Antônio José Vitorino de Barros
Antônio José Vitorino de Barros (1824-1891) foi um jornalista e escritor brasileiro, poeta e prosador, além de dramaturgo. A História de um gato célebre é uma sátira política dos tempos da Guerra do Paraguai e foi publicada no periódico Semana Illustrada em 1865. Qualquer semelhança com a atualidade é mera coincidência.
I
Em certo tempo houve um gato, orgulho da gataria, melhor que o melhor de quantos pela ração hoje mia. Era bichano polido, tão aferrado ao asseio que de lamber-se já tinha a língua cava no meio. Tinha malhas cor de havana em pelo cor de bonina, olhos gázeos, nariz chato, breve boca, barba fina. Tinha pés de jovem tigre, cabeça e cangussú, ventre ao lombo quase rente, cauda de nós à tatu. Era nobre, descendia de gordo gato maltês, de sorte que a ser bravio seria gato montês. Possuía tanto faro que era bastante fungar para a dez ou doze braças camundongos farejar. Com tais prendas e atributos, o aristocrata felpudo se quisesse, entre seus pares, pudera ser rei, ser tudo. Porém modesto, virtuoso, modelo de probidade, das missas de velhacadas não sabia nem metade. Gozava de tal conceito entre seus concidadãos que foi eleito eleitor sem ligeireza de mãos. Confiou, pelo seu voto de muitíssima influência, o mandato a gatos sérios, a gatos de sã consciência. De chapas - não tomou nada - circulares - não as lia - escaldado tinha medo até mesmo de água fria. Serviu de juiz de paz em quadriênios seguidos, julgou dívidas de alçada com mais de vinte sentidos. Exerceu a venerância por três o quatro eleições, não se servindo do cargo para compra dos feijões. Ao contrário, sempre viu nesse lugar puro osso e não, qual outros o atendam, fértil mina de caroço. Três vezes apresentou-se candidato a deputado, em seus méritos fundando venturoso resultado. Mas a pérfida cabala, que mercadeja em segredo, outras tantas vezes fez com que chupasse no dedo. Quis também ser senador, que não é má guloseima; a taboca foi o pago que recebeu nessa teima. Tesoureiro procurado p'ra mais de uma associação, deu contas muito diversas das que dá grã-capitão. Diretor de quatro bancos, além de cinco tripeças, nem ganhou para por tílburi quanto mais para caleças. Chefe de repartições, ameno e sempre polido, era de entre os empregados o empregado mais querido. Gato ladino odiava pedantesca primazia; detestava a violência, tinha horror à vilania. Cônscio de ser fabricado da massa dos outros gatos, ninguém o apanhou descalço na finura de seus tratos. Cheio de honras, de comendas, não querendo ser barão, deixou um dia os empregos, foi viver em solidão. Tendo no longo exercício dos cargos da gataria ajuntado documentos de imensa patifaria; cronista de prima força, língua de buída navalha contra espoliações do estado por da cá aquela palha; conhecendo muito a fundo os barrigudos de então, entretinha-os em passar-lhes sapecas e de enche-mão. Era a mofina do gato a zurzir o barrigudismo, voragem das rendas públicas, imensurável abismo.
II
Pela imprensa vomitava contra essa praga fatal ondas de fel acendidas no amor da terra natal. Os devoristas, que são machacazes de tremer, juraram a todo o transe o nobre gato perder. Neles, que sabem tirar azeite mesmo de pedra, recurso uma vez tentado é coisa que logo medra. Ajeitaram quatro gatas com lisonjeiros bis bis, quatro mitradas peludas das mais chiques do país. Impuseram-lhes preceito de apaixonarem o bicho, de fazerem do pimpão gato sapato a capricho. Se bem o recomendaram, elas melhor o fizeram. Dali por diante o gato num corrupio trouxeram. Iam buscá-lo ao borralho, ao telhado, onde arejava, ao quintal, onde murganhos por desfastio caçava. Deram miaus derretidos, o toutiço lhe babaram, com as caudas as ilhargas docemente lhe afanaram. "Rei dos gatos, belo gato, gato do meu coração", miava uma após a outra ao severo gatarrão. "Tens um trono em nosso peito, cetro de ouro em nosso amor, que outros gatos solicitam como sublime favor. "Tuas grandes qualidades, gato heroico sem rival, roubaram a liberdade de nosso arbítrio gatal. "Anda, bichano, profere esperançoso miau; para quatro gatas meigas não sejas agora mal". "Sape! Sape! Minhas ricas", bem inteirado da astúcia foi a resposta primeira que ele deu àquela súcia. À carga as gatas voltaram fazendo gaifonas mil à semelhança das gatas cá do império do Brasil. Mas o felino Xenócrates às quadrúpedes arteiras continuava a dizer: "sape! Velhacas! Brejeiras! "Não sou gato pagodista, já estou aposentado; outro ofício, sirigaitas, passem bem, sou seu criado". As requestantes ardendo co'a imprevista rebeldia votaram ódio de morte ao Newton da gataria. De convícios o cobriram, gato de pedra o chamaram; de vilão, de rameloso, até de feio o xingaram. Vendo burlada a missão que prometeram cumprir, além daqueles doestos desfizeram-se em carpir. Reza a crônica de então que essas quatro carpideiras afinal envergonhadas sentaram praça de freiras. Barrigudos não desmaiam em presença de um revés; quando um plano lhes aborta já têm em mira outros dez. Estava em guerra o país armada de supetão por um estado vizinho traiçoeiro e fanfarrão. Contra as hordas dessa terra a briosa gataria tropa e bélicos petrechos constantemente expedia. Que mina para os pançudos, vorazes fornecedores e toda a casta de ratos famintos e roedores! Que melgueira de sapatos! De capotes, de barracas! De espingardas, de ambulâncias! De cavalos, bois e vacas! Que pechincha de baetas! De brins, panos e algodões! De cobertores e de outras não faladas munições! Dos ratos fornecedores as panças se arredondaram à custa dos bens do estado, que a seu talante sangraram. E os probos governadores da opulenta gataria davam-se a perros em face de tanta patifaria!
III
Quiseram punir os melros, mas não puderam puni-los. A pele dos barrigudos é lixa de crocodilos. São tão destros na ciência de avolumar a barriga, têm tais lábias, sabem tantos bonitos pés de cantiga, que quando comem deveras apetecido bocado, quem lhe o deu para comer inda lhes fica obrigado. Era pois a quadra própria à vingança pançudal contra as vis mordas do gato inesgotável, fatal. A governança do estado, para fiscalização, de comissários do exército nomeou uma porção. Caiu a sopa no mel do pançudíssimo feroz; soou-lhe a hora aprazada de cara vingança atroz. Escreveu-se pela imprensa que o gatarrão de espavento para o exício dos ratos era o melhor instrumento. Que ele, de unhas aceradas e de dentes muito agudos, podia em menos de um mês dar cabo dos barrigudos. Que sendo bom cidadão, grande azorrague do vício, não devia recusar-se a servir com sacrifício. Que se lhes desse a patente de comissário geral antes que mais avultasse o tão volumoso mal. Todos os gatos de bem aplaudiram a lembrança, não supondo verem nela armadilha de vingança. Tocada a corda sensível do gato - o patriotismo -, caiu no laço ardiloso do fero barrigudismo. Aceitou o rude encargo, prestes pra guerra partiu: chegou e de ratazanas o almíscar logo sentiu. A inquéritos discretos procedeu constantemente; descobriu série de horrores que lhe turvaram a mente. Expediu ordens sobre ordens, ia tudo inspecionar; tinha o dom da ubiquidade, estava em todo o lugar. Nenhum camarão queria que lhe escapasse da rede; contra qualquer maganeira metia os pés à parede. Os soldados já comiam a ração quase completa, os doentes já saravam com regalo de dieta. O sulfato de quinina sal amargo já não era; as barracas de filó por lona trocar fizera. Outras muitas providências em prol do pobre soldado deu o ilustre comissário com zelo e assíduo cuidado. Ora, um gato desta têmpera nesses tempos de ganância não podia achar amigos nos amigos da filância. Se fosse agora outro galo, então ao gato cantara: a probidade hoje em dia porventura é coisa rara? Não é tal, há tantas peças nas lojas desta fazenda que já por meia pataca o metro se expõe à venda. Porém vamos ao que serve. O severo gatarrão era o tutú dos larápios, dos filantes cabrião. Prevenidos esses guelas pelos sócios de aquém mar, trataram de xeque-mate ao gato implacável dar. Formaram muitos conselhos sobre sacos de feijões, em barricas de bolachas e sobre outras munições. Por escrutínio secreto o bicho à morte votaram, à exceção de dois ratos, que risco na empresa acharam. Pra não erguerem suspeita de seu plano abominável, cada rato com o gato jurou fingir-se tratável. Quiseram inda essa vez provar que extremos se tocam, que o boi adora a jiboia, e os galos raposas chocam. O gato, à guisa do pobre que recebe grande esmola, andava dos ratazanas constantemente na cola. Mas um dia, em que fechava a sua correspondência, teve ao capataz dos ratos de dar pedida audiência. Um dize tu direi eu em miaus e muitos guinchos, terminou por darem ambos em duelo irados pinchos. Era o sinal ajustado; ao guincho mais estridente uma legião de ratos cercou o gato potente. Dentro do comissariado houve atroz gatimurgânia,1 feitos heroicos do gato, dos ratos teimosa insânia. Aos dentes do herói traído trinta ratos sucumbiram; mas os restantes em postas o valentão dividiram. Morto o nobre comissário, feito fatias delgadas, era preciso escondê-las e muito bem recatadas. Resolveram devorá-las. Com efeito as devoraram, de sorte que do bichano nenhum vestígio deixaram. Inquiridos pela ausência do virtuoso animal, juraram todos que o viram subir vivo ao céu gatal. Julgou-se o caso milagre dos numes da gataria. Ninguém mais falou no gato, vítima da rataria. Apenas um monumento muito simples se lhe ergueu, onde a mão do pio gato este epitáfio escreveu: Aqui jaz quem não jazera nesta mansão triste e muda se tivesse tido praça na legião barriguda.
1 Deixem passar o neologismo (N. do A.)