O homem-árvore desfolhado

O Motucu
Ilustração de Vinícius Galhardo

Albert von Brunn

O homem era uma surpresa na luz da manhã, e a manhã, sim, era a infância: terra nua, horizonte sem fim. Carregava um tabuleiro pesado, o rosto dele mal aparecia no meio de frutas e galhos, frutas arrancadas das árvores de algum quintal ou terreno baldio, ou da floresta que nos cercava,

escreveu Milton Hatoum no seu ensaio “Margens secas da cidade”.

O homem-árvore foi desfolhando, perdendo galhos, sua força vegetal arrefeceu, as frutas, antes polidas, perderam o brilho, alguma praga roeu o arbusto aéreo. O sol incendiou as manhãs frescas, ruas e calçadas, a floresta que nos cercava, tornou-se um caos de casebres e palafitas, os pequenos caminhos de água secaram. Há dois anos vi o homem-árvore e agora o perdi de vista. O homem era só tronco, esquálido, sem voz, com um olhar resignado voltado para o chão.

O homem-árvore, alegoria da Amazônia, aparece no primeiro romance de Milton Hatoum, Relato de um certo oriente (1989), como uma espécie de fauno e vira um leitmotiv na obra do escritor manauara: freneticamente aplaudido e fotografado pelos turistas, cai de borco no Rio Negro.

Milton Hatoum publicou até agora quatro romances sobre a Amazônia: Relato de um certo Oriente (1989), Dois irmãos (2000), Cinzas do norte (2005) e Órfãos do Eldorado (2008), além de uma trilogia sobre o exílio, Noite da espera (2017), Pontos de fuga (2019) e Dança de enganos (2025). Não existe na sua obra um manifesto explícito sobre o meio ambiente. No entanto, não faltam as alusões à destruição da Amazônia, principalmente em relação aos planos de desenvolvimento do regime militar. Em 1979 foi publicado pela Livraria Diadorim em São Paulo um livro de fotografias com um prefácio de Milton Hatoum em que o autor condenou explicitamente essa política com suas consequências nefastas para a Amazônia:

é provável que a Amazônia, nestas duas últimas décadas do século XX viva a cerimônia macabra do apogeu desta recente devastação […]. Tempo de cardumes aéreos, cheirando pólvora, descendo o rio à deriva. Tempo de Missa Negra, como a água escura do maior tributário do Amazonas, o Negro, rio onde navegam os índios. Manoa, Manau, Manaus, Cidade de ouro que o colonizador ambicionava sem saber, talvez, que Manaus, a tribo de origem Aruak, significa morto. Ou mais que morto, mortíssimo.

Concluindo, Milton evoca o demônio Motocu: “como o horizonte que Motocu, o demônio com pés virados, imaginava, com suas investidas na selva, incendiando o próprio rastro, descobrindo a saída do labirinto e soterrando o marfim da história. O mito caiu sobre a terra. No seu fundo, permaneceram os ossos. E à superfície, o deserto”.

Na tradição europeia, a floresta é o contraponto da civilização. Penetrar na selva é como transpor o limiar entre o aquém e o além. A beira da floresta é, ao mesmo tempo, o fim do mundo colonizado e o início da natureza selvagem e, na tradição cristã, o covil dos demônios. Na obra de Milton Hatoum, a floresta é a fonte do amor, da vida e de um renascimento possível. Mas a devastação é irremediável – resta apenas a memória de um paraíso perdido.

A Amazônia, hoje mais que nunca, torna-se um espaço-chave para o prosseguimento da aventura humana no planeta Terra. A consciência desse processo histórico é muito mais antigo do que a crise na região, desencadeada pelo regime militar nos anos 1964-1984. Nos romances, contos e ensaios de Milton Hatoum, dois mitos personificam os extremos de uma tragédia que acaba no Apocalipse: o homem-árvore desfolhado e o diabo Motocu. Só nos resta a lembrança da Amazônia de Milton Hatoum – um mundo perdido para sempre.

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