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O grotesco literário: jogo de espelhos em Ramón del Valle-Inclán

Ramón del Valle-Inclán

Jocê Rodrigues

La contemplación es una manera absoluta de conocer,
una intuición amable, deleitosa y quieta,
por donde el alma goza la beleza del mundo…

Valle-Inclán (La Lámpara Maravillosa)

As ideias de permanência e posterioridade são perigosas. Pegam de calças curtas justamente a quem mais as desejam: artistas, poetas, cientistas e toda e qualquer pessoa que acredite ter produzido algo que mereça um lugar ao sol quando o tempo de sua vida tiver chegado ao fim.

Uma aposta arriscada, já que a fortuna tem um método um tanto quanto idiossincrático de escolher seus favoritos. Quantos grandes mestres não foram enterrados por mero capricho do acaso? Quantas obras-primas do passado continuam desconhecidas pelo simples fato de que os seus ossos ainda não foram desenterrados pelas mãos hesitantes de críticos e connoisseurs, com opiniões mais voláteis que o éter?

Foi o que aconteceu, por exemplo, com nomes como Johannes Vermeer e Frans Hals, cujas obras eram conhecidas, mas não amplamente apreciadas, até que Theóphile Thoré os alçou ao posto de grandes mestres da pintura, onde até hoje permanecem. Ou mesmo com Johann Sebastian Bach, hoje porta-estandarte da cultura ocidental, mas cujo talento passou a ser amplamente disseminado apenas a partir de 1802, com a publicação da biografia escrita pelo musicólogo Nicholas Forkel.

Assim são os caprichos da fortuna: uma combinação de elementos que ultrapassa o talento.

Entre tantos escritores que influenciaram gerações, mas continuam ilustres desconhecidos, um dos mais interessantes é Don Ramón del Valle-Inclán. Misterioso, provocador, polêmico e com ares quase místicos, ele personificou como nenhum outro os encantos, as contradições e problemas da realidade espanhola de sua época.

Nascido em um frio e bucólico mês de outubro de 1866, em Vilanova de Arosa, Pontevedra, Don Ramón María del Valle-Inclán (pseudônimo de José Simón Valle y Peña) era filho da antiga fidalguia espanhola. Cresceu rodeado pelas paisagens bucólicas e pela riqueza cultural da Galícia. Na idade adulta, a influência política do pai, dono de jornal e posteriormente secretário do governo, lhe abriu algumas portas no meio intelectual, mas foi o seu talento único como escritor que o manteve entre os maiores.

Foi considerado pelo poeta Pedro Salinas como o “filho pródigo de 1898”, movimento de escritores que se preocupava em acabar com o isolamento cultural da Galícia. Era um autor desafiadoramente moderno. Estética, política e pessoalmente moderno. Não era defensor do “regionalismo galego” tão em voga em sua época e era mais afeito a ideias voltadas para a unificação nacional, defendendo a imposição do uso da língua castelhana como idioma nacional.

Durante toda a sua vida, Valle-Inclán foi afeito ao exercício da “autoficção”. Para isso, nem precisava escrever. Fazia questão de cercar-se de mitos sempre que podia. E, quanto mais inusitados, melhor. Um deles diz respeito ao seu braço esquerdo, que, segundo contava, havia sido decepado por ele mesmo e colocado em uma panela para dar melhor tempero à comida que estava preparando. Também tinha o costume de achincalhar a imprensa e é provável que nunca tenha contado uma única verdade sobre sua vida particular para um jornalista.

A verdade sobre o paradeiro do seu braço não chega a ser tão absurda, mas não é menos interessante. Em uma tarde de 1899, enquanto tomava parte de uma acalorada discussão no Café de la Montaña, recinto famoso por reunir parte dos intelectuais de Madrid e região, chegou às vias de fato com um tal jornalista Manuel Bueno. Na confusão, jarros, mesas e bastões foram atirados para todos os lados e Valle-Inclán acabou com ferimentos graves na cabeça e no braço esquerdo, que logo não seria mais seu devido a uma fratura que gerou uma grave infecção e, consequentemente, levou à amputação.

Quem passa hoje pela famosa praça Puerta del Sol, pode ler uma placa com os seguintes dizeres: “Aqui estuvo en el Café de la Montaña, lugar de tertulia del escritor Ramón del Valle-Inclán“.

As lendas acerca de sua pessoa e personalidade são tantas que seu neto achou por bem escrever uma biografia que pudesse confirmá-las ou desmenti-las. Em 2016, Joaquín del Valle-Inclán Alsina lançou Ramón del Valle-Inclán. Genial, antiguo y moderno, uma das poucas publicações com informações confiáveis sobre o autor. Bastante reservado também com a família e amigos, não deixou cartas, memórias, anotações ou outras pistas consistentes que apontassem quais eram seus sentimentos ou pensamentos íntimos. Preferia o uso de máscaras sociais. Uma curiosa preferência que carregou consigo até o fim.

Existem em suas obras aspectos embrionários do chamado realismo mágico, o que corrobora com a ideia de que o estilo consagrado por García Márquez tenha profundas raízes fincadas em solo galego. A terra de Valle-Inclán, aliás, influenciou enormemente a criação da obra máxima do escritor colombiano.

Na crônica “Viendo llover en Galícia”, publicada em 1983 no jornal El País, Márquez fala, entre outras coisas, sobre a importância que as histórias contadas por sua avó, de origem galega, tiveram na composição de Cem anos de solidão. Tanto que a matriarca da família foi a inspiração para a personagem Úrsula, uma homenagem que a imortalizou junto com as suas histórias. “Na verdade, todos os galegos que conheço, e os que encontrei agora sem tempo para conhecê-los, me parecem nascidos sob o signo de peixes”, disse ainda sobre certa tendência fantasiosa nos traços de personalidade dos habitantes do lugar.

Viagem ao México

Em 1892, Valle-Inclán embarcou em um navio para uma viagem que representaria uma verdadeira viragem em sua vida e carreira. O destino: México – considerado bastante exótico naquele momento. Por lá se embriagou e se deixou levar pelas delícias locais. Conheceu a marijuana, se envolveu em brigas, foi preso, multado e desenvolveu acentuado gosto por polêmicas. Tanto que, sendo ele quem era, não perdeu a oportunidade de cultivar algumas que beiram o surreal.

Por todas, cito aquela em que ele, recém-chegado à cidade do México, enviou uma carta para o jornal El Tiempo, assinada com o pseudônimo de Óscar, na qual destilava virulência contra os espanhóis que buscavam fortuna em terras mexicanas. A carta foi publicada e, no dia seguinte, lá foi o próprio Inclán tirar satisfações com o diretor do diário pela carta que ele mesmo havia redigido em segredo. Fazendo-se de contrariado, exigiu um duelo com o autor de tão insultuosa carta. Quando recebeu a negação do diretor de revelar quem era o tal Óscar, fingiu profunda ofensa e chegou a ameaçar o pobre homem: “Espere usted la visita de dos caballeros. Quede usted con Dios“.

Quando retorna à Espanha um ano depois, fixa residência em Madrid e se mostra uma pessoa transformada. Anda pelas ruas trajando um pesado poncho e enorme chapéu ao estilo mexicano. A experiência de morar no México o transformou naquilo que ele imaginava ser um escritor autêntico. A partir daí, dedicou-se de corpo e alma à literatura, se aproximou de diversos intelectuais e publicou seus primeiros livros. Alguns deles se tornaram importantes, como o conjunto de quatro Sonatas (Sonata de Otoño, 1902; Sonata de Estío, 1903; Sonata de Primavera, 1904; e Sonata de Invierno, 1905), que se firmaram como referência no que diz respeito à estética modernista daquela época.

Esperpento

Uma de suas mais reconhecidas contribuições literárias se relaciona com aquilo que ele nomeou de esperpento, palavra que aparece no dicionário da Real Academia Espanhola como “persona, cosa o situación grotescas o estrafalarias” ou “concepción literaria creada por Ramón M.ª del Valle-Inclán hacia 1920, en la que se deforma la realidad acentuando sus rasgos grotescos“. No texto “Luces de Bohemia”, publicado pela primeira vez em revista em 1920 e editado em livro em 1924, o poeta cego Max Estrella vive seus últimos momentos na terra em peregrinação pelas ruas madrilenas junto ao amigo de farra e de fala Don Latino de Hispalis. É justamente pela boca de Estrella que Valle-Inclán explica sua definição de esperpento:

MAX: Los héroes clásicos reflejados en los espejos cóncavos dan el Esperpento. El sentido trágico de la vida española sólo puede darse con una estética deformada […] Las imágenes más bellas en un espejo cóncavo son absurdas.

O resultado desse jogo de espelhos côncavos é algo próximo ao grotesco, à feiura e à deformidade da realidade e de seus protagonistas. Os personagens esperpênticos são escorregadios, de difícil definição, difíceis de imitar. São pontos fora da curva, fenômenos peculiares, como um raio que cai duas vezes no mesmo lugar ou o lobo que não se sente tentado a uivar para a lua.

Seu romance Tirano Banderas, publicado em 1926, que por muito tempo desafiou crítica e público, hoje é aclamado como precursor e peça fundamental, de acordo com o escritor Edmundo Moure, para montar o quebra-cabeça do realismo mágico e entender o contexto de obras como El Otoño del Patriarca (García Márquez), El Señor Presidente (Miguel Ángel Astúrias) e El Recurso del Método (Alejo Carpentier).

Em vida, como aconteceu e continua a acontecer a tantas e tantos, Valle-Inclán não gozou de reconhecimento por parte do grande público. Esse quadro mudou pouco tempo depois de sua morte, quando passou a ser chamado de um dos maiores autores modernos espanhóis, principalmente como dramaturgo, servindo de influência para escritores europeus e hispano-americanos, e muitas vezes comparado em grandeza com Francisco de Quevedo (1580-1645).

Sua escrita, repleta de traços estranhos, assim como sua vida pessoal, surpreendia e conquistava quem lhe lançasse o olhar ou folheasse algumas páginas dos seus escritos. Com sua figura excêntrica e ousadia literária, que mesclava a um só tempo o crítico e o satírico, Ramón de Valle-Inclán aos poucos se transformou em sua própria criação literária.

No dia do seu enterro, em 1936, uma chuva fina e um vento cortante fizeram cortejo junto à multidão que acompanhou o seu corpo até o cemitério: cenário mais que perfeito para a última jornada de um dos mais interessantes escritores espanhóis, como em um derradeiro ato esperpêntico.

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