Alexandre Cavalo Dias
Estela fazia malabarismos com os inúmeros ingredientes e garrafas, organizados no balcão do bar e nas prateleiras ao fundo. Destreza de quem desenvolveu paladar e olfato apurados. Concebia e misturava elementos variados para criar sabores inebriantes. A habilidade cativava os clientes como o público em um show. Para além dos truques, o que fazia diferença era a mágica da artista. Estela olhava dentro dos olhos da pessoa e sua intuição fervilhava: enxergava anseios, medos e desejos. Podia-se sentir o calor brotando do seu corpo, um brilho invisível. Estela ficava quase etérea, espectral, então respirava fundo e fazia a bebida perfeita. Quem provava a delícia líquida sentia emoções distintas e únicas. Era o reconhecimento de lembranças, sentimentos ou mesmo histórias esquecidas em algum ponto do inconsciente. Toda taça vinha carregada de sensações fortes e pessoais. Se o Sensitive Bar tinha uma alma, era a bartender Estela. Ela fazia pessoas de toda parte da cidade se debandarem e formarem uma fila na porta do pequeno estabelecimento, que não passava de uma garagem na sua origem e agora era o portal para um universo onde a bebida especial trazia benesses tão eficazes quanto uma sessão de terapia.
A rotina dura de trabalho começava cedo. As manhãs eram reservadas para visitar mercados: encontrar, encomendar e comprar os muitos ingredientes que suas misturas originais exigiam. Ervas aromatizantes, frutas exóticas e constrangedoramente caras. Um abacaxi podia custar um rim e ser tão pequeno quanto. Durante a tarde, Estela preparava sucos, porções de doces, chás, reduções, espumas; inventava novas receitas e tudo o que se pudesse imaginar. À noite era hora do show. O pouco tempo que lhe sobrava, ela usava para estudar. Todo o trabalho compensava. Estela amava sua profissão. Não existia lugar melhor do que atrás do balcão – mais que isso, não existia outro lugar que a fizesse se sentir tão bem quanto o pequeno palco para exibir sua arte e fazer a mágica acontecer. Tendo as prateleiras de bebidas como cenário e o balcão à frente para separá-la das pessoas, ela se sentia completa. Era seu jeito de fazer a diferença neste mundo louco. Entre garrafas e copos, Estela sentia-se única, com superpoderes, soberana do seu pequeno reino de seis metros quadrados, onde criava e manipulava as forças ao seu redor com maestria e benevolência. Claro que obsessões, boas ou más, vêm carregadas de delícias e dissabores na mesma proporção. Porém, enquanto trabalhava, Estela não precisava pensar em outra coisa. Esquecia suas mazelas e crises e distraía a cabeça da loucura persistente. Seu trabalho era se concentrar na pessoa à sua frente e dar a ela o inesperado; não precisava pensar na própria vida, era pura empatia emocional. Era só buscar fundo o sabor que faria o cliente sentir emoções. Se serão lembranças boas ou más? Só Estela poderia prever, e esse segredo ela levará para o túmulo, uma dádiva e um infortúnio ao mesmo tempo.
“Preciso de uma bebida. Qualquer coisa forte”, Ricardo entrou no bar com aspecto desgrenhado. A bartender não o deixou acabar de falar. Olhou para ele com firmeza.
“Boa noite pra você também”, começou Estela, sem se abalar, e continuou limpando os copos. “Rico, você sabe que não existe ‘qualquer coisa’ no meu bar. Falar assim é quase uma ofensa. Vou relevar dessa vez, só porque você está com essa cara de louco”.
Estela não estava levando Ricardo a sério até apertar uma de suas mãos e olhar para ele com intensidade. O contato não durou mais que uns poucos segundos, o suficiente para ela ler os pensamentos desconcertantes do rapaz.
“Consegue esperar um minuto?”, completou Estela, mudando de tom. Havia urgência e ela compreendeu perfeitamente a gravidade da situação. “Vou preparar algo especial para você”.
Ricardo apenas balançou a cabeça, aceitando. Não tinha vontade de falar. Não tinha vontade de mais nada. Só queria tentar afogar a tristeza com uma bebida que o levasse ao esquecimento. Estela sentiu na própria pele o momento difícil que Ricardo atravessava. A confusão mental em que ele havia se metido penetrou fundo em seus pensamentos, fazendo com que ela se desconcentrasse. Estela sabia que a infelicidade fazia parte da vida; mesmo assim, uma tristeza infinita a invadiu. Um vazio de morte. A empatia incontrolável era uma das suas muitas dores. Teve que se concentrar para não cair na armadilha da própria cabeça. Era perigoso sentir tão a fundo as emoções alheias. Elas podiam se misturar tanto com as suas próprias que ficaria impossível discernir quais eram de quem. Estela fez força para voltar à realidade.
Não era uma namorada ou uma pessoa da família que o atormentava, queixas comuns no bar. Uma séria traição vinda de um amigo de longa data o tinha abalado completamente. Era como olhar para um campo devastado. Não havia cor, nem traços de alegria, só desespero. Ricardo era um desses clientes que viraram amigos com o tempo. Estava chegando aos cinquenta anos, que pareciam menos em dias normais. Naquela noite, ele se sentia muito mais velho e abandonado. Estela olhou em volta, buscando os ingredientes que podiam aquecer um pouco o frio que cobria o coração do homem. Precisava de alguma coisa com sabor intenso e rústico, encorajador. Gin, vermute, licor, bitter e casca de limão. Estela dispensou a azeitona. Mexeu com uma colher, como eram feitos os primeiros dry martínis. Não serviu a bebida em uma taça, mas em um copo alto, onde caberiam duas doses. Ricardo precisava, além de coragem, de tempo para se recuperar. Não era uma bebida para se tomar de um só gole; enquanto estivesse bebendo, ele não faria nenhuma bobagem.
Rico tomou o drink e as lágrimas represadas saltaram de seus olhos, caudalosas. Estela sentiu uma lágrima solitária escorrer por seu próprio rosto. Teoricamente, ela sabia que não podia se dar ao luxo de tantos sentimentos que não eram seus. Não dava para carregar o mundo nas costas. Entendia toda a teoria, mas na prática era diferente. Tinha os poderes, podia usá-los, porém eram descontrolados, sem respeitar as vontades da tutora. Era refém do próprio dom. Ser contaminada por tudo o que sentia era parte intransferível de sua vida. Acabaria doida se não mantivesse a mente quieta. Loucura devia ser lugar-comum apenas fora do seu reino líquido; atrás do balcão, ela precisava ser a pessoa mais lúcida do mundo. Esperou Rico acabar de beber e completou a dose, o rapaz agradeceu e foi para a penumbra, em um canto do bar. Estela não se sentiu aliviada. Manteve-o sob vigilância. Sabia que jogara um bálsamo sobre a ferida. Ele precisaria de mais algumas doses para se acalmar completamente. Apenas uma não era o suficiente para mudar o ânimo de Ricardo, mas dava um pouco de tempo para pensar e não tomar nenhuma atitude precipitada e definitiva que pudesse piorar a situação. Um pouco de bebida forte, lágrimas e paz momentânea eram tudo o que ela tinha para oferecer. Um paliativo, distante da cura.
A mágica do Sensitive Bar não era um truque barato. Era magia de verdade, antiga e poderosa. Misturar beberragens, ervas, frutas e plantas medicinais sempre fora um conhecimento humano muitas vezes desconsiderado e demonizado. Se fosse outro o período da história, Estela teria sido acusada de possessão demoníaca e queimada na fogueira da Inquisição junto com suas irmãs. Hoje, era aceita socialmente e até festejada. Bruxaria moderna.
Estela sabia que o homem voltaria ao balcão para desabafar. Esperou o álcool fazer efeito, o que não demorou muito. Mais duas doses e ele se sentou perto da bartender.
“Estela, o que você faria se seu melhor amigo fodesse a sua vida?”
“Não sei, Rico”. Ela ficou pensativa e recomeçou a trabalhar, sem desviar o foco da conversa. “Perdoar está fora de questão?”
“Posso perdoar. Todo mundo erra”.
“Então, qual o problema?”
“Posso perdoar, só não consigo seguir em frente. Estou me sentindo sem chão. Ele arruinou minha vida. Vou ter que começar do zero, e com a porra da minha idade? O que vou fazer? Estou esgotado. Não posso nem pagar o que estou bebendo”.
“Sinto muito. A bebida fica por conta da casa. Consigo imaginar o que é perder tudo e ter que recomeçar. Essa dor que sentimos quando estamos impotentes diante da vida”.
Estela fez uma pausa para pensar no que dizer a seguir. “Acho sempre mais fácil consertar o que está errado do que ter que refazer do zero. É possível?”
“Impossível”, murmurou Ricardo, de cabeça baixa. “Pior, nem sempre há vontade de salvar o que quebrou. Ou salvar qualquer coisa. Eu confiava nele e ele me usou. Talvez um ponto final seja o melhor”.
“Muito definitiva, essa sua vontade”.
Estela estranhava o tom do amigo. Rico levantou-se e girou o corpo em direção às escadas que levavam ao banheiro, no andar de cima. Antes de Estela dar por encerrada a terapia e voltar ao trabalho, afagou seu ombro, na tentativa de reconfortá-lo. Veio ao seu pensamento um vermelho líquido, que quase a afogou. As luzes de sua mente se apagaram por um segundo. Estela largou Rico como quem solta o cabo de uma panela que está queimando a pele. A tontura nauseante quase a derrubou. Ela fez força para se recompor. Que merda ele vai fazer?, pensou, enquanto recuperava os sentidos.
Outras pessoas exigiam a atenção da bartender, pedindo bebidas. Marcos lançou o olhar de E aí? Vamos atender aos clientes ou ficar de conversa? Estela ignorou o patrão para ir atrás do amigo. Subiu as escadas aos tropeções, tentando alcançá-lo, mas ele já estava trancado no banheiro. Ela se fechou no gabinete ao lado, parede com parede. Baixou a tampa e sentou-se, apurando o ouvido e os sentidos. Tentava adivinhar o que se passava do outro lado.
“Rico?”, perguntou, timidamente, Estela.
“Um cara não pode mijar em paz?”
“Se for só mijar, pode. Mas se ele tem merda na cabeça, eu não posso deixar que espalhe pelo meu bar”. Estela não se deixou intimidar pela aspereza do amigo.
“Do que você está falando?”
“Não sei exatamente o que você pretende, mas não vai ser aqui dentro. Não comigo por perto”.
No outro banheiro, apenas silêncio.
“Rico? Fala alguma coisa”. Estela sentia a tensão pouco a pouco relaxando, como um elástico muito esticado sem quebrar sendo cuidadosamente recolhido. Intermináveis segundos se passaram.
“Rico?” Estela ouviu um suspiro profundo, seguido de um clique baixo. A tensão se foi. Ela sentiu todo o vermelho se esvair. O ruído baixo era de um revólver sendo desarmado. O gatilho recolhido. O cano da arma voltando ao lugar, vagarosamente.
“Estela, me faz um favor?”
“…”
“Vou deixar uma coisa aqui. Desce e pede para o Marcos sumir com isso”.
“Sim, dou um jeito”.
Estela soltou a respiração, aliviada.
Marcos passeava pelo bar, distribuindo simpatia e fechando a conta dos clientes. Apesar do ar bonachão, entendia que precisava de dinheiro para manter seu negócio, principalmente por Estela, sua principal estrela nos coquetéis. Rico passou por ele sem olhá-lo nos olhos, mas o dono do bar não o deixou seguir sem se despedir.
“Já vai?” Marcos se colocou entre Rico e a porta de saída. Só precisava de metade do corpanzil para isso. Ricardo estava tão abalado com sua segunda chance que não ouviu o amigo. Parecia embriagado.
“Você está bem para ir embora?” Marcos o segurou. Tomava conta de seus clientes. Sentia-se, até certo ponto, responsável por eles.
“Vou a pé, tudo certo”. Rico olhou para o chão e, depois, para Marcos. “A Estela quer falar com você lá em cima”. O homem deu as costas e passou entre a porta e o dono do bar, cambaleando.
Ele quer recomeçar e não está dirigindo hoje, duas ótimas ações para um fim de noite. Chegará bem aonde quer que vá e amanhã terá uma ressaca monstro para se preocupar. Todos os outros problemas vão parecer pequenos perto da dor de cabeça.
Marcos sorri dos próprios pensamentos e olha para cima, tentando adivinhar o que Estela quer. Não tem imaginação suficiente para, sequer, intuir o que se passou com Ricardo.
“Ela vai ter que esperar um pouco”, disse, em voz baixa. Estela pegou a arma ainda quente, depois de ter ficado tanto tempo nas mãos de outra pessoa. Não sabia exatamente o que fazer com aquele animal feroz. Segurava o revólver, passando da mão direita para a esquerda. Calculava o peso do metal, sentindo o cheiro de WD40, que a remetia à infância, trazendo lembranças da mãe e de sua máquina de costura incansável. Era o mesmo lubrificante usado na máquina. Estela sentia um misto de repulsa e atração pelo odor, uma recordação tão emocionante quanto contraditória. Sua mãe era muito religiosa e detestava a violência das armas de fogo. Mesmo assim, uma ideia sem lógica começou a se formar, rastejando como uma serpente em seu cérebro. A matemática de uma cabeça perturbada. Arma carregada é igual à solução dos problemas, tanto da sua segurança pessoal quanto de outro, definitivo e terrível. Uma equação fácil de montar. Estela acariciou a arma e a colocou no cós das calças, atrás da blusa. Ao sair do banheiro, deu de cara com Marcos e levou um susto.
“Que porra aconteceu com o Rico?”, começou Marcos. “Saiu daqui com cara de louco e disse que eu devia falar com você”.
“Fica tranquilo. Já está resolvido”.
Marcos a encarou, apertando os olhos como quem queria ler a mente impenetrável de Estela.
“Desmancha essa cara, que não fica boa em você. Tem certeza?” Marcos sabia que tinha alguma coisa acontecendo bem debaixo do seu nariz. Podia farejar que estava sendo enrolado. Ninguém é dono de bar por tanto tempo sem desenvolver esse olfato estranho para mentiras.
“Sobre sua cara, tenho certeza”. Estela faz piada para distrair o perdigueiro que existia dentro do patrão. “Relaxa. Tudo resolvido. Vamos voltar ao trabalho?”
Estela tomou a frente do chefe e começou a descer as escadas. Não estava suportando encarar o olhar inquisidor de Marcos. Mais um pouco e ela se trairia, e não queria perder a primazia da arma. Se Marcos soubesse, a pressionaria para se livrar da pistola.
Marcos ainda observou sua estrela descer as escadas. Deu de ombros e seguiu atrás da garota. Se ela não queria contar, ele entendia. Tinha aprendido a respeitar a privacidade de Estela até certo limite. Por enquanto, ela estava dentro do limite.