Vestidinho rosa

Paul Klee, "Malícia" (1904)
Coleção particular

Anna Kroiss

Ron era o responsável pela abertura dos portões da escola em que trabalhava.

Um homem de meia-idade, mal humorado – cabelo longo, ralo e malcuidado; aparência de quem nunca se importara com a própria imagem.

Os alunos daquele colégio iam e vinham, ano após ano, mas os comentários acerca de Ron eram sempre os mesmos:

“Um homem asqueroso”.

Ron nunca se importou em ser gentil com quem quer que fosse – dos alunos às autoridades. Sua cara fechada com aspecto sujo e unhas por fazer acompanhavam uma repulsiva magreza. Falava o mínimo possível.

O ano era 1991 e novos alunos ingressavam para a última turma do colegial – os intragáveis jovens que Ron tanto amaldiçoava – mas eis que, quando ia fechando os portões no primeiro dia letivo daquele começo de fevereiro, Ron se deparou com o vulto rápido de uma menina de cabelos longos cor de ouro que corria atrasada para entrar na aula.

Impaciente para chegar a hora do intervalo, o homem contava os minutos em seu oleoso relógio de pulso, o tempo que faltava para a saída dos novos alunos. Dezenas deles corriam para comprarem seus lanches, mas para Ron apenas um ponto dourado era o que queria ver ali no meio daquela multidão de idiotas.

Nada.

O sinal bateu e aquele vulto dourado não havia aparecido.

Era preciso sofrer um pouco mais até a hora da saída.

O dia nunca demorou tanto para passar.

Finalmente, quando a última aula finalizou, começaram a ir embora aqueles seres ridículos que para Ron não passavam de lesmas se arrastando para casa – então ele a viu, muito mais perto dessa vez.

T. era um sonho!

Seus olhos verdes eram como duas pedras colocadas num rosto angelical de menina. Brilhavam sob cílios escuros.

T. não passou por Ron dessa vez sem o notar, e o fitou como na intenção de queimá-lo vivo. Aquele instante durou uma eternidade na cabeça do velho homem.

Foi embora no meio da multidão.

Ron arrastou o fim daquela tarde e todo o final de semana pensando naquela presença que agora o faria pela primeira vez na vida querer que a segunda-feira chegasse.

T. não tinha nada de divina – era uma devassa.

Mas então não é justamente isso a sagrada beleza das mulheres bonitas? Uma mistura de bem e mal – tendendo mais para o mal?

Apesar de seu bom comportamento nas aulas, boas notas e pontualidade, T. era, em sua vida secreta, uma jovem cruel. T. contava como peças de dominó os meninos e homens quais ela já havia feito sofrer, e naquele primeiro dia de aula percebeu no olhar de cobiça de Ron que ele então seria sua próxima brincadeira.

Ron esperava ansioso pelo último sinal da escola, esperava com paciência até o último aluno sair – T. sabia disso e deixava o velho esperando como um idiota – então, quando quase todos já haviam deixado a escola, ela passou por Ron. Ambos sorriam a seu modo – ela, num misto de malícia cativante – ele, num canto de boca, amarelo e trêmulo, sonhando em corromper da pior forma algo que parecia perfeito.

T. parou em frente a Ron, como quem já sabia de tudo o que se passava na cabeça do homem. “Aqui não vai dar certo. Me encontra naquele último campo das casas dos alunos, por volta das dez da noite“.

O homem que há muito não lembrava de qualquer mulher lhe dirigir alguma atenção ficou apenas parado sem reação, mas por fim acenou com a cabeça como em afirmativo. Finalmente ele poderia chegar mais perto daquela que tanto lhe consumia os pensamentos nas últimas semanas.

Já eram 22h40 e o velho ainda estava a esperar. Irritado, pensava agora ter sido enganado pela mocinha que fingia ter lhe dedicado algum interesse. Fumava um cigarro atrás do outro, queimando ainda mais aqueles dedos amarelados pelo vício e pela idade – então, T. apareceu em meio à penumbra daquele jardim escondido.

Sentou-se ao lado dele. Usava uma saia jeans curta, tênis brancos, meias brancas – decorava aqueles belos olhinhos verdes com uma sombra colorida, que deixava seu olhar ainda mais perturbador.

O que você quer comigo?”

T. perguntava mostrando não se importar, quase como quem debocha.

O homem não tinha o que responder.

É me comer que você quer? Porque eu não costumo a dar pra velhos; já saí com alguns, mas em troca de alguma coisa, e penso que você não deve ter condição pra isso“.

E ria.

Ele franziu o cenho e ainda não sabia o que responder.

Mas eu deixo você me tocar. Você quer?”

Nada.

T. pegou aquela mão que já possuía rugas demais e botou no meio de suas pernas lisas e brancas. As unhas do homem estavam sujas, como sempre.

Anda, esfrega“.

Não!” Ron levantou, ajustando o zíper da calça que estava um tanto rígida como não havia de estar há tempos.

Mas então o quê? Quer só ficar me olhando saindo das aulas com essa cara de idiota que você tem?

O homem desceu o corpo na intenção de dar-lhe um tranco.

Ela sorriu docilmente, fechou os olhos como quem sentia prazer sexual ainda sem ser tocada – Ron não pôde aguentar e enfiou a mão no meio da menina.

Ela inclinou para se deitar, rindo e achando graça daquela idolatria com a qual o velho olhava para ela. Eles passaram ali algum tempo, e depois muitas outras noites, ainda assim Ron não havia deflorado de fato aquele pequeno diabo, mas fizera todo o resto.

T. amava o que sentia vir daquele homem, sentia emanar dele um misto de paixão, desejo e escravidão. Ela achava que se estivessem fora dali tudo seria diferente – mas lá, naquele jardim só deles, essa relação de submissão era como estar no paraíso dos corrompidos.

Por muito tempo T. achou que estaria para sempre no controle da situação, pensando que a única coisa que lhe interessava no homem era essa sensação de prazer que as bobagens do velho lhe causavam, mas, em uma noite especial, quando Ron teve de voltar para casa bem mais cedo que de costume, dizendo à menina que hoje não poderia estar com ela, T. sentiu algo que ainda não conhecia.

Naquele exato momento, quando a menina via a figura magra e decrépita do velho sumindo no final do jardim, entendeu num breve momento que também estava submetida aos caprichos daquela paixão.

T. não estava mais no controle.

A formatura se aproximava.

A escola prepararia uma bela festa para os formandos daquele ano. T. era um deles.

Ron ajudava como podia nos preparativos. Organizando a entrada de convidados e garantindo a abertura e fechamento do colégio.

A noite da formatura chegou.

Ron fumava seus cigarros como de hábito enquanto abria e fechava sistematicamente os portões daquela escola de garotos metidos.

T. chegou com seus pais. Ron abriu pela incontável vez o portão.

Estava dentro de um vestidinho rosa de cetim, com alcinhas e um laço na parte de trás. Calçava sandálias brancas que deixavam seus pés ainda mais atraentes.

Quando desceu do carro com os pais pediu que eles fossem entrando, ela iria em seguida. Seus pais, bem como todos os outros, eram capachos da menina e faziam tudo o que ela mandava.

T. estava sozinha com Ron na entrada do colégio.

Você não fala mais comigo. Não gosta mais de mim?”

Falava enquanto tentava se esfregar no homem.

Vá lá pra dentro, é sua festa hoje. Aproveite, amanhã não precisará mais olhar para as fuças dessa escola nojenta“.

O homem falava com desdém.

Você gostou do meu vestido? Você gosta quando uso rosa“.

Ela não queria demonstrar, mas sentia desespero pela falta de atenção do homem.

É bonito sim“. Respondeu de forma como se só tivesse notado naquele instante.

Eu vou buscar meu diploma e assim que pegar saio correndo para te encontrar no lugar de sempre“.

Não posso, a noite vai ser daquelas…” Fumava olhando para ver se chegavam mais carros. “Anda, entre para sua festa“.

T. furiosa deu as costas ao homem e entrou correndo.

A bela menina foi aplaudida pela turma e pelos pais assim que subiu no palco para pegar seu diploma. Uma moça da qual todos tinham orgulho – com exceção de um pequeno grupo de meninos que conheciam bem o outro lado daquela doce bonequinha.

Ao pegar seu diploma, em meio aquelas luzes todas, queria ver apenas um rosto. Um rosto que se destacaria em toda aquela bela festa. Um rosto horrível que seria notado ao longe, mas ele não estava ali.

T. pediu licença aos pais que agora tentavam abraçá-la. A menina disse que iria procurar uma amiga que havia desaparecido e saiu correndo para o jardim.

Ron estava lá.

Ela pulou no colo do homem, como se nada do que estava lá dentro naquela festa tivesse qualquer importância. Chorou.

Você não foi me ver“.

Estou vendo agora. Parabéns, garota“.

Vem, vamos sair daqui. Me leve pra algum lugar. Eu quero ficar essa noite com você“. Olhava para ele como quem implora.

Olha, menina, você foi a única diversão que tive em todos esses anos que estou nessa merda, mas hoje será a última vez que te vejo“.

Segurou com mão o lindo rostinho da menina enquanto falava.

Ela tremia – não conhecia a sensação da rejeição.

Não, não“.

A menina foi abaixando as alças do vestido e mostrando seu corpo, numa última tentativa desesperada. Ao olhar aquele corpo Ron não pôde resistir e a tomou ali mesmo, no escuro daquele jardim. Pela primeira vez profanada por ele.

O ato já havia terminado e Ron tentava levantar rapidamente para se recompor – a menina segurava Ron com toda a força, num abraço de medo e posse.

Me larga. Preciso voltar para a portaria. Coloca sua roupa e volte logo lá para dentro“.

Tudo estava completamente fora do controle de T.

Ela temia por saber que não mais veria Ron a partir daquele dia. O homem olhou nos olhos da menina, e percebia pela primeira vez o quão jovem ela era, como se o espírito demoníaco que parecia habitar nela a tivesse deixando por um instante, revelando que não passava de uma menina boba e iludida.

Com isso, ajeitou-se e saiu, desaparecendo pela última vez no jardim.

T. ficou ali sozinha.

Meses se passaram.

Novas turmas ingressaram naquela escola.

Ron continuava o seu trabalho de sempre – com seu aspecto de sempre.

Todos novos alunos continuavam a comentar sobre sua aparência.

Nenhuma outra T. ingressou no colégio.

Ron abria e fechava todos os dias os portões.

De T. ele só conseguiria se lembrar se recorresse a um par de meias brancas que em uma noite no jardim ela havia deixado com ele.

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