Jocê Rodrigues
Mas a carne é que é humana! A alma é divina. Dorme num leito de feridas, goza O lodo, apalpa a úlcera cancerosa, Beija a peçonha, e não se contamina! Augusto dos Anjos
Uma das tarefas mais infames à qual um ser humano pode se dedicar é tentar definir o que é a arte. Infame e inútil, já que para nada serve.
Até as mentes mais sábias não escapam à tentação de etiquetar a arte e transformá-la no iceberg de suas obsessões particulares.
Assim como a água, quando a arte se paralisa em conceitos, torna-se repositório de bactérias e parasitas que infectam a alma de quem a bebe.
Do mesmo modo, quando a arte se torna refém da subjetividade e do capricho do espectador, as portas do inferno se abrem e o cheiro de enxofre toma conta de todos os altares.
Em meio a tantas outras definições inúteis e insuficientes da arte, eu gostaria de acrescentar mais uma: a experiência estética possui uma essência insondável e indecifrável.
É como o mote da antiga filosofia chinesa, que diz que o Tao que pode ser definido não é o Tao. Ou como Santo Agostinho, que defendia que o Deus que pode ser explicado não é Deus.
Clichês repetidos à exaustão entre intelectuais de boutique, mas que na prática denunciam a dificuldade insuperável das mentes altamente alucinadas com o ritmo das redes sociais.
Proponho então, assim como muitos outros já propuseram, que a essência da arte seja transcendental. Ela escapa à língua, à fonética e ao raciocínio.
Contudo, e aqui acredito estar minha efêmera contribuição, quando parida no lodaçal do palco humano, a arte se manifesta sob duas formas que, no fundo, ocultam a sua verdadeira e incompreensível face.
A primeira forma se expressa como uma saudade marcada pelo profundo desejo de retorno a uma origem desconhecida. E os ícones e a arte religiosa representam bem essa maneira, pois transmitem uma mensagem codificada de nostalgia e anseio por um regresso ao paraíso perdido.
A segunda forma traz em suas feições os ridículos contornos da vaidade. As artes do Renascimento tardio, da modernidade e da contemporaneidade são suas maiores representantes. Afinal, toda arte, quando despida de qualquer princípio transcendental, não passa do mais puro exercício de vaidade.
O chamado mercado de arte talvez seja uma das principais e mais pútridas chagas da arte manifestada sob a máscara da vaidade.
Os preços exorbitantes e estratosféricos não dizem sobre a arte em si, mas sobre quem as adquire, quem as possui e mesmo quem as vende. Orgulho e desejo guiam as transações, não o belo e, tampouco, o transcendente.
A arte, sob as lentes atuais, não passa de um nome dado a produtos que funcionam como carros de bois que lentamente carregam os cadáveres de ideias antigas para o cemitério da interdição. Não há lugar para o sublime, apenas para o choque, para o incômodo imbecilesco e infantilizado.
E quantos aplausos, quantos urros cavernosos saltam das gargantas inflamadas dos críticos, curadores e colecionadores a cada vez que a obra de um artista, vivo ou morto, alcança um novo recorde de valor. Vaidade das vaidades.
Há tempos o rei está nu, despido de roupas, pele, sangue e carne. Sua caveira macabra dança ao ritmo das palmas dos espectadores de olhos carcomidos pela catarata da ignorância. E tudo parece necessário, lúcido e urgente.
O fato é que vivemos sob o signo da vaidade e obras com as características naturais da manifestação da saudade e da nostalgia são cada vez mais raras.
Enquanto isso, telúricas novidades, impulsionadas pelos “amantes da arte”, desviam-nos da contemplação do céu, em favor dos fetiches da matéria e de ideias em estado avançado de decomposição.