Guia completo de bibliotecas fantásticas

Erik Desmazières, "Biblioteca de Babel"

Luiz Eduardo de Carvalho

Ninguém que conheça a sua obra duvida da capacidade de José Roberto Torero em entreter e informar com os conteúdos de sua literatura sempre bem urdida por pontos de pesquisa histórica e pela observação sagaz de fatos cotidianos, seja na senda dos romances – como em seu multipremiado O chalaça –, das crônicas, dos roteiros de cinema, da dramaturgia ou de qualquer outro gênero em que se proponha a escrever.

Autor profícuo, já lançou mais de quarenta livros, roteirizou, dirigiu e idealizou dezenas de filmes de cinema e episódios televisivos. Até uma série de quadrinhos escreveu. E continua produtivo, reinventando-se e ampliando seu já excelente repertório livresco. Adotou, porém, nova estratégia para o lançamento de algumas de suas obras recentes: financiamento coletivo, algo que, segundo o que me confidenciou, permite total liberdade, assegurada fidedignidade e esmerada qualidade do livro resultante em relação à pretensão original do autor. Além disso, dribla as negativas das editoras míopes que pretendem conhecer o que o mercado consumirá ou não mesmo antes de submeter os títulos à apreciação dos sempre surpreendentes leitores.

As bibliotecas fantásticas (Padaria de Livros, 2023), que eu tive privilégio de ler em primeira mão, é uma seleção de 99 textos curtos a respeito de, como o título indica, bibliotecas fantásticas nascidas do gênio criativo e humorístico de Torero. Intercalam-se aos pequenos contos várias e estimulantes ilustrações de Eloar Guazzelli, numa edição primorosa em relação a todo o projeto gráfico.

Nos contos (crônicas?), Torero imagina as mais diversas versões de bibliotecas que a sua fertilíssima imaginação é capaz de conceber e as descreve com leveza e humor salpicado de citações metalinguísticas de fácil compreensão para qualquer leitor medianamente instruído no acervo dos clássicos da literatura universal.

Decerto não é um livro para ser lido de um só fôlego, mas para ser degustado em pílulas, frequentado pelo leitor como quem cotidianamente busca num salão novos chistes e piadas para alegrar o dia e ampliar o repertório da graça que a vida e as coisas nela postas devem ter a fim de tornar a experiência de existir mais saborosa! (eu confesso tê-lo lido em duas sentadas a fim de escrever esta resenhita, mas também revelo minha intenção de deixá-lo à mão para revisitar cada um dos textos para pura degustação mais acurada do deleite que oferecem).

Não pretendo me enveredar por digressões acadêmicas, oriundas do trato comparativo presente nesse tipo de crítica, mas é impossível não imaginar que Jorge Luis Borges esteja se revirando no caixão, digo, revirando-se de tanto rir da maneira engraçada com que Torero incursiona por um dos temas borgianos por excelência (há, aliás, aqui e ali, sutis citações ao universo fantástico do escritor e bibliotecário cego argentino).

O humor expresso em crônicas e continhos remete-nos a uma antiga tradição brasileira já vista em Aparício Fernando de Brinkerhoff Torelly – o Barão de Itararé –, em Sérgio Marcus Rangel Porto – o Stanislaw Ponte Preta – e outros autores mais recentes que, assim como a dupla Torero e Guazzelli, também se valeram da combinação de textos e ilustrações: os cartunistas e cronistas Tacus, nome artístico de Dionísio Jacob – que também frequentou o teatro e os roteiros para televisão –, em seu delicioso livro A criação das criaturas; e Artur de Carvalho, com suas obras Pah! e O incrível homem de quatro olhos; até mesmo alguma coisa de Marcelo Duarte em seus divertidos Guias dos curiosos e derivados e do humor bem mais ácido de Silas Correa Leite, em títulos como Vaca profana, que tive a honra de prefaciar recentemente. Ou, e isso com certeza, soma-se o escrete dos gênios consagrados dos textos humorísticos curtos, como Millôr Fernandes, Jô Soares e Luis Fernando Veríssimo. Uma seleção nacional brilhantemente reforçada por Torero. No entanto, nenhum deles, que eu me lembre, debruçou-se sobre um único tema a ponto de criar uma obra paradoxalmente diversificada em que o humor não se gasta e não redunda como em As bibliotecas fantásticas.

Não sou de fazer propaganda, embora viva elogiando o que gostei de ler a fim de indicar o mesmo prazer aos que me leem. Assim, fica o conselho: adquiram As bibliotecas fantásticas para esta imperdível joia do bom humor literário brasileiro contemporâneo.

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