30 segundos

Vilhelm Hammershøi, "Interior com jovem vista de costas" (1903-04)
Randers Kunstmuseum

Raisa Santos

Álcool gel nas mãos. Álcool 70 nas compras. Lysoform na sola dos sapatos. Põe a roupa da rua direto na máquina de lavar. Entra no banho. É só uma ida ao mercado, mas parece um retorno da guerra. É cansativo.

O banho parece de uma pessoa que passou o dia a chafurdada na merda. Ela esfrega o corpo todo com tanto sabonete, tantas vezes. A calcinha está de molho dentro do box. Cada parte do corpo fica pelo menos trinta segundos sob efeito do sabão. Estamos no meio de uma pandemia. É preciso ter muito cuidado com tudo. Principalmente com os pés. O vírus é pesado, se concentra no chão. E ela fica num pé só, esperando os trinta segundos matarem os micróbios. Então troca a perna para os próximos trinta segundos. E aproveita o tempo para enxaguar a calcinha. E toma um puta tombo. Cai de bunda.

Ela fecha os olhos mordendo os lábios. Que dor na bunda, merda. Ela quer se levantar, mas permanece segurando a calcinha ensaboada com uma mão, tentando impedir que a peça encoste em qualquer coisa. E com a outra mão aperta a nádega, com a esperança de mandar a dor embora.

Esperando a dor passar, percebe que, mesmo com todas as suas manias de limpeza, está sentada no chão do box e começa a rir da ironia daquele momento. Desiste de suspender a calcinha no ar.

Abre os olhos e vê sangue na água. Muito sangue. Deve ser da batida no chão. Mas não, é do seu braço, o que estava segurando a calcinha. Na queda, ela bateu no metal da porta de vidro e se cortou. E o sangramento é considerável. Merda… Vou ter que ir pro hospital.

Enrola a toalha de mão no braço e sai correndo para se vestir. Mas não consegue organizar os pensamentos. Sua respiração está difícil. O peito está doendo. As costas estão doendo. A bunda está doendo. Mas o braço que sangra, não. Ela não tem condições de escolher uma roupa, não consegue se concentrar. Então continua a agir no automático.

Veste o pijama que está em cima da cama, calça um tênis e sai.

O hospital é a três quadras de sua casa, mas ela decide ir de carro. A respiração está difícil. Pronto, é um sinal de que estou contaminada com a doença. Já vinha se sentindo cansada havia alguns dias, sua garganta estava irritada e às vezes doía, e agora aquela dificuldade de respirar.  Quase entrando no hospital, pisa no freio, bem na porta.

Será que eu quero entrar? Eu preciso mesmo estar em um hospital? Ela puxa o freio de mão. Já são mais de onze horas da noite. Tenta respirar devagar e recuperar o fôlego. Então seu corpo inteiro começa a tremer.

Larga o carro antes da entrada do valet do hospital porque o moço está trocando o papel da bobina da máquina de passar cartão e ela mal se aguenta em pé. Não consegue respirar. Não consegue mais segurar a toalha no braço para estancar o sangue.

Ela chega à porta do hospital e se assusta com a própria imagem refletida no vidro. Seu cabelo está um emaranhado pingando água, e ela não tinha tirado completamente o xampu. Usa uma máscara do Pokémon, um pijama velho de manga comprida, um tênis de corrida rosa, uma bolsa bege de carregar notebook e uma toalha branca toda suja de sangue no braço esquerdo.

Fica em estado de choque ao se ver. A respiração, que já estava difícil, se torna impossível. A toalha cai, e ela cai junto. Sorte que o manobrista está logo atrás para entregar o ticket do estacionamento e a impede de se desmontar no chão.

Acorda na sala de triagem com um termômetro debaixo do braço e duas enfermeiras ao lado. Inicia um processo de download de si mesma, pois não está 100% consciente ainda.

“Hein?”

Tem a impressão de que uma das enfermeiras tinha perguntado alguma coisa.

“Você está bem?”

“Eu não sei dizer.” Ia passar a mão no rosto, mas lembrou. Não posso passar a mão no rosto quando tem uma pandemia instaurada e o meu país é campeão em contaminação. Mas então percebe que lhe falta uma coisa.

“Cadê minha máscara?”

“A senhora já entrou aqui sem”.

“Eita porra”.

“Quê?”

Pede uma máscara descartável e a enfermeira gentilmente diz que estavam só esperando ela acordar para oferecer. Pega um spray de álcool 70 em sua bolsa e espirra nas mãos, nos braços e até na cara.

“Senhora, se acalme. Isso não é pra ficar passando próximo dos olhos ou da região de mucosas”.

“Fica tranquila. Eu faço isso com frequência. Tô acostumada”, ela responde com os olhos fechados, esperando o álcool secar.

“A senhora tem algum acompanhante?”

“Não”.

“Tem alguém que possa chamar para ficar aqui no hospital com a senhora?”

“Não”.

Ela então percebe que está chorando. E não por causa do álcool. Mas sim porque a enfermeira está com a mão em seu braço, medindo a pressão, e fazia dois meses que não tinha contato físico com ninguém. Mora sozinha em quarenta metros quadrados, que ela achava que serviriam apenas para dormir depois dos longos dias de trabalho. Mas os longos dias de trabalho passaram a ser dentro de casa e ela estava trancada lá.

Pensa em ligar para seu ex-marido. Ela sabe que ele viria, mas sabe também que ele já está com outra. Ligar para os pais seria uma exposição desnecessária ao risco de contaminação que o hospital representa.

Então era isso. Ela só tinha a si mesma. “A senhora está bem?”

“Eu acho que peguei o vírus. Eu estava com grande dificuldade para respirar e com uma dor no peito. E me deu uma tremedeira…”

“Fique tranquila, senhora. Respire devagar. Já fizemos uma medição do seu oxigênio e está tudo bem. Vamos ter que dar uns pontos no seu braço e o médico vai falar com a senhora”.

Vou ter que esperar o médico vir dizer que eu estou doente. Não é possível! Eu não estava conseguindo respirar! Esse é o principal sintoma dessa doença! Isso é o que ela queria dizer, mas ficou em seus pensamentos. Acaba respondendo um simples “ok”.

Ela fica sentada numa cadeira, concentrando-se na respiração e segurando o curativo que colocaram em seu braço. Até que se dá conta.

“Espera aí… Pontos?”

“Sim, o corte foi profundo”.

Com essas palavras, a enfermeira sai, deixando-a sozinha na sala de triagem.

Ela olha para seu braço sem acreditar. Não está doendo. Doendo está a sua bunda que bateu no chão, o peito para respirar, a cabeça… Mas não o braço. Começa a se questionar se está mesmo acordada ou se tudo isso é apenas um sonho. Podia ser tudo um sonho. A pandemia, o presidente de merda, o estresse absurdo dos seus intermináveis dias de trabalho dentro de casa, a solidão que ela nunca tinha sentido antes, o divórcio. Não parece possível que esteja vivendo aquilo tudo ao mesmo tempo. E ainda está num hospital, com dificuldade de respirar e com uma enfermeira dizendo para ficar tranquila. E um braço bom que receberia pontos.

Tranquila é o caralho.

Ela rasga o curativo que tinham feito nela. Ela quer ver o corte. Só de tirar, o sangue já começa a escorrer. Ela abre o corte, quer ver dentro dele. Por que não está doendo? Aperta o machucado. Morde. E então levanta os olhos para o médico, que chegou bem nessa cena.

“Moça, pelo amor de Deus…”

O homem está apavorado com a paciente de pijama, tênis rosa, cabelo embaraçado e a boca suja de sangue. E então ela começa a chorar descontroladamente. Não consegue explicar para o médico, que permanece encarando-a, incrédulo.

“Não tá doendo. Não tá doendo”.

E tenta respirar. Mas é difícil respirar.

“Não tá doendo! Por que não está doendo? Eu quero que doa! Tá cortado… Olha aqui o tamanho do corte. Olha isso!!!”

“Pelo amor de Deus, moça, tira a mão do corte. Vai infeccionar!”

“EU PASSEI ÁLCOOL! Eu sou o puro creme do álcool! Deveria estar saindo álcool desse corte, porque a minha vida é desinfetar as coisas. Vamos passar álcool nesse corte. Quero ver se, assim, não vai doer essa merda”.

Antes de completar a frase, o médico já tinha saído para buscar ajuda, enquanto ela pegava seu vidro de spray dentro da bolsa mais uma vez. Ele tinha certeza de que ela deveria ser encaminhada à ala psiquiátrica. Quando ela remove a tampa para aplicar o álcool, os enfermeiros chegam e a imobilizam.

E a sensação é deliciosa. O que quer que eles tenham aplicado nela trouxe um alívio de outro mundo. Tudo o que era tão intenso agora está tão leve. Ela sente uma descarga de alívio maravilhosa, plena, absurda.

Ela acorda num quarto, vestindo uma camisola de hospital e com acesso ao soro intravenoso. Não tem ideia de que horas podem ser, mas o médico e uma enfermeira estão no quarto. E… aí! Agora está doendo o braço. Ela não lembra se tinha dado tempo de colocar o álcool.

“Como você está se sentindo?”

Ela ainda está levemente grogue do remédio. Sorri e olha para o pobre médico com carinho.

“Eu peguei o vírus?”

“Não. Você está bem. Mas é muito provável que os seus sintomas de dificuldade respiratória tenham sido provocados por ansiedade. Estamos com muitos casos assim ultimamente”. Ele está sentado ao lado dela, anotando algumas coisas numa ficha. Pergunta se ela tem acompanhante, se quer chamar alguém para estar ali, mas ela nega com a cabeça em todas as respostas.

“É muito difícil estar só numa quarentena. Não sei pelo que você está passando, mas mantenha pessoas por perto. Se não tem um companheiro ou uma companheira, busque família ou amigos. Acredite: é muito cruel se colocar completamente isolada por muito tempo”.

Ela continua olhando para ele com carinho, sorrindo e deixando as lágrimas escorrerem. É verdade. Ele não tem como saber tudo o que ela passou para estar sozinha. E não tem como saber como dói a solidão para ela, que gosta tanto de interagir.

“Solidão dói, não é?”

Ela percebe que a mão dele treme e que seu rosto fica vermelho.

“Como você está se sentindo, doutor?”

Ele sorri com ironia e fica calado por alguns instantes.

Até que seus olhos se enchem de lágrimas. “Um lixo. Eu tenho me sentido um lixo”.

Ela mexe a mão do braço com soro e tenta encostar no ombro dele, que não reage. Ela fica em silêncio esperando ele estar pronto para prosseguir o relato.

“É difícil sair para essa guerra todos os dias. Ver colegas amados indo embora. É difícil saber que eu preciso estar aqui, mas que eu sou um risco para todas as pessoas com as quais eu poderia conviver e que eu amo. Eu não sei o que aconteceu para a gente estar assim hoje. E eu não tenho poder nenhum para resolver isso”.

Ela só concorda com a cabeça.

“Obrigado”, o médico conclui e volta para suas anotações. “Você precisa cuidar desse machucado e de todos os outros que estão por fora e por dentro. Não é porque não dói que não está aí”.

“Desculpe. Eu estou ocupando seu tempo com uma coisa tão sem importância perto de tudo o que você tem vivido e enfrentado. Obrigada por estar aqui para todos os doidos que querem morder uma ferida”.

Os dois riem com tristeza.

“Fique tranquila. Não é sem importância. Todas as coisas acontecem por uma razão muito maior. E eu acredito que você precisava desse surto. Com certeza vai te fazer repensar algumas coisas”.

“Eu não sei como isso aconteceu. Hoje foi um dia bom. Estava tudo bem. Eu passei por dias bem piores e não surtei…”

“Não é só um momento. É uma somatória”.

O médico sai e não volta mais. Ela fica no quarto sozinha, pensando que todas as dores que ela tem agora são as dores que já existiam antes do isolamento social. A solidão sempre esteve lá. Mesmo quando ela era casada. Mesmo quando morava com a sua família. Mesmo quando estava em um bar cheio de gente ou num escritório lotado.

Talvez seja isto: o que ela precisa é estar bem consigo mesma para conseguir ficar na própria presença. Lidar com as suas dores, suas angústias e também seus egos. Ela nunca teve a si mesma. E estava focada em muitas coisas para compensar essa ausência. Mas chegou a hora de fazer as pazes consigo, se aceitar.

Agora passou a ser possível enxergar todos os seus defeitos. Mas também, se olhar com carinho, pode enxergar todas as suas virtudes.

Ela se levanta e arrasta consigo o suporte do soro que estava conectado à sua veia. Vai até a janela e olha para a rua. Abre o vidro e sente a noite. Aquele vento gostoso que dá arrepio. E sente a própria força nele. Respira fundo várias vezes, como se quisesse renovar o que estava por dentro. E sente o peito doer em cada inspiração.

É um nó no peito. Bem no meio. Ela massageia e respira. De olhos fechados, tenta encontrar o nó dentro de si. Ele vem da sua infância, da sua adolescência, da sua família, do seu trabalho, do seu casamento. Das escolhas que não fez. O nó vem de todas as vezes em que ela deixou que escolhessem por ela. Das ocasiões em que deixou que ditassem quem ela era, mesmo que não se reconhecesse nessas explicações.

O sol nasce e ela sente que precisa partir. Precisa ir para casa. Precisa resolver a relação mais longa da sua vida: a relação consigo mesma.

Espirra.

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