Luiz Eduardo de Carvalho
Procurei, não achei! Haverá uma resenha da obra de algum autor que seja assinada por si mesmo? Haja, será intento autorreferenciado ou algo metalinguístico se um cronista que resenha obras alheias da literatura brasileira contemporânea fizer o mesmo a respeito de um livro seu?
Vamos combinar que tudo bem, desde que fale da obra e não do autor, autoloas são intoleráveis, em que pese a impossibilidade de um texto sem ao menos uns adjetivos! Vale também se delatar um tiquinho do engenho por trás da arquitetura, desses de dar dicas aos leitores, desde que não sejam adiantamentos comprometedores das surpresas, esses tais de spoilers, mas que permitam ver pelas frestas das camadas que todo livro tem em suas entranhas!
Procurei, mas não achei! Pouco importa, deve haver, decerto! Mas haverá alguma dessas autorresenhas publicadas? Muito provável, ainda mais nestes dias em que detemos o modo de produção, de veiculação e disseminação de todas nossas desimportâncias. Some-se, de carona, mais esta mimetizada na borgiana tática de sobreliteraturas: quem sabe uma crônica, ou um embuste para a resenha, ou um artigo moderno, multifacetado e com transversalidade de linguagens, ou um posfácio, um release, post scriptum, tanto faz, ei-lo:
Cabra cega joga cabra-cega! (gentil resenha do autor acerca de sua própria obra)
(O autor, sic) Cabra cega (Caminhos Literários – 2023) é a décima segunda publicação do escritor Luiz Eduardo de Carvalho. Livro apresentado como romance de formação com incursões autoficcionais, numa delicada e acurada composição das narrativas da história de Artêmio Pereira, um ator brasileiro que fez carreira internacional com o nome artístico de Art Birnbaum.
Embora o protagonista seja insistentemente associado ao mito de Dioniso, ele transcende tal alegoria já tão redundante de si mesmo e em seu ofício para abrir-se à senda de heróis de outras características: uns muito mais associados ao trágico Édipo – e quem não de nós? – ou então identificados com os épicos filhos diletos, daquela estirpe dos que mataram Cronos, seja na versão dos empoderados olimpianos ou na dos heróis, a eles copiados, que até hoje resistem à imposição do tempo, com uma luta tão devotada que chegam ao ponto de se tornarem escravos perpétuos de seu comando e desejo! O tempo triunfa sobre seus filhos mesmo depois de vencido e passado!
O título Cabra cega já anunciava e insinuava, pela grafia sem o hífen, a opção por qualificar o personagem de quem o livro falará (trata-se de um Bildungsroman, e nada mais sugestivo para o título do que um epíteto do protagonista): substantivamente, a cabra, o bode metamorfo de Dioniso misturado a um outro, de talhe épico, que ainda luta a eterna batalha contra o tempo. Ser complexo essa tal cabra de instintos e intentos, tristemente adjetivada com a cruel cegueira redentora do trágico! Cabra Cega! E, já nas primeiras retrancas, sinapses, recados velados, chame como quiser – confesso que tento um canal com acurados leitores –, ali está, declarado claramente na quarta capa: Artêmio já se apresenta com a máscara das mil faces deposta da cara! Talvez tenha, enfim, restado apenas o homem, o cara!
Prato cheio para as derivações psicanalíticas, principalmente quando a pulsão instintiva do trágico e a pressão mental épica concorrem para a instalação de neuroses, sempre mediadas por Eros e Tânatos, comprimidas nesse cenário sob um rígido enquadramento aos cânones herdados da formação escolar e do ambiente familiar, no qual o pai era um relógio a gerir o tempo de todos, a mãe seus ponteiros e os irmãos os peões dos fatos corriqueiros a colocar invisíveis normoses em germinação. A mente artística de Art pulsa qual um balão de gás que se infla sob a contenção de uma malha de condicionamentos que impedem a expansão. E o resultado é a silenciosa escuridão que antecede a explosão.
Embrulhe esse sonoro conteúdo no asfixiante celofane que envolve a opção de ele ser um workaholic e, pronto!, as neuroses começam a espocar como pipocas que vazam o recipiente pelo cume até o ponto de um burnout, com drásticos contornos de escapismo, que o incentiva ao ano sabático para justamente reaver a proximidade da velha amiga: Rosana Ferrari, terapeuta holística, dissidente dos dissidentes do divã ortodoxo! Basta-lhes, no encontro, dar nós, pois os cadilhos já estavam soltos e prontos.
Permanece, assim, em acompanhamento, a turma que gosta das insinuações da psicanálise artística, que transpõe o caso particular a possíveis correspondências coletivas, ainda mais quando espraia e espelha seus arcabouços na esteira mitológica, para confortável intersecção em que todos, sonho, mito e arte, entendam-se pela una linguagem dos símbolos; amálgama da criação! E há nisso tudo, uma urdição junguiana subjacente que torna tudo muito crível, consecutivo e efetivo para os que se dispõem ao embate do plausível.
Como numa Gestalt, a escolha de quais os nós a serem atados entre heróis e humanos é a próxima decisão que compete a Art, ou seja, escolher o desenho que traçará com o apoio da amiga Rosana, seu último ducto ainda desinterditado e ligado ao passado, numa proximidade reatada justamente no momento da grande ruptura de caminhos. A direção faz-se indicada e basta segui-la: resgatar-se, ser do naufrágio, o que vem dar na praia!
A opção de trazer Artêmio Pereira à tona, para reconectar-se a Art Birnbaum como numa mágica cura encantada, é uma armadilha que, além de delatar os derradeiros nós entre passado e futuro, indica a incorporação pelo infinito círculo mítico da narrativa, cuja arquitetura tonifica os interesses, antes alternados, mas, nesse ponto, cada vez mais acelerados, num processo que quase as torna uma única narrativa antes de o folhear da derradeira página propor tal síntese. Os episódios narrados anacronicamente, sediados em 1973, no oitavo ano de vida do menino Artêmio, tornam-se cada vez mais presentes, ao passo que mais recolhem e refletem os ecos dos lamentos da maturidade. Uma síntese catalisada pelos fatos vividos em épocas tão distintas, sem, contudo, estarem apresentados sob algum critério de paralelismo a fim de evidenciar as correspondências. A realidade é assim, um pouco mais assimétrica e embaralhada do que a boa ficção!
Artêmio viveu uma infância sobre tapeçaria muito bem urdida, com os elementos emprestados da realidade, distorcidos e reinventados, como cabe ao gesto autoficcional; um tabuleiro preciso e perigoso para a trama. Preciso, pois necessário para manter o débil equilíbrio daquelas estruturas e instituições manipuladas pelos cordões das incoerências; preciso, ainda, no sentido de oferecer papéis muito bem determinados para seus atores sem preparo. Perigoso, pois cada casa do tabuleiro esconde uma mina prestes a detonar sob a dor das rejeições, o que desponta como a única forma de se tornar alguém, de germinar naquele solo tão recoberto pelo húmus dos séculos! É um lugar nutritivo, mas paradoxalmente escuro e tóxico, no qual individuação é ao mesmo tempo desespero, fuga, medo, perdas e libertação.
Revelam-se cada vez mais comportamentos dissociados das prédicas no seio familiar, no ambiente doméstico, no íntimo das instituições circundantes: bullying, assédio moral, racismo, sadismo, improbidade são apenas alguns contundentes temas dispostos sob as máscaras de uma sociedade hipócrita com abundantes dejetos dispostos para a formação de metamorfos neuróticos, travestidos com as fantasias de personagens para o enquadramento em grupos de identidades produzidas em escala!
Eis o nó. O nó e o ninho, o ninho e o nó, como já aprendemos com Michelle Perrot. Nesse momento do livro, chega-se ao nó da própria arquitetura da narrativa, ao segredo da armadilha: a alternância entre os capítulos anacrônicos se torna mais frenética, pois ambos flancos, os de hoje e os de 1973, abrem-se para a conquista das consequências sobre as causas bem postas e, assim, a leitura toma o ritmo do vira-páginas com inserções de promessas de retomadas, algumas delas sob juramentos de pés juntos para uma releitura que flua por um circuito com menos distrações ou, se houver, serão sob a promessa de se mostrarem novas ou anteriormente não notadas, dessas que tornam a viagem tão agradável ao ponto de feitas por nós mesmos, nas pegadas dos heróis, ousando empreender, em passos próprios, os ganhos de autoconhecimento!
Foi o que senti ao escrever o livro. Quem o leia, embriague-se desse tônico a gotejar das entranhas das entrelinhas da narrativa, pelas frestas dos nós feitos com suas próprias memórias, caso ouse visitá-las. Não é nem convite, é pura insinuação, cena de sedução. Quase só um bilhete ou uma postagem com um lembrete: o porão está destrancado!
Conhece-te a ti mesmo, já aconselhava o oráculo! Cabra cega, besta serva dessa sábia sibila, apenas ecoa, desde sempre, a sua consagrada recomendação.
(Texto urdido com diálogos com minha amiga Keiko Komatsu, terapeuta, que só conheci pelo Facebook, com quem muito conversei, pois leu Cabra cega assim que parido. Misteriosamente, ela não faz postagens desde dezembro de 2022 e suas mensagens subitamente silenciaram, comigo e com todo o grupo de amigos virtuais naquela rede. Espero que Keiko esteja bem e que, um dia, leia esse nosso diálogo de tanta conexão que foi subitamente desconectado. Grato, minha querida amiga e primeira leitora crítica e opinativa de Cabra Cega!)