Lucas Cassiano
Desde os primórdios do cinema, muitos diretores tentam encontrar a melhor forma de conciliar a realidade com a realidade que a câmera mostra, é dizer, diferente da maioria das artes que transformam o abstrato em concreto, o cinema anda pela via contrária, transformando o concreto, o que vivemos e o que ainda vamos viver em abstrato. Éric Rohmer, um especialista em capturar o concreto e transformá-lo em abstrato, já dizia que o belo não é aquilo que foi feito para o olhar específico do artista, mas sim aquilo que sempre esteve ali para o artista significá-lo, ou seja, o belo é o significado que damos às coisas que acontecem e estão à nossa vista dia após dia.
O filme À l’abordage! (2020, drama/comédia) dirigido por Guillaume Brac é vendido como uma ode aos pensamentos filosóficos e às obras cinematográficas de Rohmer. Lançado em 2012, o filme conta a história de Félix (Eric Nantchouan), que conhece e passa a noite com Alma (Asma Messaodene), uma garota que vive uma realidade diferente da sua. Ela passa as suas férias viajando e Felix, impulsionado pela paixão, decide se juntar a ela no outro lado do país.
Acompanhado de seu amigo Chériff (Salif Cisse) e de um motorista um tanto quanto desengonçado, Félix viaja para a região de Montélimar na esperança de encontrar o seu amor. Nos filmes de Rohmer, a maioria das situações se desenrolam a partir de um problema não importa a gravidade ou não desse problema, seja um quadrado amoroso (Conte d’été, 1996), seja a falta de um dito amor (Le rayon vert, 1996), ou até mesmo a suspeita de uma traição (La femme de l’aviateur, 1981). Em À l’abordage!, o protagonista Félix tem de lidar com o problema de um carro quebrado e de um amor incerto.
Após chegar na cidade, Félix liga para Alma, que não reage bem à sua surpresa. Além de uma surpresa negativa para Félix, o carro do motorista Édouard (Edouard Supice) quebra, fazendo com que ele se junte ao grupo e fortaleça a interação entre os três. Assim como nos filmes de Rohmer, o problema que desencadeia os acontecimentos foi estabelecido, fazendo com que a beleza em torno da realidade seja amplificada, afinal existe algo mais real do que os problemas que nunca planejamos e sempre batem à nossa porta?
As atuações de Edouard Supice e Salif Cisse fazem com que o protagonismo mude de mão e que o filme não seja apenas sobre o clichê do homem que viaja para ver a sua amada; fazem com que o filme se torne sobre a relação desses três personagens com as pessoas, com a natureza, consigo mesmos e com seus amigos. A naturalidade de como as amizades vão se formando e novos amores vão crescendo a partir das mais simples situações é outra característica que, assim como acontecem em À l’abordage!, também podemos ver nos filmes de Rohmer.
Chérif, que viajou no intuito de acompanhar o amigo, começa a formar laços com uma mãe e a sua filha. Édouard começa a encontrar um sentido nas amizades e em si mesmo enquanto Félix cada vez mais se afasta de seu amor. A naturalidade é o principal potenciador dos acontecimentos no filme, a interação de Chérif com um bebê cria um laço entre ele e a mãe da criança, o compartilhar da barraca entre Édouard e Chérif estreita a amizade dos dois e Édouard, defendendo Félix, causa um apaziguamento onde não havia tanta harmonia.
Guillaume Brac consegue, assim como Rohmer, fazer da naturalidade a fonte de energia que sustenta tanto o filme como a beleza de tudo. Éric Rohmer diz em um de seus textos (“Cinema, art de l’espace”) que o cinema é constituído também daquilo que a câmera não está filmando, e isso é uma característica que Guillaume Brac sabe explorar aqui.
Como já dito, o cinema, diferente das outras artes, transforma o concreto em abstrato e esse concreto, quando transformado e convertido em obra de arte, não tem apenas um efeito estético, cinematográfico e literário, mas também tem efeito em nós, na nossa visão de vida e no nosso amor pelas coisas simples. É um amor pelo realismo, mas não o real pelo real e sim o real que busca a beleza das coisas da realidade.