A pequena Galícia. Ato III: do outro lado do mar

Time do Galícia por volta de 1930

Jocê Rodrigues

Quando criança, eu ouvia boquiaberto os diversos relatos e causos sobre espíritos, criaturas fantásticas e assombrações, contados principalmente pela minha avó Filomena, mãe de mãe.

Histórias de almas penadas em procissão, a carregar velas e cruzes por estradas solutas, para o espanto de viajantes incautos, e de bruxas que se arrastavam pelos telhados das casas e que tinham como artimanha o dom tenebroso de deixarem suas línguas finas feito agulha para sugar o sangue das crianças em seus berços e camas. Causos de arrepiar a espinha e que ficaram para sempre marcadas na psique.

E qual não foi minha surpresa quando, já adulto, fiz contato com o folclore e a literatura galega e percebi inúmeros paralelos entre essas histórias e, por exemplo, as da santa compaña e das meigas chuchonas. Foi como ter encontrado um parente distante: no início, um certo estranhamento, mas que logo se transforma em intimidade pelas semelhanças que são passadas de geração em geração. Alguém com quem compartilhar e comparar experiências até então limitadas a um círculo que resumia a uma parcela reduzida de itagibenses que por lá nasceram e viveram na mesma época que eu.

Sobre a santa compaña, também conhecida pelos nomes de ensamio, estadea, estandinha, estantiga, hoste, antaruxada, hostilla e ronda, trata-se de uma procissão de almas penadas que carregam velas acesas enquanto se lamentam pela noite escura e que até hoje desperta pavor em pessoas de todas as idades. A respeito dela, Luís da Câmara Cascudo, em Superstição no Brasil, ensina que as almas conduzem velas acesas e outros sinais de culto e informa sobre o motivo de tanto pânico nos viventes:

No comum as almas não têm força física para suster e transportar a cruz processional que é de madeira. O infeliz viajante que deparar com uma procissão de almas será obrigado a levar a cruz, andando quase toda a noite. Na noite seguinte será irresistivelmente atraído ao mesmo local e encontrará a procissão, retomando seu papel de cruciferário resignado. Para evitar a missão, risca-se um círculo no solo ou abre-se os braços em cruz quando a procissão aparece.

Já a meiga chuchona é o tipo de bruxa mais temida em Galícia. Ela pode assumir formas variadas, como moscas e outros insetos, e, durante a noite, sai à caça de crianças pequenas para lhes sugar o sangue. Sobre elas, Manuel Murguía escreveu: “quando a criança, que era ontem o orgulho da mãe, perde cor e forças, se torna lânguido e se extingue, é que a meiga chuchona lhe sugou o sangue”.

Em Itagibá e região, o melhor modo de combater a bruxa sugadora de sangue era deixar uma tesoura de ferro próximo ao recém-nascido ou debaixo do travesseiro da mãe. Assim, quando a criatura afinasse a língua, descendo-a pelo telhado, era possível cortá-la. Diz-se que, assim que a língua lhe é decepada, a bruxa cai do telhado, morta, revelando sua verdadeira identidade.

É preciso enfatizar que não é como se a cultura local de Itagibá, produto de seu próprio imaginário e das relações com regiões mais próximas, não seja rica o suficiente ou que ela necessitasse, forçosamente, de um imaginário importado da Espanha.

Todavia, as relações transversais entre diferentes tradições é fenômeno natural, comum e indispensável. Nelas, existe troca, assimilação e difusão. É por esse motivo que a memória dessa pequena cidade tem o fino cheiro e o sabor, também, de especiarias ibéricas, a temperar vivências e imaginações.

Um bonsai atlântico

Uma das 17 comunidades autônomas da Espanha, a Galícia encontra-se situada na região Noroeste da Península Ibérica, e possui sua própria língua e costumes culturais. No século V tinha alcançado o estatuto de reino (Reino de Galiza), surgido no território da província romana da Gallaecia, que perdurou até o ano de 1833.

Entre as diversas alcunhas que carrega, é conhecida como a terra do “alalá” – estilo de canção de cunho melancólico ou bucólico, executada sem acompanhamento instrumental e de ritmo livre, considerado um dos estilos musicais mais primitivos do folclore galego.

No vasto cenário da literatura mundial, não é incomum encontrar traços de profundo apego e paixão à terra natal em muitos autores. No entanto, entre todos eles, os escritores galegos parecem cultivar com mais afinco os laços culturais e territoriais em seus trabalhos.

Nomes como Rosalía de Castro, Álvaro Cunqueiro, Wenceslao Fernández Flórez e José María Castroviejo são apenas alguns dos que trazem em seus textos um sentimento de saudade que não se resume a um ponto geográfico no mapa.

Uma saudade que não se adequa a explicações psicológicas e racionais e que é avessa à pressa e à tendência desmistificadora da vida contemporânea.

Para eles, os encantos do solo amado tampouco podem ser esgotados nos tratados sociológicos e nos estudos topográficos. Eles combinam muito mais com os versos cantados na língua materna, como fez Rosalía de Castro com seus Cantares gallegos e com as memórias modificadas da gente espetacularmente comum que aparecem em Outros feirantes, de Cunqueiro.

Os fantasmas, trolls e meigas (como são chamadas as bruxas em Galícia) são para essas pessoas mais que simples fenômenos mentais ou curiosidades culturais: são parte intrínseca das suas vidas e das suas personalidades.

E se a Galícia de Castroviejo e companhia é, como muito bem a definiu o poeta Manuel Rivas, um bonsai atlântico (cultural e economicamente rica e belíssima, mas com dificuldades de crescer com seus próprios recursos), Itagibá era um alalá que ficou preso na garganta do sertão. Mágica, melancólica e espiritual.

Travessias

Os diálogos e trocas culturais entre Galícia e Bahia datam dos anos finais do século XIX e das primeiras décadas do século XX, marcada por uma grande onda migratória de galegos para Salvador. Lá, os recém-chegados encontraram certas dificuldades e se envolveram em diatribes e rivalidades bilaterais com os soteropolitanos.

Um exemplo da rivalidade entre baianos e galegos pode ser visto no chamado “clássico das cores” do campeonato baiano de futebol. Trata-se da disputa entre os times Esporte Clube Bahia e o Galícia Esporte Clube (fundado por imigrantes galegos no ano de 1933).

Mas, mesmo diante de certas hostilidades e de alguma desconfiança inicial, logo os recém-chegados conseguiram prosperar em áreas como comércio, construção civil e alimentação – principalmente no ramo de secos e molhados.

A pesquisadora Lúcia Leiro afirma que na Bahia se diz que cerca de 89% dos descendentes de espanhóis sejam de origem galega. Um número bastante considerável. As três principais regiões escolhidas pelos galegos como destino no Brasil, em ordem de números de imigrantes, foram São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador.

A presença galega nessas grandes cidades é tão marcante que, em cada uma delas, encontramos centros de estudos e pesquisa da cultura e da língua galega: a Cátedra de Estudos Galegos (na USP), o Núcleo de Estudos Galegos (na UFF) e a Celga (na UFBA). Mesmo em número menor, também é notável a presença de imigrantes galegos em regiões como Minas Gerais, Pará, Porto Alegre, Santos e Manaus.

Embora Salvador tenha sido apenas um dos epicentros procurados pelos imigrantes galegos em busca de nova vida e oportunidades, lá eles acabaram por encontrar certas similitudes espirituais, já que aportaram em solo profundamente católico e, ao mesmo tempo, repleta de sincretismos. Um caldeirão de influências e referências a lançar seus vapores interior adentro.

Uma característica comum entre os galegos e os habitantes da Itagibá dos anos passados é o profundo traço supersticioso em relação ao sobrenatural. José Maria Castroviejo, em sua obra Galícia: guía espiritual de una tierra, descreve como, para o povo galego, “o mundo da morte penetra por todas as partes da vida real”.

Assim, “ruídos, luzes, o som de uma voz estranha, o roçar da asa de um pássaro contra uma janela à noite, adquirem aos seus olhos proporções estranhas, acentos solenes, signos premonitórios ou de advertência”. Mesma característica que pode ser encontrada na população de vaqueiros, boiadeiros e caçadores que formavam grande parte dos habitantes da Itagibá de minha meninice.

A minha hipótese para explicar o entrecruzamento de crenças e narrativas entre duas populações tão distantes quanto galegos e itagibenses é de que ele tenha acontecido lentamente e esteja ligado a pequenas rotas de comércio, impulsionadas pelo crescimento e exploração das lavouras de cacau do entorno.

Assim, na medida em que os imigrantes galegos travavam contato com habitantes de outras regiões do estado que iam até a capital para tratar de assuntos comerciais, ou por meio da profissão de caixeiro-viajante que alguns deles podem ter exercido, é fácil imaginar como as suas histórias e costumes percorreram caminhos bem mais vastos do que as ruas e bairros da cidade de Salvador.

Muito provavelmente foi assim que suas lendas e causos acabaram por se mesclar com as tradições orais, artísticas e literárias de Itagibá e redondezas, resultando nas histórias fantásticas que minha avó, sem qualquer sinal de ascendência espanhola, até onde se sabe, contava aos fins de tarde enquanto sentávamos na soleira da porta de casa.

Saudade

A segurança da cidade pequena é quase orgânica. Não um modelo de organismo social como aquele proposto por Émile Durkheim no século XIX, que carrega traços característicos do pensamento utilitarista. Ela é feita por empatia e laço genético, mas também por certa poesia.

Em cidades pequenas, os laços de parentesco e o senso de comunidade por vezes são capazes de imobilizar os impulsos violentos mais primitivos. Mas o aumento da violência e a implementação radical de cosmotécnicas dissonantes da cultura local, oriundas de fatores que escapam do escopo do recorte afetivo aqui apresentado, fizeram com que as visagens e lendas assumissem posição cada vez mais marginal. Ao mesmo tempo, fizeram também com que a relação entre o interior das pequenas casas e as ruas de paralelepípedos passassem a ser mediadas por grades.

Por isso, é possível afirmar, com muito pesar, mas também com sentimento de compreensão, que Itagibá não existe mais. Pelo menos não aquela da qual trato aqui, com seu toque de realismo mágico capaz de ultrapassar qualquer literatura. Como aconteceu com a Macondo da família Buendía, ela, juntamente com seus fantasmas, luzes misteriosas e superstições que alargam e moldam a percepção da realidade, foi soterrada pelos avanços do tempo, da violência e da modernidade. Em seu lugar, erguida sobre os escombros das memórias da infância, um lugar que mal consigo reconhecer.

Habita hoje no peito dos residentes mais velhos da cidade uma sensação semelhante àquela que os galegos saudosos de suas vidas antigas costumam chamar de moriña: uma saudade da terra, da sua cultura e do seu lugar. Uma saudade que vai além da saudade, como definiu Adriana Alonso Alvarez em sua dissertação de mestrado intitulada Imigração galega em Salvador e desdobramentos através de seus descendentes: diálogos entre etnicidade, colonialidade e branquitude.

Segundo Luis Tobio, no ensaio “Arredor da saudade”, a singularidade dos galegos reside em sua condição de “povo atlântico, na beira do mar enevoado, do povo de finisterra. Desse meio físico, por influxos e processos muitas vezes já descritos e explicados, pode ter nascido a nossa saudade”. No caso do povo itagibense, a saudade não vem do mar, mas dos rios, límpidos ou barrentos, da lembrança da mata antes fechada e da situação de quase isolamento das questões que assolavam o mundo globalizado.

Vem dos tempos em que a poeira da estrada de terra batida trazia consigo o aroma de cacau e do café torrado moído na hora. Dos cortejos fúnebres que percorriam as ruas curtas e poucas a caminho do cemitério, das nuvens baixas a atravessar a alma das montanhas de vegetação rebelde e intocada. Não era mar nem névoa, mas sim os dias quentes, os fins de tarde amenos e as noites assombradas. Era a experiência cotidiana de apenas ser, de existir, num pedaço de terra que era um mundo inteiro.

Ainda que quase todas essas características tenham desaparecido, Itagibá guarda certas maravilhas dos tempos idos na forma de seus antigos moradores. Gente saudosa de um lar do qual foi metafisicamente afastada e que ainda conta, não sem alguma resistência, os causos de bruxas bebedoras de sangue e de almas penadas em procissão avistados por transeuntes desavisados.

É por conta dessas tantas semelhanças folclóricas, culturais, espirituais e afetivas, que considero a Itagibá da minha infância (produto de uma memória inclinada a desvios líricos) como uma pequena Galícia.

Pequena não por ser menor, mas por ser preciosa, como relicário que se carrega do lado de dentro do peito. Um espaço limiar, com tantos mistérios quanto a soma dos dedos das mãos e dos pés de todos os seus habitantes. Talvez um pouco mais.


Para ler mais

Adriana Alonso Alvarez, Imigração galega em Salvador e desdobramentos através de seus descendentes: diálogos entre etnicidade, colonialidade e branquitude. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2023.

Carmelo Lisón Tolosana, Brujería, estructura y simbolismo en Galícia. Madri: Ediciones Akal, 2004.

Carmelo Lisón Tolosana, La santa compaña: fantasías reales, realidades fantásticas. Madri: Ediciones Akal, 2004.

Émile Durkheim, Da divisão do trabalho social. Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2010.

Fabiana Paixão Vina, A mesa galega na Bahia: a alimentação dos imigrantes galegos e descendentes em Salvador. Tese (Doutorado em Antropologia) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2016.

Jocê Rodrigues, “La Santa Compaña: magia e imaginário em terras galegas“. Littera 7, 2023.

José María Castroviejo, Galícia: guía espiritual de una tierra. Madri: Espasa-Calpe, 1960.

Lúcia Leiro, “Os galegos na Bahia”. Blog da Professora Lúcia Leiro, 2010.

Luís da Câmara Cascudo, Superstição no Brasil. São Paulo: Global, 2002.

Manuel Rivas, Galicia, el bonsái atlántico: descripción del antiguo reino del oeste. Madrid: Ediciones El País, 1994.

Mário Augusto da Silva Santos, Casa e balcão: os caixeiros de Salvador (1890-1930). Salvador: Edufba, 2009.

Pedro Camargo Rodrigues Uzêda, Galícia Esporte Clube: o jogo da identidade na cidade do Salvador (1933-1945). Dissertação. (Mestrado em História Social do Brasil) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2022.

Ramón Villares, História da Galiza: uma memória dos avós europeus. Tradução de Valéria Gil Condé e Isabel Tomé Freire. Salvador: Ponte Atlântica, 2015.

Yuk Hui, Tecnodiversidade. Tradução de Humberto do Amaral. São Paulo: Ubu, 2020.

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