Valério Pereliéchin: um exilado dentro do exílio

Astier Basilio

Quando Valério Pereliéchin desembarcou no porto na então capital do Brasil, numa “manhã inesquecível de 19 de janeiro de 1953”1, apenas dois meses antes era lançado, em São Paulo, o primeiro número da revista Noigrandes, editada pelos irmãos Haroldo e Augusto de Campos, ao lado do amigo Décio Pignatari, veículo que seria a plataforma das experimentações que desaguariam no Plano Piloto da Poesia Concreta, escola literária que seria um dos condutores da vanguarda poética brasileira.

Era a segunda vez que uma revolução comunista assolava o quintal da família. Quando emigraram pela primeira vez, a decisão partiu da mãe, Evgeniya Alexandrovna Sentianina, uma mulher requintada que atuava no jornalismo e amava poesia. Aliás, foi Evgeniya, em parceria com um editor local de Harbin, cidade chinesa para onde emigraram, quem criou o pseudônimo “Pereliéchin”, adotado a vida toda pelo filho batizado como Valerii Frantsevich Salatko-Petrishche.

Além de um país em guerra civil, Evgeniya Alexandrovna deixava um casamento infeliz e atravessava, com os dois filhos, Valério e Victor, a fronteira da Sibéria, passando a viver na China, mas, a bem da verdade,  Harbin era praticamente uma extensão do antigo império russo, a quem se deve o surgimento da cidade, fundada na época da construção da ferrovia transiberiana.

Emigrado na China, na “russa” Harbin

Em Harbin havia não só imprensa e escolas em russo, mas a maioria da população local era composta de imigrantes que haviam se refugiado após a chegada dos comunistas ao poder.  De 1918 até 1922, ano em que o Exército Vermelho sobrepuja o Branco e é criada a União Soviética, 2 milhões de pessoas deixaram a Rússia, mais de 200 mil emigraram para a China e nos anos 1920, 165 mil súditos do antigo império russo viviam em Harbin.

É possível dizer que, vivendo em Harbin, Pereliéchin não havia entrado em contato, verdadeiramente, com a China. O conhecimento da cultura e do idioma сhinês vieram, de modo efetivo, quando, aos 26 anos, o poeta mudou-se para a capital, Pequim.  Dois anos antes, Pereliéchin havia entrado para um mosteiro com o fim de se ordenar monge.  Naquele mesmo ano de 1937, quando era iniciado o Grande Expurgo na Rússia, liderada por Stalin, Pereliéchin havia publicado seu primeiro livro e decidira ter formação teológica e viver em celibato. Era uma tentativa – vã – de fugir da homossexualidade, que, refletindo os valores e crenças de sua sociedade e época, ele via como  uma doença.  A mudança para a capital chinesa se deu para cumprimento de missão sacerdotal.

De monge a espião

Brigas com membros do clero o fizeram largar a batina e atuar de vez como tradutor na TASS, a agência soviética de notícias a qual Pereliéchin já vinha prestando serviços. No fim da Segunda Guerra, outra vez bandeiras vermelhas eram hasteadas no pavilhão da vizinhança de Pereliéchin. “A vida intelectual simplesmente acabou com a chegada dos comunistas ao poder”2, disse o poeta. O sonho dele era seguir o caminho de muitos de seus compatriotas: dar aulas de literatura russa em alguma universidade americana. Era lá que, há anos, vivia o seu irmão Victor, que atuava como engenheiro. Mas eram extremos aqueles tempos. Pereliéchin havia aportado nos Estados Unidos, em pleno frenesi da onda macartista, que se deflagrara poucas semanas antes.

De nada adiantou dizer que era alguém interessado apenas em poesia – o que era verdade – e que traduzir discursos de Mao Tsé Tung era parte de seu trabalho. Foi preso. Deportado. A ironia das ironias é que as autoridades chinesas consideraram a extradição mero truque para que  Pereliéchin pudesse atuar como espião de Tio Sam e, por conta disso, negaram-lhe o pedido para voltar a viver no país que ele tanto amava.

Chegada ao Rio de Janeiro e subempregos

Sem saída, cumpria a sina de muitos russos errantes: a América Latina. O Brasil não foi plano, mas destino. Como o próprio Pereliéchin escreveu no poema “Três pátrias”:

Simplificando, minha sina:
Aqui num êxtase, ali aos ais,
Mandaram-me sair da China
Como da Rússia, - e nunca mais

No exílio e não mais esquecido,
Eu dou o restante dos meus dias
Para o Brasil, desconhecido,
A derradeira pátria minha.

Ao chegar no Brasil, ao lado de sua inseparável mãe, Pereliéchin conseguia formular algumas perguntas, mas não entendia as respostas. Havia estudado português por alguns meses, enquanto esperava, em Hong Kong,  pelo navio que os levaria ao Rio de Janeiro. Com o dinheiro da mesada que lhe enviava o irmão Victor, alugou um apartamento em Santa Tereza. Mesmo sendo fluente em chinês e inglês, aqueles idiomas não pareciam ser de muita utilidade no Rio de Janeiro da década de 1950.

Ao pisar em solo brasileiro, Pereliéchin estava com 39 anos. Havia lançado 4 coletâneas de poemas, muito bem recepcionadas nos círculos da emigração russa e também publicado um livro com suas traduções para o russo de clássicos da poesia chinesa. Com dificuldade para arrumar um emprego em sua área, Pereliéchin se viu obrigado a fazer bicos, como trabalhar em joalharia, bem como sublocar cômodos de sua casa para seus compatriotas russos, muitos dos quais optavam pelo Brasil como ponto de estada temporária com o objetivo de, posteriormente, se mudarem para outros países.

Poucos meses após sua chegada, surgiu uma proposta de trabalho num jornal para a colônia russa, em São Paulo, o que levou Pereliéchin se mudar com a mãe. Houve uma série de desentendimentos, o que fez com que o projeto não se concretizasse. Sem trabalho, decidiu retornar à Cidade Maravilhosa, porque se “era  para estar desempregado, seria bem melhor no agradável Rio de Janeiro do que na estranha, fria e desagradável São Paulo. Nós quase choramos quando vimos o Corcovado, que já se tornara querido para nós”. O símbolo do Rio de Janeiro inspirou Pereliéchin a escrever um de seus mais belos poemas:

No Corcovado a me encontrar
Perto do Cristo, em solidão
Como um rebanho, sobre o ar,
De um pico ao outro, as nuvens vão

Se desmanchando ao anoitecer:
A praia, os carros, casas e
Quanto a alegrar-se e a padecer,
Nada me ocorre estando aqui.

Amor à primeira vista pelo Brasil

Imediatamente, Pereliéchin sentiu a atmosfera de liberdade soprar a seu favor.  E foi a Yuri, um dos muitos russos chegavam ao Brasil para ir embora logo depois, quem o poeta dedicou alguns poemas, logo nos primeiros dias de sua chegada. Ao apelar para que seu amado não partisse, exaltou as belezas do Brasil:

Incomparável tudo  aqui
Janeiro vem, calor desata,
Salpica o mar espumas que 
Ficam fervendo a sua prata. 

Aqui o frio é uma folia,
Os temporais são curtos quando
no Corcovado tão longínquo
as nuvens afleumam-se em bando.

Uma biografia do poeta, escrita em inglês, foi publicada no Canadá: Valerii Pereleshin – the life of a silkworm. A autora Olga Bakich escreve que o coração de Pereliéchin “instantaneamente abraçou aquele ‘paraíso’ de sol radiante e liberdade: ‘Eu amo, amo, amo o Brasil e nunca irei deixá-lo por lugar nenhum”3. O amor do poeta não se restringiu apenas às belezas naturais do país tropical, mas à língua portuguesa. Rapidamente começaram a aparecer palavras e expressões na língua de Camões, incorporadas aos poemas em russo.

Mas não tardaram em vir as decepções. Em 1954, Pereliéchin sofreu um golpe na sua autoestima. A editora Chekhov Publishing House, de Nova Iorque, não concordou em publicar a primeira versão de seu livro Casa do sul (Yuzhnyy dom). No ano seguinte, outra recusa. A revista The New Review, outra publicação de emigrantes russos nos Estados Unidos, não manifestou interesse por suas traduções para o russo de poesia, vertidas do chinês e do português. A situação piorou de vez quando seus inquilinos patrícios começaram a fazer fofoca sobre sua vida íntima. Não havia mais qualquer clima para poesia. “É impossível avaliar quantas mentiras foram acrescentadas. Assim, não há e nem haverá mais poesia. Escrever para estes porcos? Ou para mim mesmo e por na gaveta?”

Abandono da literatura e saída do armário

Foi uma década de silêncio. De 1957 a 1967, Pereliéchin não escreveu uma linha sequer. Por uma daquelas ironias do destino, do ponto de vista financeiro, este foi o período de maior estabilidade. Empregado na biblioteca do Consulado Britânico, Pereliéchin foi mandado embora por conta das leis brasileiras da época. Quem fosse demitido após dez anos de emprego, receberia de indenização dois salários por cada ano trabalhado. Todavia, caso a demissão fosse realizada antes, era necessário se pagar apenas um salário por cada ano. “Ninguém precisa ser um marxista ortodoxo para concordar com o empregador que as pessoas têm que ser demitidas antes do limite de dez anos”, comentou Pereliéchin.

Mas em 1967, uma carta teve o poder de mudar tudo e tirar Pereliéchin do silêncio. Apareceu em cena, uma figura extraordinária: Mary Kruzenshtern-Peterets (1903-1983).  Uma russa que havia feito caminho semelhante ao de seu compatriota: emigrou para Harbin, depois, mudou-se para Xangai e, por fim, aportou no Brasil no mesmo ano que Pereliéchin.  Porém, ao contrário do seu amigo, Mary Kruzenshtern teve alguma inserção na cena literária brasileira. Em 1958, ao lado de Otávio Rainho, proferiu uma palestra sobre “Pasternak e a Poesia Russa”, na sede da Associação Brasileira de Imprensa. Sua permanência no Rio de Janeiro se estendeu até 1960, quando se mudou para os Estados Unidos.

A correspondência trocada com a amiga foi uma espécie de “fio de Ariadne”, como o próprio poeta reconheceu. Pereliéchin voltou à literatura. No ano seguinte, em 1968, Pereliéchin foi convidado a dar aulas de russo aos oficiais da Escola Naval, emprego este que durou três anos e lhe garantiu certo conforto. A situação financeira de Pereliéchin sempre foi instável. Além do mais, todo dinheiro que ganhava era para financiar suas publicações. Pagava por edições modestas em casas publicadoras de emigrantes russos na Alemanha, França e Estados Unidos. Contava com a ajuda de alguns amigos fiéis que vendiam os exemplares.

Em 1976, Pereliéchin tomou uma decisão corajosa que lhe custou muito: assumir-se gay. Seu nono livro, Ariel, reunia sonetos escritos dedicados ao jovem Evgenii Vitkovski (1950-2020), que se iniciava no mundo das letras e tinha grande interesse pela poesia russa feita fora da União Soviética. Vitkoski se tornaria um dos mais importantes tradutores da literatura russa em todos os tempos. Foi intenso o fluxo de cartas de Moscou ao Rio de Janeiro e iniciou-se uma paixão platônica, por parte de Pereliéchin. Foi a partir desta fantasia que o poeta compôs aquele que é considerado por vários críticos literários russos seu melhor livro.

Quase não houve resenhas da obra nas publicações russas nos círculos literários dos emigrantes. A grande amiga Mary Kruzenshtern-Peterets não só se recusou a vender os livros, mas deu um ultimato para que Pereliéchin não publicasse aquele livro. O poeta, empoderado com a liberdade conquistada no Brasil, não recuou. Chegou a responder de modo enérgico: “não há ‘doença’ nenhuma nos temas de Ariel (…) Eu não estou julgando as pessoas com base nas minhas preferências, mas eu estou sendo julgado com base no preconceito delas (…)”.

Briga com irmão homofóbico e registros na imprensa

Um grande problema era a convivência com o irmão Victor, que após muitos anos vivendo nos Estados Unidos, transferiu-se para o Brasil. Sua vinda se deu em 1959. Após mais de 30 anos, a família estava novamente reunida. Victor  trabalhava em uma multinacional, que estava empenhada na construção de hidrelétricas brasileiras.

“Você deveria não escrever poesia, mas prosa e não em russo, mas em inglês como Hemingway a Steinbeck”, era o teor das imprecações de Victor . A homofobia do irmão, às custas de quem Pereliéchin se viu forçado a viver praticamente durante quase toda sua vida, era outro problema e razão de brigas constantes. Conforme a biógrafa relata, Victor era da opinião que os gays deveriam “ser destruídos ou castrados”. Mas Olga Bakich aponta também a ingratidão de Pereliéchin. Ao oferecer moradia e todas as comodidades, Victor indiretamente financiava os livros do irmão. O que não era, de modo algum, reconhecido por Pereliéchin.

Há pouco registro sobre Pereliéchin na imprensa brasileira. O primeiro deles foi em setembro de 1979. Sobre “Yuzhnyy krest” (“Cruzeiro do Sul”)  a primeira coletânea de poesia brasileira traduzida em russo, que havia sido publicada na Alemanha, no ano anterior. “Ontem foi um dia maravilhoso: o Jornal do Brasil publicou uma entrevista comigo – pela primeira vez em um quarto de século!”, comentou o poeta. No mês seguinte,  quem escreveu sobre ele foi o poeta Glauco Mattoso no jornal Lampião, voltado para a comunidade LGBT da época.  O título era: “O misterioso poeta Pereléchin”, no qual ele era apresentado como “uma figura incomum” e que “permanece ignorado entre nós, embora esteja radicado no Rio há 25 anos”.  Em conversa mantida conosco, Glauco Mattoso recordou que “os sonnettos, em portuguez, me paresciam bem compostos e, obviamente, raros, ja que thematizavam a homosexualidade, ainda pouco abbordada na litteratura  lusophona”.

Ida ao Retiro dos Artistas

Alguns poemas abertamente homoeróticos não foram publicados em vida por Pereliéchin, que vieram a ser coletados posteriormente no volume de suas obras reunidas, editado na Rússia em 2018,4 a exemplo do soneto que traduzimos, no qual se fala do amor por rapazes que jogam futebol na praia:

"Eu não posso a ninguém dar permissão
de armar tenda ao cais escuro, então
Ao madrugar, vocês se beijem, brinquem". 

Pra nós o mar cama nenhuma apronta.
Pena. Vamos, meu esportivo viking,
a um hotel limpinho e bem em conta. 

Em outubro de 1980, faleceu Evgeniya, mãe de Pereliéchin, aos 87 anos. Victor se preparou para regressar definitivamente aos Estados Unidos e convidou o irmão para acompanhá-lo. Mas o poeta recusou. “Eu tenho amado o Brasil e já o declarei como minha terceira e última pátria e, consequentemente, eu não quero abrir mão da nacionalidade brasileira”. Pesou também a necessidade de ser livre. Por algum tempo, antes de retornar de vez à América, o irmão visitava sua propriedade em Mury, distrito de Nova Friburgo, para onde havia se mudado ainda no tempo em que a mãe deles estava viva. Numa destas ocasiões, flagrou Pereliéchin com um rapaz em casa. As ameaças de expulsão eram constantes. O clima de tensão entre os dois era permanente. 

Em janeiro de 1983,  Pereliéchin passou a viver no Retiro dos Artistas, graças ao apoio de seu amigo, Humberto Passos, que o ajudou decisivamente também na escrita em português e com quem traduziu um dos grandes nomes da Era de Prata Russa, o poeta Mikhail Kuzmin. No ano em que passou a viver em um apartamento no asilo, veio a público seu primeiro livro de poemas em português, Nos odres velhos. A recepção que houve foi mínima e ainda assim não foi boa. O poeta e tradutor Ivan Junqueira, no Jornal do Brasil, falando sobre a preferência pelo soneto, que “o gênero fica aqui reduzido a um simples e vulgar esqueleto métrico”.

Por causa deste livro, Pereliéchin foi entrevistado pelo jornal O Estado de São Paulo, no qual chegou a falar sobre suas preferências estéticas: “Não gosto do verso livre, sem rima. Sou um poeta que busca sempre trabalhar com a rima e os recursos do soneto. Sempre me defini como um poeta neoclassicista e minha poesia é erótica, sem ser obscena; mística e cheia de filosofia que aprendi ao longo da minha vida”.

Na poesia russa, o soneto, enquanto gênero, nunca foi tão popular como na brasileira, na qual veio a se tornar uma espécie de forma preferencial utilizada pelos poetas das escolas anteriores ao Modernismo. Ao experimentar a criação de Petrarca, Pereliéchin se consolidou como um dos melhores sonetistas na língua de Pushkin, conforme juízo de Aleksis Rannit (1914-1985), especialista em literatura russa e professor na Columbia University, de Nova Iorque. Se para a poesia russa, o soneto tem, poderíamos dizer,  uma certa aura exótica, o que oferecia algum charme a quem o praticava,  a poesia brasileira, engolfada na experimentação, o soneto era uma espécie de símbolo do atraso.

Um cultor da forma fixa em tempos de vanguarda

Analisando os que seguiam na contramão do vanguardismo, Alfredo Bosi foi preciso ao destacar a solidão dos cultores da forma fixa no Brasil, nos anos 1970. “Escrevendo em um período de drástica negação do discurso metafórico e musical, desvinculados das vanguardas e do seu esquema de sustentação ideológica, esses poetas têm dado exemplo de uma resistência às modas criadas pelo desenvolvimento tecnicista. A fragilidade extrema e, não raro, solitária dessa posição tem a força de um testemunho”.

Se, sob o ponto de vista da forma, a poesia brasileira investia no desmonte, vide o encerramento do ciclo do verso, proposto pelos concretistas, a exploração sígnica da Instauração Práxis e a radicalidade performática do Poema Processo, num outro eixo, este em relação ao  conteúdo, havia o apelo à poesia participativa e engajada, de viés esquerdista, representada por vários poetas como um Thiago de Mello e o seu “faz escuro, mas eu canto”, bem como a série Violão da Rua, publicada pela editora Civilização Brasileira, que era ligada ao Partido Comunista. Como bem observou Luciana Stegagno-Picchio: “Toda a história da poesia brasileira moderna é um vaivém entre forma e conteúdo, uma contínua reformulação de poéticas desalienantes e de retornos a controles formais capazes de entravar o fluxo demasiado fácil de uma poesia de denúncia e de protesto”.5

Era este o contexto histórico e estético, no qual Valério Pereliéchin viveu. Cultor de formas fixas e de poesia rimada, anti-comunista e simpático à ditadura militar brasileira, o poeta viveu a solidão de um exílio dentro do exílio. Escreveu ainda outro livro de poemas em português, O caçador das sombras, com o qual participou de um concurso, em 1987, ano em que lançou Cânticos de Alexandria, tradução que fez com Humberto Passos da obra de Kuzmin. Sobre seu segundo livro de poemas em português, disse: “Eu não acho que eu tenha chance: o livro é fortemente homoerótico e escrito por alguém estrangeiro à cultura. Não vou ficar chateado. Além do mais, poemas rimados e metrificados estão fora de moda há muito tempo (…) Em nosso querido e ensolarado país há as formas mais variadas de amor, mas não é permitido falar a respeito”. O livro, cujos originais provavelmente se perderam, permanece inédito até hoje.

Amizade com Joaquim Cardoso e paralelo com Bishop

Embora muitos dos poetas brasileiros que traduziu estivessem vivos, Pereliéchin só conseguiu fazer amizade com Joaquim Cardoso (1897 -1978), a quem deu aulas de chinês. Pereliéchin chegou a escrever a um amigo que os poetas brasileiros só se interessavam por si mesmos.

Morreu em 1992, quase cego, pobre e sozinho no Retiro dos Artistas às vésperas de completar 70 anos.  O curioso é que Pereliéchin chegou quase no mesmo período em que aportou por aqui outra poeta estrangeira e gay: Elizabeth Bishop, que veio em 1951. A impressão que se tem é a de que, embora vivessem na mesma cidade, os dois habitavam mundos completamente diferentes.  Ela, rica; ele, pobre; ela, dos Estados Unidos; ele, em princípio, russo, mas nem poderia granjear apoio dos que defendiam a União Soviética, pois era manchado pelo estigma de ter emigrado. Cogitou-se, não faz muito tempo, homenagear Elizabeth Bishop em um dos mais importantes eventos literários do ano. Além de ter vivido mais tempo em nossa terra, o papel que o Brasil desempenhou na obra de Pereliéchin é incomparavelmente maior.

O esquecido e desconhecido Pereliéchin, que afirmou ter se tornado “mulato”,  se considerava um “poeta brasileiro que escrevia em russo”. Ao todo, publicou 14 livros. Dez deles escritos ou editados enquanto vivia no Rio de Janeiro. Em nosso país, há poucos registros sobre ele: um belo ensaio escrito por Carlos Alberto Cortez Minchillo, além de menções feitas pelo imortal da Academia Brasileira de Letras, Antonio Cícero e constantes referências feitas pelo escritor Ricardo Domeneck. Mas a boa notícia é que a editora Jabuticaba anunciou, para este ano, o lançamento de “No ano de 2040: poemas- Valéri Pereléchin”, com tradução de Letícia Mei.


POEMAS DE VALÉRIO PERELIÉCHIN, TRADUÇÃO ASTIER BASÍLIO

CORCOVADO

No Corcovado a me encontrar
Perto do Cristo, em solidão
Como um rebanho, sobre o ar,
De um pico ao outro, as nuvens vão
 
Se desmanchando ao anoitecer:
A praia, os carros, casas e
Quanto a alegrar-se e a padecer,
Nada me ocorre estando aqui.
 
Arrebentar de sopetão,
É bem mais fácil aqui, o fio,
Trama de tédio e de paixão,
Arremessar no ermo do Rio.
 
Tormentas velhas, voem pro chão.
Caia daqui, minha amargura!
Entre os azuis que se esvairão,
Irei ser como a nuvem pura
 
E como um disco a despencar
O sol no além da linha vai.
Ao mundo mínimo, vulgar
Eu estou perto, orarei ao Pai.

1.VII. 1953
КОРКОВАДО

Я на вершине Корковадо
У статуи Христа, один.
Лишь облака сюда, как стадо,
Из-за других идут вершин.
 
Тускнеют в предвечерних далях
Дома, и пляжи, и авто.
О радостях и о печалях
Здесь не напомнит мне ничто.
 
Здесь так легко почти без боли
Страстей наскучившую нить
Прервать одним порывом воли
И в дольний город уронить.
 
Летите вниз, былые бури,
Прочь отпади, моя тоска!
Один средь меркнущей лазури
Я буду чист, как облака.
 
Следя, как падающим диском
Уходит солнце за черту,
О Мiре маленьком и низком
Я, близкий, помолюсь Христу.

TRÊS PÁTRIAS
 
Nasci eu próximo ao bravio
Rio indomável Angará,
Em julho, um mês que nem é frio,
Mas de calor, não lembro lá.
 
Comigo a filha do Baikal,
Brincou igual fosse eu bichinho:
Um cafuné meio brutal,
Depois chutou-me do caminho
 
De latitude eu não sei, mas
Me aguço ao novo brilho é que
Fui dar na terra que é dos chás
Da seda, lótus e do leque. 
 
Preso ao falar monossilábico
(Tal como os anjos lá com o Rei?..)
Amei em amor, nem me foi árduo,
Segunda pátria que ganhei.
 
Mostrou-se simples minha sina:
Aqui com êxtase, ali em ais,
Mas expulsaram-me da China
Como da Rússia e nunca mais
 
No exílio e não mais esquecido,
Eu dou o restante dos meus dias
Para o Brasil desconhecido,
A derradeira pátria minha
 
Quase é um corpo o ar, compacto,
Aqui, crescendo num feitiço,
Vão gelar cânticos arcaicos,
Mas sem qualquer sentido nisso.


27- XI -1971
ТРИ РОДИНЫ
 
Родился я у быстроводной
неукротимой Ангары
в июле — месяц нехолодный,
но не запомнил я жары.
 
Со мной недолго дочь Байкала
резвилась, будто со щенком:
сначала грубо приласкала,
потом отбросила пинком.
 
И я, долгот не различая,
но зоркий к яркости обнов,
упал в страну шелков, и чая,
и лотосов, и вееров.
 
Плененный речью односложной
(Не так ли ангелы в раю?..),
любовью полюбил несложной
вторую родину мою.
 
Казалось бы, судьба простая:
то упоенье, то беда,
но был я прогнан из Китая,
как из России, — навсегда.
 
Изгой, но больше не забытый,
я отдаю остаток дней
Бразилии незнаменитой
последней родине моей.
 
Здесь воздух густ, почти телесен,
и в нем, врастая в колдовство,
замрут обрывки давних песен,
не значащие ничего.

 
NO BRASIL
 
E março deu num pensativo abril,
Sob a janela, umas semanas já
Que entre o Ariel ultramarino há
Uma polêmica com o do Brasil.
 
Ora se acertem! O quarto eu dividi:
A mesa, o berço (pra sobrinha) lá;
Uma cama pra cada qual terá.
Mesmo no chão, vamos pra cama ali.
 
Um tem cabelo preto, o rosto alvo,
Por debaixo dos cílios voam raios,
sua voz é como uma araponga em ais.
 
Mas veio o outro criticando a gente
Pelos incertos ditongos nasais.
Só que ele fala russo, simplesmente.
В БРАЗИЛИИ
 
Сменился март задумчивым апрелем,
А под окном уж несколько недель
Полемику бразильский Ариэль
Ведет с другим — заморским Ариэлем.
 
Столкуйтесь же! Мы комнату разделим:
Стол письменный, пустую колыбель
(Племянницы), и каждому постель,
Хоть на полу, но как-нибудь постелим.
 
Черноволос один и белолиц,
И молнии летят из-под ресниц,
И речь его — как зовы арапонги
 
Зато другой обоих нас корит
За смутные назальные трифтонги
И попросту — по-русски — говорит.
EU AMO FUTEBOL
 
Eu amo futebol, mas jogador
No veludo da praia, eu amo mais.
Quando ao longe o ocaso ardendo faz
Um frenesi de raios e de cor.
 
Ametista, romã, rubi: fulgor
Como em cadarço balançando. Mas
Tendo um apito e cassetete, cai
A noite igualmente um inspetor.
 
“Eu não posso a ninguém dar permissão
de armar tenda ao cais escuro, então
Ao madrugar, vocês se beijem, brinquem”.
 
Pra nós o mar cama nenhuma apronta.
Pena. Vamos, meu esportivo viking,
Para um hotel limpinho e bem em conta.
 
28.X.1977
ЛЮБЛЮ ФУТБОЛ
 
Люблю футбол, а больше — футболистов,
Играющих на бархатном песке,
Когда закат, пылая вдалеке,
Лученьями и красками неистов:
 
Блеск яхонтов, гранатов, аметистов,
Колеблемых, как будто на шнурке.
А между тем, с дубинкой, при свистке,
Подходит ночь, как полицейский пристав:
 
— «Я никому позволить не могу
Разбить шатер на темном берегу,
А засветло — целуйтесь и резвитесь».
 
Жаль: у воды не выйдет нам постель.
Пойдем же — я и мой спортивный витязь
В недорогой, но чистенький отель.
 

Notas

1 Pereliéchin, Valério. Em vez de um prefácio. In Nos Odres Velhos. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983.

2 Pereliéchin, Valério. Russian poetry and literary life in Harbin and Shanghai, 1930–1950: The memoirs of Valerij Perelesin / В. Перелешин; Ed. J. P. Hinrichs; introd. by ed. Amsterdam: Rodopi, 1987, p. 159.

3 Bakich, Olga. Valerii Pereleshin – the life of a silkworm. Toronto: University of Toronto Press, 2015, p. 214.

4 1. Перелешин В. В час последний: Стихотворения и поэмы: В 2 т. Т.2, кн. 2. – М.: Престиж Бук (Серия «Золотой Серебряный век»), 2018. – 432 с.

2. Перелешин В. Заблудившийся аргонавт: Стихотворения и поэмы: В 2 т. Т. 2, кн. 1. – М.: Престиж Бук (Серия «Золотой Серебряный век»), 2018. – 448 с.

3. Перелешин В. Три Родины: Стихотворения и поэмы. Том 1. – М.: Престиж Бук (Серия «Золотой Серебряный век»), 2018. – 608 с.

5 Stegagno-Picchio, L. História da literatura brasileira. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2004, p. 744.

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