Lucas Maciel
Me escuso de apontar os meios empregados pelo Soares para invocar o Demônio. Digo que o invocou, e é quanto basta. Acrescento ainda duas coisas: primeiro, que era uma sexta-feira escura, fria e silenciosa, e que o relógio apontava as três da madrugada. Segundo, que a palestra versava sobre um assunto específico – a vingança.
“Eu quero me vingar de todos os meus inimigos!”, disse Soares, com os olhos em chamas.
“O que me dará em troca?”, perguntou o Diabo.
“O que quiser: minha alma, ou seja lá o que for”.
“Pois bem, cobrarei meu próprio preço. Farei o que me pede. Você verá, ou melhor, você sepultará seus inimigos!”
E, ao dizer isso, sumiu, deixando atrás de si um rastro de fumaça e um cheiro repugnante de enxofre. Soares riu-se, satisfeito. É verdade que, quando lhe disseram que ele poderia fazer um pacto, teve lá as suas dúvidas. Ainda assim, aceitou fazer todo o procedimento, e, quando o bicho tinhoso lhe apareceu, não podia recuar. Era necessário ir até o fim. Afinal, ver os seus ofensores descerem à campa, rir sobre os corpos deles, atirar-lhes um último escarro – para tudo isso, bem que valia comprometer a sua alma. Ele daria a alma, mas ficaria com o resto: a casa, o dinheiro, a loja de ferragens, os filhos e a esposa. “A alma”, pensava, “é algo que só serve após a morte, e eu estou vivo”.
Esse arrazoado não era de todo um equívoco. O erro consistia somente em achar que o preço que pagaria seria a sua alma, coisa que, como ele supunha, só se usa quando não há mais nada para usar. O Diabo, entretanto, cobrou outro preço. Começou por acometer a família do Soares com uma doença pestilenta. Ele assistiu aos filhos e à mulher em completa agonia até a morte. A dor, já de si suficiente para atordoá-lo, foi seguida ainda por outras más notícias: a mesma peste que ceifou a vida de seus familiares levou à ruína o seu negócio, matando empregados e clientes. O governo mandou fechar as lojas e isolar as pessoas em suas casas. Uma epidemia assolou a cidade por três anos. Falido, enlouquecido e magoado com o destino, Soares passou a ganhar o pão trabalhando como coveiro, trabalho, aliás, muito agitado nos tempos da peste.
Ele, que outrora fora robusto, de bigode grosso no rosto rechonchudo e avermelhado, estava agora ressequido, com os olhos amarelados e um sorriso de demente. Todos os dias, ao sulcar uma cova, cantava uma cantiga triste, um murmúrio que parecia vir de além-túmulo e emprestava ao enterro um aspecto ainda mais sombrio.
Um dia, mandaram-lhe abrir quatro covas. Ele começou o trabalho sem detença. Os corpos chegaram para ser enterrados à tarde: uma família. Ele os conhecia bem. Era Bezerra, seu antigo concorrente, a mulher e os dois filhos. Por muitas vezes, antes da peste, desejara vê-los rebentar. Mas agora que os via encerrados naqueles caixões de madeira, não sentia nada além de compaixão. Foi com muito pesar que deitou terra sobre eles.
No dia seguinte, mais covas. Uma para o seu vizinho, o Batista; outra para o Manuel, com quem já rivalizara em tempos pelo amor de uma moça; mais uma para o Duarte, com quem, há anos, possuía uma demanda… enfim, toda gente por quem já nutriu sentimentos de vingança estava morrendo.
Com efeito, quando o último deles foi depositado na cova, uma cova imunda, cheia de água, ele olhou desvairado ao redor de si e viu, sentado numa lápide, o Demônio vestido de luto e lhe acenava com a mão. Naquele momento, caíram-lhe as escamas dos olhos. Largou a pá e, levando ambas as mãos à cabeça, com os olhos inflamados, despregou um sorriso terrível no rosto. As pessoas que acompanhavam o enterro se arrepiaram. E Soares, com o cérebro febril, saltou, pulou, apunhalou o ar, dando várias piruetas grotescas, até que, por fim, precipitou-se na cova ainda aberta do seu último inimigo, abraçando-se ao caixão, que não largaria jamais!
Ele morrera ali mesmo. Para economizar uma nova cova, deram ordens de enterrarem-no junto do caixão em que estava agarrado. Depois disso, as testemunhas do espetáculo terrível deixaram o cemitério devagar, tristes e profundamente meditativos. Aquele caso renderia assunto por muitos dias na cidade. Quem sabe até viraria notícia de jornal. Não é todo dia que um coveiro morre abraçado a um caixão.
Quanto ao Diabo, que assistira empedernido a toda aquela cena ao longe, convenceu-se a deixar o cemitério por último, não sem antes deitar os olhos sobre a cova em que jazia o Soares e sorrir.