Tinta forte dissimulada em tons esmaecidos

Camille Pissarro, "Vista de Bazincourt, pôr do sol" (1892)
Museum Barberini, Potsdam

Luiz Eduardo de Carvalho

Gris é o título do novo livro do poeta mineiro de Umburatiba, Wilbett Oliveira, que, além de autor e pós-graduado em Literatura Brasileira, é também editor. Ele já publicou de sua autoria Nominal, em 2003; Garimpo e outros poemas, em 2006; Sêmen, em 2007; Salignalinguagem, em 2011; Salmodiar, em 2012; Minúsculos, em 2013; Silêncio e escombros, em 2015; e Despalavras, em 2022.

Este seu nono livro é, a rigor, um único e longo poema, dividido em duas partes, num fracionamento que faz menção ao poema “Traduzir-se”, de Ferreira Gullar, já que os intertítulos são “Uma Parte” e “Outra Parte”, numa clara alusão ao jogo proposto pelo poeta maranhense que se apresenta ao leitor em bipartições complementares para terminar indagando se “traduzir-se uma parte / na outra parte / — que é uma questão / de vida ou morte — / será arte?”

Em Gris, Wilbett Oliveira parte do mote “em vão faço um poema…” e glosa até o fim do livro com o complemento “como se…”, e cada glosa constitui em si um pequeno poema, continuidade da grande ode, cada um deles destacados em páginas consecutivas, que abarcam duas questões centrais de sua poesia: a temática e o estilo – ou, como expresso no poema de Gullar, a vertigem e a linguagem –, num enjambement que persiste até o final da obra e fica ainda mais patente quando da interrupção para o anúncio do início da segunda parte do livro, que se faz bem no meio de um sintagma iniciado no último verso da primeira parte para ser continuado nos versos inaugurais da seguinte.

Algumas vezes sobrepostas numa mesma expressão, tais frentes figuram como um índice de seu fazer poético que acaba servindo de profícuo guia para poetas, principalmente aos neófitos como eu, que buscam razões e métodos na tessitura da poesia. O quê e o como, de mãos dadas, e às vezes superpostas, pela senda da composição num espelho de reconhecimento que delata a maturidade do poeta pronto para se desnudar nesse exercício de autoconhecimento.

E, daí, talvez, o título da obra que transpira tal maturidade, mas que, talvez, por outra linha, apenas signifique realmente o cinza resultante das coisas postas assim: preto no branco! Talvez, ainda queiram alguns, o gris a significar o impresso que, por falha na tintagem, apresenta tons apagados e, nisso, o eu lírico a se delatar incompleto diante da tentativa de se mostrar completamente na própria fabricação de sua poesia e, consequentemente, de si mesmo. Talvez, por fim, seja tão somente o tecido tramado com “fios de mistério e desejos inacabados”, como dito no posfácio de Rosana Cristina Zanellato Santos, que faz menção à Penélope à espera de Odisseu trazido pelo canto do poeta que “era muito mais do que (re)criador de paraísos perdidos. Ele era o fundador da realidade, ele era o dono da história dos homens e dos deuses”. O tecido com a urdidura da própria poesia na espera de se reconhecer. Mas quem há de discutir a sua polissemia, ainda mais no título de sua expressão?

Embora nos guie por algumas rotas que levam à poesia, não se enganem, porém, aqueles que buscam um mapa ou um simplista manual para fazer versos, pois o poema Gris é um recorte, numa reflexão complexa e acurada, da infinita possibilidade da composição poética tanto no legado da tradição coletiva como nos caminhos particulares sondados por este poeta. Se, na primeira parte, ele apresenta os “comos” de seu fazer poético em terceira pessoa, universalizando o exercício no coro da própria poesia, na segunda parte, ele particulariza as escolhas e assume-as experimentadas em primeira pessoa. A incidência emotiva da linguagem nessa fração da lírica acentua a presença do autor na apresentação de sua essência e corrobora a perspectiva de que, ao refletir-se em seu fazer poético, Wilbett colhe as imagens de si mesmo e de sua inserção no concreto mundo dos temas que aborda e no abstrato universo da construção de sua própria linguagem, “como se eu fosse o resíduo / das coisas que vejo”; “como se… / me redimisse de tudo / o que não fui / e tudo em mim fosse signo / presença e fosse nada”.

A edição, que leva a assinatura da Editora Cajuína, é delicada desde a o formato diminuto até a capa com a convidativa paisagem impressionista de Pissarro, passando pelo título grafado numa elegante tipologia impressa como se resultado das pinceladas sobre uma tela e chegando a um projeto gráfico que prioriza os vazios como espaço de reverberação da madura poesia de Wilbett de Oliveira que, feita de tintas fortes, apresenta-se suave nos gris tons esmaecidos desta delicada confissão lírica.

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