manifesto contra a felicidade eterna

Hieronymus Bosch, "Jardim das delícias terrenas" (detalhe) (1504)
Museu do Prado, Madri

Júlio César Bernardes

RETRATO

Mamãe não leu Moby Dick nem Os Miseráveis
meus irmãos não se importam com clássicos russos
papai gostava de Chico Bento
meus avós de Roque Santeiro.

Os amigos de infância ficaram no interior
os atuais não viveram a escola pública:
admiram meu português sem saber que li
o primeiro jornal aos vinte anos.

O trabalho, que paga bem,
é alheio ao estudo e ao desejo.
A família não entende o que faço há
dez anos na Universidade.
Colegas de trabalho tampouco.
Amigos condenam o ganha-pão.

Tenho pouca gente a quem mostrar
minhas pesquisas, menos ainda poesia,
ninguém pra comentar Roque Santeiro.

Os companheiros que me perdoem, se puderem,
mas às vezes, quando bate essa
solidão filha da puta,
só consigo pensar:
maldito boom das commodities.



BUSINESS PLAN

É claro que não leem poesia
e a culpa também é nossa:
um terço do mercado é autoajuda
outro terço é religião.
A gente não tem como
competir
nem com Deus
nem com o ego humano.

Vamos sabotar a satisfação
a obsolescência precoce do prazer
e explorar a oferta inelástica
de conformidade.

Tristeza Gourmet, vão nos acusar
mas não: Sustentável,
que é mais do que a alegria tem sido.

Vamos competir com o whisky,
que paga mais imposto
e com a ilusão do gozo no desprendimento
cuja cotação
há de cair.

Vamos lançar o Manifesto contra a Felicidade Eterna
e não aparecer, absolutamente,
na noite de estreia
que seria feliz demais.



manifesto contra a felicidade eterna

Quando drogas e simpatias falharem
na gestação do seu riso, venha nos visitar.
Estamos todo domingo no parque da cidade.

Quando a cobrança por equilíbrio transbordar
e a exigência por saúde emocional roer sonhos
menos fugidios, estaremos lá.

Se acaso se cansar de perdoar os outros
ou de se perdoar, ou de pedir perdão
venha nos conhecer.

Todo domingo no parque da cidade
das duas às cinco da tarde
olhamos o céu deitados de mãos dadas
provamos juntos a solidão.

Alguns choram durante a reunião
a maioria acha a terra indigna de qualquer pranto
os mais debochados sorriem
(mas só eles, e se quiserem).

Aceitamos que hoje em dia
entre a autoajuda e a pornografia
ser um pouco triste
é o único jeito
de ser um pouco humano.



religião

Eu queria uma religião
que fosse como a virada do ano.

As verdades subiriam brilhantes
e explodiriam no céu
sem desafiar o tempo.

Exatamente assim:
breves promessas de luz.

Depois os fiéis voltariam para suas casas,
satisfeitos com a fugacidade
e conscientes da escuridão.



profanadores de poemas

Sejam todos bem-vindos
ao encontro anual
dos profanadores
de poemas.

Lamentamos a expulsão recente
de dois integrantes
um por escrever sonetos
e outro por usar chinelos.

Nossa comissão de ética
analisa ainda um terceiro caso
de quem pichou abaixo a poesia
num muro branco, e somos,
todos sabem, contra o picho.

Mas sigamos às boas novas: cada
um recebe hoje dois artefatos o
primeiro são óculos que detectam
alegria demais ou tristeza demais
para evitar contágio.

O segundo é uma bomba
que imita uma caneta
pesa como caneta
escreve como caneta
mas se rimar explod

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Carne salgada

Apreciação do livro Carne salgada (Cajuína, 2025)

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