas, que rangiam quando o pai pisava mais forte lá em cima. Dava um certo medo de que ele caísse na minha cabeça. Mas o medo maior era que ele descesse a escada de pedra, para acalmar uma briga qualquer dos meus irmãos. Eu raramente me envolvia nas lutas, mas as pancadas paternas eram indiscriminadas. Sobrava para todos. Essa pedagogia igualitária tinha lá sua eficiência: depois das pauladas, ficavam todos calmos, em silêncio, o que era muito difícil para os irmãos.

A infância inteira encolhido nos cantos escuros de um porão escuro. É por isso que até hoje tenho uma certa fotofobia – a propósito, vocês não poderiam devolver os meus óculos escuros? Quem sabe baixar um pouco a luz da sala? Não? Tudo bem – adiante.

É como eu disse: não lembro de terem me dado um nome. Nem sei direito que língua se falava naquela casa. Às vezes ouço um xingamento qualquer em um bairro turco de Berlim, ou um junkie de língua engrolada vem me pedir esmola em Amsterdã, e por um momento tenho a impressão de estar de volta à infância, à língua da infância. É uma experiência muito fugaz, e certamente ilusória. Seja lá o idioma que se falava naquela casa, não foi catalogado pelos linguistas. Aliás, não sei se aquilo se qualificava como linguagem: era um sistema de referências brutas e diretas, com grunhidos rudimentares para indicar qualquer objeto que por acaso estivesse na linha de visão. O mesmo som servia tanto para designar uma panela, uma enxada ou o seio da mãe.

Ah, meu Deus! Mas isso tudo é tão, tão ridículo! Desculpe, desculpe, não devia rir deste jeito – a situação não permite, eu sei. É que você me perguntando sobre minha mãe, com toda essa… essa candura! Deve ser culpa da psicanálise ruim que anda por aí. Perdoe a franqueza, mas duvido que você tenha lido Freud, Lacan ou qualquer merda dessas. E mesmo assim você imagina que, se eu falar da minha mãe, vou revelar alguma informação essencial, qualquer coisa que explique o que você supõe ser uma vida de crimes. O gênio para o desfalque, a fraude contábil, a manipulação de mercados – só pode ser fruto de alguma carência edipiana. É essa a ideia? Bom, posso contar tudo sobre a mãe – não é muito –, mas duvido que isso ajude. Era uma mulher velha, sessenta ou setenta anos. Se bem que, com aquela vida dura, decerto aparentava bem mais do que tinha. Eu era o filho preferido dela. Ou imaginava ser. Lembro de uma noite – é a lembrança mais antiga que eu tenho – em que ela me puxou pelo braço quando o pai estava chegando e me arrastou até um canto do porão. Era o canto mais úmido, a água se acumulava ali em uma poça fedorenta, e talvez ela esperasse que o pai não viesse tão longe, que não quisesse se sujar de lama, mas não funcionou, e depois de bater nos irmãos todos ele veio na nossa direção, com aquele gingado esquisito dele, curvado para não bater a cabeça no teto baixo, um bruto pedaço de pau na mão, cheio de pregos, e a mãe me abraçou, me apertou contra o barro do chão e me envolveu com o corpo, eu só sentia o baque surdo do pau baixando nas costas dela – a mãe nem gemia –, eu era muito pequeno e chorava muito, de pavor, de medo que ela não aguentasse mais e o pau caísse nas minhas costas, mas ela nem gemia, e mesmo debaixo de pancada quis me consolar, me calar, e passou a mão por trás da minha cabeça e me puxou mais para o peito, me encheu a boca com um seio, um pedaço de carne flácida que eu mordi – e mordi com desespero, com força, até sentir o gosto do sangue, e foi só aí que ela chorou, que ela gritou de dor. E o pai parou de bater.

Acho que tinha amor nesse gesto. Que eu retribuía, é óbvio – que filho não ama a mãe? No dia em que me levaram para o pavimento de cima, onde muito raramente eu era admitido, e a mão calosa do meu pai me empurrou para o cadáver em cima da mesa, o corpo esquálido, nu, e eu abanei as moscas do rosto dela para beijar a testa, a boca gelada – naquele dia eu chorei. Não significa muito: se ela ainda estivesse viva na noite em que fui embora… Mas não, ela estava morta havia anos. Ainda bem.

Calma, vou falar dessa noite em seguida. Primeiro, tenho de explicar mais uma ou duas coisas, para você entender porque eu precisei fazer o que fiz. Porque eu era diferente do resto da família. Não sou pretensioso de dizer que eu era melhor do que eles, mas não tem dúvida de que eu era qualquer coisa de novo naquela casa. Os outros deviam desconfiar, deviam saber que eu era um perigo, uma ameaça. Acho que é por isso que me proibiam de sair. Os irmãos todos iam lá fora, caçavam, colhiam frutas, sei lá que merda faziam. Eu ficava no porão, depenando galinhas, estripando porcos, amassando pão. Fazia bem essas coisas, melhor do que as irmãs desajeitadas que não conseguiam descascar uma fruta sem cortar a palma da mão. Mas não é por isso que me impediam de sair (até a mãe se colocava na minha frente, com a mão levantada ameaçando um tapa na cara, quando eu chegava muito perto da escada que levava ao térreo). Parece que eu já havia tentado fugir antes. Não era nada que eu lembrasse. Se aconteceu de fato, foi quando eu era muito, muito pequeno, mas o pai, a mãe, os irmãos falavam disso – não sei em que termos, pois, como eu disse, a língua da casa era muito rudimentar. Talvez a história toda fosse inventada, uma lenda criada pela família para policiar a minha rebeldia. Porque eu era diferente, não tenho dúvida. Não tão primitivo, nem tão sujo, tão vermelho.

Os irmãos – eles eram outra coisa. Uma gentinha estúpida, sempre com o punho fechado, rosnando uns para os outros. Mas nunca para o pai: encolhiam-se, chorosos, quando ele gritava com eles, batendo no peito. Falo de “irmãos”, genericamente, mas a palavra talvez só sirva para os mais velhos, para aqueles que, como eu mesmo, nasceram quando a mãe e o pai estavam começando a família. Os demais guardavam uma relação de parentesco muito confusa uns com os outros.  Irmãos, sobrinhos, netos – como saber quem era quem? Era uma pequena tribo, furiosamente endogâmica, incestuosa como nunca se viu. À noite, depois que a última vela era soprada, pulavam uns sobre os outros, e se esfregavam e se mordiam e se batiam. A mãe ainda conseguia imprimir um pouco de disciplina nessa promiscuidade. Depois que o pai pegava no sono, ela descia, deitava no barro, abria as pernas. Os irmãos a respeitavam – faziam fila, por ordem de idade. E a mãe quase sempre prenhe – às vezes, com a barriga para estourar e um dos filhos resfolegando no meio das pernas. A mãe morreu de parto, como era de se esperar. As irmãs também estavam sempre prenhes, e as que ainda não mostravam barriga era disputadas a socos e dentadas. Sim, porque não era só o sexo: os machos queriam filhos. Mesmo que ninguém ali soubesse quem era pai de quem, e mesmo que as crianças nascessem com a nuca grossa e a espinha curva, sindrômicos, hemofílicos, oligofrênicos, monstruosamente prognatos – eles queriam mais – eles queriam continuar.

Agora você faz silêncio. Não precisa me olhar com estranheza. Eu não participava daquilo. Jamais. As mulheres da família me davam nojo, a mãe inclusive. Sempre com o rosto sujo de terra, do cuspe do irmão, da porra do pai – sim, porque ele gostava muito de arrastá-las escada acima, para comê-las no chão da sala. E as tábuas rangiam, rangiam por horas. Você acaba se acostumando. Eu dormia. Se vocês conseguirem me condenar – o que duvido –, é o que vou fazer na prisão: dormir.

Isso não quer dizer que eu fosse feliz. Eu suportava a situação, mas cada dia ficava mais evidente que eu tinha de sair, de fugir. Difícil. Durante o dia, a porta que dava acesso ao porão ficava trancada por fora. À noite, quando o pai e os irmãos voltavam do trabalho, era quase impossível escapar: um deles sempre dormia ao pé da escada, e agarrava meu tornozelo quando tentava passar por cima dele, e gritava para os outros que eu estava tentando fugir, e os outros vinham e me moíam de pancada. Tentei essa fuga duas vezes, e até poderia dar sorte se tentasse de novo. Mas então comecei a pensar no que viria depois de sair da casa. Eu não conhecia nada lá fora. Nas poucas vezes em que me deixaram subir ao térreo, o que vi pelas janelas foi uma paisagem muito plana e ensolarada, imensas pradarias, com um ou outro bosque esparso. Ou seja, haveria poucos lugares onde se esconder. A luz ofendia meus olhos de morcego – mas meus irmãos me veriam de longe, me buscariam de volta, me encheriam de pancada, e me entregariam para o pai me encher de pancada, e eu voltaria ao porão, fraco, humilhado, quebrado. Precisava achar outro jeito. Pensar em um plano.

A oportunidade se apresentou na forma de uma menina de uns nove ou dez anos, minha irmã ou sobrinha, talvez irmã e sobrinha. Estava desabrochando para o sexo (essa precocidade patológica era comum na casa) e, não sei por quê, tomou um interesse especial por mim. Talvez porque eu fosse o mais difícil, a criatura especial daquele porão. Eu passava mais tempo com as mulheres do que qualquer outro homem da casa, mas não era querido por elas. Ressentiam-se porque eu as refugava. A menina, não. Era persistente. Eu a empurrava e batia na sua cara – eu a derrubava no chão e a cobria de pontapés. E mesmo assim ela voltava, ela sempre voltava. Não era nada sutil, e nem aquele era um lugar para sutilezas: me acordava à noite, chupando meu pau, ou esfregava as tetinhas nascentes na minha cara quando eu estava ocupado cortando a carne em tiras para a defumação. Era uma criaturinha feroz: arranhava e mordia os outros quando tentavam chegar perto dela. Os irmãos eram fortes, e no início ela quase sempre perdia a parada. Mas foi ficando cada vez melhor na autodefesa. Tinha uns dentinhos pequenos, afiados: arrancou a orelha do garoto mais velho que conseguiu derrubá-la no chão. Veio para o meu lado e cuspiu a orelha no meu peito, como um gato que traz um rato morto para o dono. Era a mim que ela queria. Eu era um adolescente, com os hormônios imperiosos de todo adolescente, e não resisti mais: botei a menina de quatro. Não foi por fetiche ou tara. Desde então, nunca mais pratiquei o sexo anal, e nem tenho o desejo de fazê-lo. Achei a experiência um tanto aviltante, a aspereza do reto, o cheiro de fezes. Mas eu não podia correr o risco de fecundá-la, de gerar outra criatura de testa estreita e olhar obtuso. No final, foi uma felicidade que tenha acontecido desse jeito. Muitos anos depois, eu leria alguma coisa parecida num livro do Philip Roth, a única lição útil que já aprendi da literatura – aliás, seria a única, se eu já não soubesse disso por experiência própria: quando você come a bunda de uma mulher, ela fica sob o seu poder.

Não era um plano elaborado, e a rigor eu nem precisaria de ajuda para executá-lo. Mas com ela ao meu lado, o tempo de execução caía pela metade, e assim a possibilidade de alguém levantar o alarme também diminuía em cinquenta por cento. O mais difícil não foi convencê-la a me ajudar – foi fazê-la entender o que eu queria. Eu botava a faca na sua mão, noite após noite, e sinalizava, fazia mímica para que me entendesse melhor. Tinha de fazer isso de forma relativamente discreta, para que os outros não notassem. Felizmente, os irmãos também eram lentos no entendimento.

Ela não queria, nunca pensou em fugir. Nem entendia direito por que eu precisava sair da casa. Mas ela estava ali para fazer o que eu quisesse. E fez.

Como sempre acontecia depois de um dia de trabalho, eu estava exausto na hora em que deitei no colchão de palha. Fiquei beliscando o braço para não pegar no sono, e quando isso não adiantou mais, pressionei a ponta da faca contra a coxa – ficou uma cicatriz, pequena, dessa noite, e tenho orgulho em dizer que fui eu mesmo, ninguém mais, que causou esse único ferimento de batalha. Esperei cessar os últimos barulhos de cópula, as últimas disputas entre os machos, os últimos gemidos de estupro. E acordei a menina. Começamos pelo irmão mais velho, o mais forte, e mostrei a ela como fazer: a mão na boca, e ao mesmo tempo a faca contra o peito, no lado esquerdo, entre duas costelas, e era só deitar sobre a faca, com todo o peso do corpo. Ela foi até o lado oposto do porão e começou a trabalhar. Eu segui os colchões do meu lado da sala. Alguns casais dormiam próximos ou abraçados, e o segredo era começar pela mulher – os homens tinham o sono mais pesado. A menina era silenciosa, eficiente, melhor até do que eu, que às vezes errava o ponto da facada, e tinha que tentar de novo, e de novo, e no meio tempo segurar o ferido que esperneava, mantê-lo calado e preso. O último acordou antes da hora, ficou acuado contra a parede, urrando, de punhos erguidos. Era um garoto de uns sete, oito anos, não teve a inteligência de procurar uma faca, uma acha de lenha, uma cadeira para se defender, e estava mancando de uma perna, por causa de um acidente de caça. Não foi difícil derrubá-lo.

Meu temor era que os berros tivessem acordado o pai. E foi o que aconteceu. Quando subimos a escada, ele estava esperando de pé, atento, armado com uma pá. Congelei – eu era mais jovem, talvez mais forte que o pai, mas ele me inspirava medo, não posso negar. A menina teve uma presença de espírito que eu não suspeitava nela: se colocou de joelhos, e com muito jeito, falando umas bobagens obscenas, botou o pau do velho na boca. Foi o que bastou para confundi-lo, desarmá-lo. O pai não estava sozinho. Na cama dele, tinha outra fêmea, sua filha, ou neta, ou filha e neta, e ela se levantou berrando, enciumada, mas nessa altura eu já havia recuperado o controle e saltei sobre ela. Rasguei o pescoço com a faca, de lado a lado, e ainda estava ouvindo ela estertorar quando o velho soltou um berro bestial, e caiu no chão, as mãos entre as pernas. Os dentes, ah, os dentinhos carnívoros da menina! Juntei a pá do chão, e bati na cabeça dele – uma, duas, quatro, dez vezes – e quando parei ele ainda estava berrando, quer dizer, eu tinha a ilusão de que ele ainda estava berrando, porque a crânio do pai era uma pasta primitiva, suja, vermelha, e a menina me tomou pela mão, e me beijou, gosto forte de sangue, e me puxou para a cama onde havia pouco o velho e outra menina copularam, e me disse coisas no ouvido – o nome, ela deve ter me chamado pelo nome, como a mãe talvez chamasse, mas eu não sei, não lembro o que ela disse – e ela abriu as pernas e eu entrei, a primeira vez pela frente, você vai se escandalizar mas não me importo: foi bom, muito bom – foi, sem exagero nenhum, liberador. Para mim, pelo menos, porque foi um espasmo, uma descarga elétrica, rápida, muito rápida, não sei se ela teve tempo de chegar lá, e não perguntei, só envolvi o pescoço dela com as mãos, como quem vai acariciar, e apertei, apertei forte, ela esperneou e tentou furar meus olhos com as unhas, arranhou todo o meu rosto, mas eu era mais forte, eu era diferente – eu era melhor, e não teria uma aberração por filho.

Quando acabou, estava amanhecendo, uma luz suave que dissolvia a penumbra imunda em que sempre vivi. Eu tinha as mãos, os braços, o peito, o sexo cobertos de sangue. Não sei como estava a minha cara, porque a casa não tinha espelho. A casa não tinha nada: nem espelho, nem livros, mapas, nada. Eu não sabia como era meu rosto, e não sabia como era o mundo (e olhe o que sou hoje: não disse que era uma história de superação?). Nesse tempo todo, enquanto trepava com a menina, enquanto apertava a sua garganta, eu ainda ouvia o grito do pai. Mutilado, emasculado, morto, e berrando ainda – era um pesadelo sem fim. Mas não, não era o pai: deitado na cama, fui deixando a vertigem passar, e me dei conta de que o barulho vinha do porão. Não era um berro adulto, era um choro. Ou dois, três, vários choros. A menina e eu – nós só havíamos dado conta dos crescidos. As crianças de colo, os bebês ainda estavam lá embaixo, com sede, com fome, naquele porão enlameado. Devia ter voltado com a faca, ou a pá – mas voltar não era mais possível, agora eu tinha de completar a fuga, alcançar a vitória. Me ergui sobre os pés, ainda curvado e cambaleando, mas logo me pus firme, a espinha ereta, cabeça erguida, olhar confiante, para finalmente sair daquela caverna, ganhar o mundo.

Abri a porta, e era a África.

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