Revista de Cultura

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O som do cristal quando quebra

Jerônimo Teixeira

As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. 
Carlos Drummond de Andrade

Para Eliane, Elisa e Guilherme

“Deveria estar chovendo” foi o que ele pensou um instante antes de ver o homem com cabeça de touro em pé, sozinho, no estacionamento do supermercado. Lembrará dessas palavras até o dia de sua morte, o dia que talvez seja sorteado pela loteria viral em que hoje todos concorremos com um número incógnito, “deveria estar chovendo”, o pensamento tão presente e palpável que já não parecia pensamento, era alguém mais, alguém outro – talvez eu? –, dizendo ao seu lado, ao seu ouvido, que era preciso que chovesse, que a Terra precisava ser limpa da peste, que o sono precisava ser embalado pelo ruído constante e triste da chuva, que a madrugada não deveria estar tão quieta e seca e o asfalto do estacionamento deveria brilhar como brilha a pele de uma baleia azul quando emerge ao alcance do arpão. Mas o chão está seco e opaco. O filme russo que ele acabara de ver no canal Film & Arts, a falta que sentira do gato que sempre dormia sobre suas pernas quando ele deitava no sofá, o sabor do uísque que em ocasiões normais ele nunca beberia sozinho tão tarde da noite ou tão cedo na manhã, o desenho do quebra-cabeças de 300 peças que o filho caçula deixara montado sobre a mesa, a ambulância que passava pela avenida Angélica no momento mesmo em que ele assomou à janela, de nada disso ficaria mais que uma lembrança enevoada pela insônia e pelo malte escocês, mas a frase restaria nítida, inequívoca em sua memória: deveria estar chovendo, pensou.

E então viu o homem com a cabeça de touro.

Na manhã do 11 de setembro, visitei a mãe no hospital. “Tem um arranha-céu pegando fogo em Nova York”, ela me disse logo depois que beijei seu rosto. O pai não estava, saíra para fumar. Na televisão do quarto, uma coluna de fumaça negra despegava-se da torre norte do World Trade Center. O locutor ainda não sabia o que causara o incêndio e limitava-se a repetir informações imprecisas. Então um avião foi engolido pela parede envidraçada da torre sul.

“Jonas, o que foi aquilo?”, minha mãe perguntou, e eu não sabia, e o locutor também não sabia, chamou um replay da imagem, e vimos de novo o Boeing estraçalhando a lateral do edifício, mais uma vez com a mesma sensação de irrealidade, de imersão em uma fantasia cinematográfica. Foi extraordinário e ao mesmo tempo banal: nos dias seguintes, conversando com amigos, conhecidos, parentes, todos relataram o mesmo sentimento de ter visto o que acreditavam não ser possível ver.

Há quanto tempo foi? Difícil dizer. Agora, na mesma janela do sexto andar, sob um céu de maio azul e limpo – houve apenas dois dias de chuva fraca desde o início da quarentena –, ele olha com desconforto para o estacionamento onde há apenas o carro do homem que minutos antes conduzira um labrador para o pet shop na galeria acima do supermercado. Tem a lembrança de que, no dia anterior à madrugada insone – desde então tem dormido surpreendentemente bem – , o Jornal Nacional anunciara que o Brasil chegara aos mil mortos. Mil mortos, e deveria estar chovendo. Mil mortos, e um homem com cabeça de touro entrou no estacionamento pelo portão que costuma ficar fechado à noite. Trazia na mão direita um objeto que de longe não era possível identificar, um bastão ou porrete de cor verde, e sentou-se no chão, a uns dois metros da vaga agora ocupada por um Honda Civic prateado.

Que dia é hoje?, o filho pergunta, às suas costas. O garoto está fazendo a lição de casa que a professora passou na aula on-line, livros e cadernos espalhados pela mesa da sala. A disciplina escolar não mudou com o ensino a distância: dia e mês sempre registrados a cada nova lição copiada no caderno.

As datas não são mais importantes, ele responde. O menino acha que é brincadeira, uma nova esquisitice do pai. Consulta a mãe, que lê um livro no sofá.

Hoje é 25 de maio, ela responde.

No final do dia, o número de mortos terá chegado a 23.522.

Tenho pensado muito na morte da minha mãe, agora que as notícias são dominadas pela crise da saúde pública. Com muita facilidade, o pensamento se compraz na mesquinha comparação das desgraças: câncer pancreático é náusea incontrolável, e é dor incessante, mas não é insuficiência respiratória, não é a angústia de se afogar sem água. E não é uma doença contagiosa: minha mãe esteve até o fim cercada de amigos, parentes, filhos, marido. Esses mortos tristes que desfilam no Jornal Nacional encontraram o fim isolados em uma UTI. Ou pelo menos foi assim com os que tiveram sorte de conseguir socorro médico.

Tenho pensado demais na minha mãe, quando deveria estar preocupado com meu pai.

Você está vivendo um momento histórico, ele diz para a filha, que não parece impressionada com a história que presencia no próprio bairro. É um momento histórico bem particular, explica, com a afetação professoral que ele às vezes assume na conversa com os filhos. Uma pandemia não tem início determinado (e nem fim certo, mas isso não se pode dizer a uma menina mal entrada na adolescência), não é o choque imprevisto do avião em um prédio, a ruptura súbita da onda gigante sobre o resort turístico, a emergência inesperada da faca em meio à multidão que carrega o demagogo. Em algum momento no final de 2019 o vírus que os cientistas batizariam de SARS-CoV-2 derramou seu veneno molecular nos alvéolos do primeiro humano infectado, um cidadão de Wuhan, mas ninguém dirá dali a dois, cinco ou dez anos que lembra exatamente onde estava e o que fazia quando isso aconteceu. A pandemia é um evento difuso e prolongado que se apresenta tanto nos números de mortos atualizados diariamente nos sites jornalísticos como na máscara azul estampada com patas de gatinho brancas que a filha usa neste primeiro passeio ao ar livre desde o início da quarentena em São Paulo, há pouco mais de dois meses.

Pai e filha seguem o trajeto que era rotineiro no tempo tão recente e tão remoto em que ele levava a menina – que já dispensaria de bom grado sua companhia – e o filho mais novo – que ainda segurava sua mão na hora de atravessar as ruas – até a escola. Passam em frente ao shopping Pátio Higienópolis, de portas cerradas; no quarteirão seguinte, detêm-se brevemente diante do portão da escola, contemplando os prédios centenários e silenciosos. Na avenida Angélica, onde eles moram, ainda havia carros na rua, e um número que ele julgou alarmante de pessoas circulando, mas aqui só se vê, cem metros adiante, uma senhora de máscara branca aguardando enquanto seu poodle urina na banca de jornais fechada.

Você não sente como se isso não estivesse acontecendo de verdade?, ele pergunta.

Sim, às vezes, a filha responde. Como se fosse um sonho.

Está mais para pesadelo.

Não. Um pesadelo é apavorante.

E você não está apavorada?

Não, pai! Faz um tempão que estou presa em casa. Estou entediada.

Ele responde com uma provocação paternal sobre a idade dela. Adolescentes não têm medo nem juízo. Mas a verdade é que ele mesmo não tem medo. Não é exatamente medo o que sentimos, nós, adultos, embora tivéssemos razão para tanto. Será tédio o nome disso? A inquietude que o impede de se concentrar em uma tarefa única mas que não é capaz de arrancá-lo do sofá onde revê, sem alegria, episódios de Seinfeld, a dispersão que o faz demorar cinco, dez minutos na mesma página da biografia de Cervantes que está tentando ler há meses, o desejo urgente mas sempre trancado na garganta de relatar à família a estranha visão que teve em uma noite no fim de março ou começo de abril – isso tudo não pode ser tédio.

A intenção era chegar até as imediações do Pacaembu, ver de longe o hospital de campanha montado em frente ao estádio. Mas o elástico da máscara está machucando as orelhas da filha, ela quer voltar para casa.  Retornam em silêncio. No prédio onde moram, ela toma o elevador antes do pai, que fica aguardando no térreo – precaução desnecessária para duas pessoas que vivem juntas, mas ele não se dá conta disso.

Mesmo quando encontro meu pai frágil e desorientado na casa de repouso, ele nunca me parece tão acabado quanto estava ao lado do caixão da minha mãe. No velório, recebeu a todos com serena gentileza: três irmãos e duas irmãs (a mais velha, senil, a cada cinco minutos perguntava quem era a senhora sendo velada) com suas mulheres e maridos, uma dúzia de sobrinhos, amigos, conhecidos. Sempre que os protocolos sociais o liberavam, ele ia se postar ao lado da mulher com quem dividira a vida por 36 anos. Às vezes levava a mão tímida ao rosto frio, um carinho desajeitado e desamparado que dava ao viúvo sexagenário ares de criança órfã. Meu pai tinha quase um metro e noventa, uma altura que até então não se curvara ao peso dos anos. Ao lado da mulher morta, porém, os ombros largos encolhiam, o porte ereto oscilava. Permitiu-se chorar apenas uma vez, no carro que nos conduziu ao cemitério.

O homem com cabeça de touro sentou-se no chão de asfalto e lá ficou por um bom tempo. Dez, quinze minutos? Não havia ninguém na guarita do segurança, junto à entrada do estacionamento, o que era incomum. Ou o homem com cabeça de touro seria o novo guarda noturno? Vestia camiseta amarela, calça jeans, tênis branco, e quase não mudou de posição no tempo em que esteve ali, as pernas dobradas, as mãos sobre os joelhos, o objeto verde atravessado sobre o colo. De longe, não era possível discernir para onde o homem com cabeça de touro olhava. Talvez para o prédio à sua frente, para o homem de pijama na janela do sexto andar.

Tive uma visão esta madrugada, ele disse à mesa do café da manhã, no mesmo momento em que estourava outra vez a briga entre seus filhos.

Você é uma chata, chata!, o menino berrou.

Chata é essa mulher do YouTube que você vê!, a filha respondeu em voz mais alta e mais aguda.

Pedro, Daniela, vamos parar com essa briga agora, interveio a mãe. O nomes por extenso sinalizavam que Adriana exigia obediência imediata. Quando não estava disciplinando os filhos, ela os chamava de Pê e Dani.

Aquela rusga matinal repetia, quase com as mesmas palavras, a disputa que já se ouvira em outras refeições, e que se tornaria ainda mais renhida nos arrastados meses de isolamento social. A maldição do streaming: Dani não suportava a youtuber que o irmão seguia pelo iPad, uma gamer histriônica que se esganiça na narração de jogos de Minecraft; Pê detestava toda a plêiade de jovens cantoras pop que a irmã ouvia pelo celular, com amplificação no alto-falante Bluetooth, e ainda que os dois se trancassem nos respectivos quartos para cultivar seus hábitos particulares, ficavam separados só por uma parede de precário isolamento acústico. A intervenção segura da mãe silenciou mas não resolveu a disputa. Pê ainda resmungou um impropério ininteligível contra a irmã, e contra os pais que sempre davam razão para a irmã, mas se calou frente ao olhar severo da mãe. Adriana tentou reconquistar a mesa para os adultos:

Você estava dizendo que viu alguma coisa ontem à noite?

Ah, sim… Um filme do Tarkovsky. Nostalgia.

Esse eu não vi. Bom?

Sim, muito bom, ele respondeu.

Queria dizer alguma coisa mais substantiva sobre o filme (ainda me resta algo a dizer?), mas não soube por onde começar, se pelo poeta russo que percorre uma casa arruinada e inundada ou pelo místico italiano que ateia fogo às próprias roupas em uma praça de Roma. O filho, já esquecido da mágoa tão profunda que guardava pela família menos de um minuto antes, perguntou o que é nostalgia. A mesma coisa que saudade, ele disse, mas não é, eu sei que não é, e Adriana se botou a buscar exemplos, a empregar a palavra em frases variadas, todas elas sobre o isolamento que o vírus impôs – tenho nostalgia de pegar o ônibus para o trabalho – nostalgia de ir com vocês ao cinema – nostalgia de ir ao shopping com a Bebel e a Gabi (isso foi sua filha quem disse), e ele cogitou em fazer um reparo ao emprego impróprio da palavra, não, para essas coisas cabe falar em saudade – ou talvez nem essa palavra caiba – mas nostalgia, nostalgia é outra coisa.

Então lembrou a palavra “visão”.

Tive uma visão, dissera ele, frase que foi misericordiosamente abafada pela gritaria dos filhos. Como São João cercado por bestas escatológicas na ilha de Patmos, como Lutero surpreendido pelo diabo que salta da lareira, como Santa Teresa atravessada pela lança, como os pastorzinhos de Fátima ajoelhados aos pés fantasmais da Virgem. 

Não, não foi nada disso! Era apenas um homem com uma fantasia.

Ele repetirá isso nos dias seguintes, como um mantra para tranquilizar o espírito: era um homem fantasiado de monstro antigo. Foi só uma fantasia.

Adiantei as férias de 2001, abandonando o antigo sonho, até hoje não realizado, de conhecer a Dublin de Joyce, para ver a mãe pela última vez. Quando marquei as passagens para Porto Alegre, já sabia que a quimioterapia tivera resultado nulo, o câncer pancreático espalhara-se pelo sistema digestivo, mas não havia nenhuma certeza sobre o tempo de vida que ainda restava à doente. Ela sofreu um desmaio em casa, no dia seguinte à minha chegada. Foi internada e não saiu mais do hospital, alternando momentos de lucidez com longos períodos de sono convulsionados por dores e delírios. No 11 de setembro, acompanhou com interesse as notícias sobre o atentado, mas já estava apagada quando as torres do World Trade Center ruíram. Sua última gentileza materna foi nos deixar antes que minhas férias chegassem ao fim. Morreu em 28 de setembro, uma sexta-feira; meu retorno a São Paulo já estava marcado para segunda-feira, 1º de outubro. 

Meu irmão Jeremias, que mora em São Francisco, teve dificuldades para conseguir voo nos dias caóticos que se seguiram aos atentados, e só pôde acompanhar a semana final da agonia, quando a mãe já estava sempre sedada e inconsciente. Em compensação, ainda teve alguns dias para fazer companhia a nosso pai, na casa onde crescemos na Vila Assunção. De volta a São Francisco, me mandou um e-mail informando que deixara o pai em bom estado de espírito, consideradas as circunstâncias. Mas espírito e circunstâncias são notoriamente inconstantes.

Pela manhã, os filhos ocupam a mesa da sala, onde a recepção de WiFi é melhor, para assistir às aulas on-line pelo Zoom. À tarde, quando pelo menos um dos dois laptops está desocupado, é sua mulher que ocupa a mesa para escrever relatórios e pareceres. A sala já fora seu escritório quase exclusivo, pelo menos no horário em que os filhos estavam na escola, e também à tarde, quando havia cursos de inglês, e piano, e natação, e a funcionária da casa (temporariamente dispensada de comparecer ao trabalho) conduzia as crianças a esses compromissos. Demitido de seu posto de editor em um jornal sete meses antes da quarentena, ele acreditou – ou quis acreditar – que poderia viver na condição de freelancer, que a dinâmica fluida do novo mercado de trabalho lhe permitiria uma existência mais produtiva e mais criativa, nunca mais as morosas reuniões de pauta, as horas perdidas no trânsito lento da marginal Pinheiros, agora o home office lhe daria tempo para projetos pessoais, retomaria o curso de alemão que abandonara na segunda declinação, viajaria a Minas Gerais para pesquisar o livro que planejara sobre o grupo modernista de A Revista, passaria a correr em volta da Praça Buenos Aires com regularidade, comeria mais frutas e fibras, deixaria de discutir com estranhos no Facebook.

Mas agora se acha cativo com Cervantes em Argel: não consegue ultrapassar esse capítulo da biografia que tirou da prateleira, sabe-se lá por que razão, no início do ano (por que ainda leio, e do que me serviu já ter lido tanto?). Interrompeu a leitura do livro em março, para escrever o ensaio que então se tornara obrigatório para todos os jornalistas de cultura: a literatura das epidemias. Decameron, Diário do Ano da Peste, Morte em Veneza, A Peste – revisitar esses livros reanimou seu antigo ritmo de leitura, mas, ao escrever o texto, cruzando previsivelmente a ficção e a biografia dos autores (não conseguiu contornar a afirmação vulgar de que o “Tadzio da vida real” era um garoto polonês chamado Władysław Moes), foi sendo tomado por um mal-estar difuso que evoluiu para o enjoo físico. Recusou o almoço com a desculpa de que estava atrasado para a entrega do texto, encomendado por uma revista semanal. Nas semanas seguintes, comparou seu ensaio à meia dúzia de textos sobre o mesmo tema publicados em outros veículos. Detectou três erros de informação de outros autores, um erro em seu próprio texto, apreciou especialmente o artigo que também falou das artes visuais (não sabia que Ticiano havia sido uma vítima da peste), e saiu em busca de um novo artigo para oferecer aos jornais e revistas com que costumava colaborar.

Busca infrutífera: quase não escreveu desde então, e nesta tarde de maio em que ele tem a rara oportunidade de ocupar um dos computadores da casa, põe-se a jogar Mahjong. Um dos duvidosos ideogramas do jogo lembra uma cabeça de touro.

Meu pai mal passara dos 70 quando tive de contratar dois cuidadores que se revezavam para vigiá-lo em tempo integral. Essa onerosa equipe era renovada periodicamente porque poucos conseguiam segurar o paciente turrão quando ele decidia sair para beber em algum boteco suspeito. Em 2008, depois de botar para correr a última e mais resiliente enfermeira, meu pai sofreu uma queda feia e bateu a cabeça (na mesa da sala, ele insistia em dizer, embora eu soubesse que foi no balcão de um bar). Alberto, o primo com quem tenho mais amizade, acompanhou meu pai na semana em que passou no Hospital Ernesto Dornelles para tratar da concussão. Um dia antes da alta, eu estava em Porto Alegre, recolhendo roupas e objetos pessoais do meu pai. Não o deixei voltar para a casa na Vila Assunção. Foi até fácil convencê-lo a ir para São Paulo: a convalescença hospitalar o deixara amaciado, submisso, com a vantagem adicional de tê-lo mantido sóbrio.

Casa de Repouso Xanadu. O nome é ridículo. Aliás, já acho besta o eufemismo “casa de repouso” (mas meu pai talvez se recusasse a morar em um asilo). Fica em Cotia, na bucólica vizinhança onde também há uma fazendinha que oferece às crianças urbanas a oportunidade de passar o dia dando capim na boca dos cabritos e tirando leite de uma vaca complacente. A casa tem médico em plantão permanente, fisioterapia, recreação e até uma piscina térmica, que meu pai só aproveitou nos primeiros meses. É cara. Jeremias, meu irmão mais jovem e mais rico – a pandemia adiou o lançamento de sua terceira start-up – prontificou-se a pagar três quartos da conta. Na ficha médica que preenchi na internação, omiti os problemas do novo paciente com a bebida.

A literatura das epidemias, a literatura da fome, do genocídio, do Gulag e de Auschwitz. Da Grécia, de Roma, de Castela e Aragão, de Portugal, do Império Austro-Húngaro, do Império Britânico, de todos os impérios, auge, declínio e queda. A lista é infindável. Jonas talvez pudesse tirar seu parco sustento só desse gênero de reportagem cultural. Mas isso é tão “redutor”, diria ele ao tempo em que se dedicava seriamente ao estudo de teoria literária (meus projetos todos adiados, abandonados).

A literatura não pode ser só esse comentário erudito sobre as catástrofes do dia, a literatura é qualquer coisa de…, a literatura nos faz mais…, nos eleva até o…, e sem ela a nossa humanidade se tornaria menos…

Tantos anos debruçado sobre os livros, e só sabe repetir clichês beletristas. O que é a literatura para ele, e o que é ele para a literatura? Ah, mas até isso é um eco de Hamlet: “What’s Hecuba to him, or he to Hecuba?“. Literatura será afinal essa coleção de citações que ele pode tirar da cartola de mágico pobre para divertir os amigos em festas – ou em grupos de WhatsApp, agora que não se pode mais promover festas, e que não há o que festejar?

Avançou um pouco na biografia de Cervantes. Chegou até a prisão em Sevilha, e então fechou o livro e testou mentalmente os próprios conhecimentos, só para descobrir que não sabia dizer nada de especial sobre a participação do escritor na Batalha de Lepanto. Voltou aos autores mais queridos, na esperança de reencontrar o conforto e o arrepio que a leitura sempre lhe trouxera, mas um dia se surpreendeu na poltrona do quarto com um livro no colo, um livro que ele já não sabia qual era. De quem é, o que é esse pássaro que vem azul e doido, e como ele pôde se esfacelar na asa de um avião? Era Drummond, a obra completa da Aguilar tão manuseada e desgastada pelas leituras do Doutorado – mas eu não apresentei a tese, eu nunca levo nada até o fim –, e ele deveria ter reconhecido o verso.

De volta ao Mahjong, ele não encontra mais o ideograma que outro dia achou parecido com uma cabeça de touro.

O pai uma vez passou uma semana sem voltar para casa. A mãe escondeu isso dos filhos, queria nos preservar da verdade. “Ele está em viagem de negócios”, mentiu, embora o pai, advogado de causas cíveis em Porto Alegre, nunca tenha precisado viajar a trabalho. Eu ouvi, escondido no corredor da casa, quando a mãe desabafou com a vizinha argentina divorciada e desocupada que vinha conversar na nossa cozinha quase todos os dias. “Eu ligo todos os dias para o escritório dele, já falei com todos os colegas dele, dei queixa na polícia. Ninguém sabe me dizer nada, ninguém ajuda em nada!” Minha mãe temia acidente, sequestro, assassinato; a vizinha, mais sensata e mais cínica, sugeria a possibilidade de um caso extraconjugal. “Tal vez tiene un cacho”, disse, em saborosa mistura do castelhano com a gíria brasileira. Dois dias depois, quando voltamos da escola, a mãe nos recebeu na porta de casa com a boa notícia de que o pai voltara da viagem. Jeremias foi correndo abraçá-lo. Só lhe contei a verdade mais de vinte anos depois, quando ele estava de mudança para os Estados Unidos.

Houve ainda a ocasião em que ele levantou a mão para mim – não chegou a desferir o tapa – quando, inflamado de esquerdismo adolescente, eu o chamei de hipócrita e reacionário. Eu pensava ter esquecido, superado esses episódios antigos, eu julgava que um ano e meio de psicanálise lacaniana houvesse me curado de qualquer trauma e me purgado de todo ressentimento. Mas os quatro dias conflituosos que o pai passou em meu apartamento enquanto eu ultimava os acertos com a casa de repouso, e as duas ocasiões em que tive de dirigir até Cotia no meio da noite para demovê-lo da ideia de fugir do asilo, e os trâmites judiciais para declará-lo incapaz de gerir o próprio patrimônio – o aluguel da casa em Porto Alegre é um alívio para mim e também para Jeremias, que ontem me ligou para dizer que o dinheiro que investiu na nova start-up provavelmente está perdido – tudo isso reavivou mágoas arraigadas. Eu seria incapaz de dizer isso em voz alta, mas aqui, por escrito, posso ser honesto, posso ser bruto: jamais perdoarei meu pai por não ter morrido antes de minha mãe.

O esforço para sustentar sozinho o peso dos dias, para não deixar que as crianças também sejam esmagadas. Pedro todo dia pede para brincar de “lutinha”, e ele quase sempre acede ao pedido. A mulher teme que algum morador dos prédios vizinhos os veja pela janela e chame a polícia, imaginando reais os socos que o pai finge dar no filho. O menino alegra-se com a brincadeira e talvez por isso pense que o pai também está alegre. Daniela, quando não está estudando, isola-se no quarto para ouvir repetidas vezes as canções de Bishop Briggs e Billie Eilish que tanto irritam seu irmão.

Só Adriana percebe que há algo de errado, ou pelo menos só ela pergunta ao marido o que, afinal, ele tem. Nada, não tenho nada, estou bem, ele responde, mas ela insiste, diz que ele parece irritadiço, tenso. Ele desconversa: se alguém não vive tenso hoje em dia, é porque não entendeu o que está acontecendo. Para encerrar a conversa, ele deixa o quarto do casal e vai lavar a louça na cozinha – apesar do ânimo sorumbático, nunca deixou de realizar as tarefas domésticas.

Até o dia em que ele acorda determinado a se arrancar da depressão. Quase digo “da melancolia”, mas isso seria só mais um lugar comum literário. Busca livros para resenhar, sem sucesso: as editoras estão publicando pouco. Assiste ao noticiário que negligenciara nos últimos dias, posta no Facebook, com atraso, sua homenagem ao escritor brasileiro que morreu de Covid, retoma a conversa no grupo mais interessante do WhatsApp. Doença e política – é só do que falam hoje. E as duas coisas são, afinal, uma só.

A conversa virtual por escrito revela-se o meio adequado para que ele relate pela primeira vez sua visão nada mística. A história soará, ele pensa, menos improvável – ou menos ridícula – se narrada em linhas breves (e meio truncadas: ele nunca aprendeu a digitar no celular). Vi uma coisa estranha da janela do meu apartamento. Foi há uns dois meses atrás, ele começa (e só depois de escrever se dá conta da redundância temporal).

Um himem com uma máscara de touro entrou no estacionamento aqui do lado do meu predio. Deve ter sido pelas 4h da madrugada. Eke sentou no chão e ficou lá uns quinze minutos parado. Depois tirou a máscara, deixou ela no chão e foi embora. Não vi ele voltar, mas no dia seguinte a mascara não estava mais lá.

Omite o detalhe do porrete – o que ele pensa ter sido um porrete – que o homem com cabeça de touro portava. O grupo reúne 42 pessoas, mas só cinco ou seis (por acaso, os amigos mais próximos) estão on-line quando ele faz o relato. Generosamente, todos deixam passar a constrangedora troca de letras na palavra “homem”. Manifestam pasmo sobre o episódio, perguntam se ele não pensou em descer para ver de perto a máscara que o homem deixara no estacionamento (não, ele responde: a máscara poderia estar contaminada). A conversa logo deriva para o novo destempero presidencial em frente ao Palácio da Alvorada, mas uma pergunta que um amigo fez aos poucos começa a ressoar em seu espírito.

Jonas, você não se enganou de data?, o amigo questionou. Será que isso não aconteceu no Carnaval? O homem que você viu podia ser um folião desgarrado.

Só então ele se lembra do som que ouviu mais tarde, já no quarto, deitado ao lado de Adriana, adormecida. Da presumível distância que a estranha figura do estacionamento teria percorrido pela avenida, veio um som roufenho mas festivo, uma única nota estridente e prolongada. E em seguida Jonas dormiu.

Minha mãe não foi entubada, não precisou do respirador artificial que, leio nos jornais, falta no Amazonas, no Pará, no Rio de Janeiro. É o que mais me apavora na perspectiva de meu pai ficar doente, aos 89 anos: o coma induzido, a fralda para adultos, o tubo na garganta.

Minha mãe não passou por isso, mas Fróide, sim. Tinha dezoito anos, idade provecta para sua espécie, e sofria de insuficiência renal. Emagreceu muito em poucos meses, e foi ficando mais fraco e lento, até a noite em que não conseguia mais erguer-se da almofada, o miado longo e plangente. O veterinário recomendou que Fróide ficasse na clínica, para exames cujos resultados foram inconclusivos. A pressão baixou drasticamente, ele não respondia à medicação. Foi com o grotesco tubo enfiado na garganta que eu o vi pela última vez.

Fróide morreu em julho do ano passado. Sinto mais falta dele agora que estou confinado. Uma casa é menos casa quando o gato se vai.

A máscara parecia muito autêntica. Talvez fosse uma cabeça de touro real, couro curtido por um artesão habilidoso e adaptado sob medida para o homem que sabe-se lá por que desfilava com o bizarro adereço na madrugada paulista. Por que alguém deixaria um item tão singular esquecido no estacionamento de um supermercado?

As crianças estão nos quartos, o Jornal Nacional acaba de noticiar que o cômputo total de mortos no país chegou nesta sexta-feira a 27.944, e ele afinal consegue contar a Adriana sobre o homem da cabeça de touro, um relato completo ainda que um tanto confuso, uma torrente verbal maníaca que inclui detalhes que ele pensava ter esquecido, foi de noite, aquela madrugada que eu passei sozinho na sala, vendo Nostalgia, lembra? Pois então: depois que o filme acabou eu fui até a janela e vi um homem com cabeça de touro no estacionamento do supermercado, tinha acabado de passar uma ambulância pela Angélica, não estava com a sirene ligada mas ia bem rápido, cruzou direto pelo farol vermelho, e foi bem nessa hora que ele chegou, quer dizer, eu vi ele bem nessa hora, mas acho que ele já estava no estacionamento, o portão estava aberto e não tinha guarda, é estranho porque tem guarda toda noite, eu sei disso porque eu tinha muita insônia nessa época, era o início da quarentena, você sabe, Adriana, como eu me preocupava, a gente sem plano de saúde, e as crianças, eu tinha medo de deixar as crianças sem ninguém, eu sei que você segura as pontas, mas eu tinha medo por ti também, Adriana, e se você… mas estou me desviando da história, o homem com cabeça de touro, era uma máscara, uma máscara bem realista, não é das que ficam só no rosto, cabia a cabeça do homem inteira dentro da máscara, e tinha chifres bem altos, arqueados, não sei que tipo de boi tem chifre assim, zebu talvez?, e ele andou mais ou menos até o meio do estacionamento, era uma noite clara e a iluminação estava ligada então deu pra ver bem, quer dizer, não tão bem, o cara tinha uma coisa na mão que eu não sei o que era, um objeto comprido de plástico, talvez fosse um tacape, mas que bobagem não existe tacape de plástico, quis dizer porrete, acho que era um porrete, e então ele se sentou ali no chão, bem na vaga do meio, quer dizer, ele não sentou logo de cara, estou lembrando agora, primeiro ele ficou de cócoras, tipo zagueiro em foto oficial do time, é o zagueiro que sempre fica na frente, não é?, desculpa, desculpa, isso não interessa, é que o sujeito estava com a camiseta da Seleção, e aí eu pensei em futebol, você está vendo que eu não sei direito como contar isso, eu fiquei muito impressionado com o que eu vi, então, onde é que eu parei?, ele ficou um tempinho de cócoras, e deve ter sido difícil se equilibrar assim, a máscara com aqueles chifres tinha jeito de ser bem pesada, e depois ele sentou, ficou assim, nesta posição aqui, ó, com as mãos nos joelhos, sem se mexer, eu não sei quanto tempo mas no mínimo uns cinco minutos, acho que mais, e aí ele tirou a cabeça de touro, parecia até uma coisa de feiticeiro, tipo ritual satanista de filme de terror, ele levantou a cabeça de touro com as duas mãos, devagar, levantou ela bem acima da cabeça, e depois colocou ela no chão, com cuidado, com delicadeza, como se fosse de cristal, uma caveira de boi feita de cristal, e então ele se levantou e foi embora, com o porrete verde dele, e olha só que esquisito: ele deixou a cabeça de touro no chão, eu ainda fiquei uns minutinhos ali na janela e ele não voltou pra buscar ela, e aí eu fui dormir, e só outro dia lembrei de uma coisa que ouvi na cama, um som de Carnaval, um som de festa, tipo uma buzina, uma corneta, o som vinha da Angélica, e eu não sei bem como mas acho que tem algo a ver com o homem mascarado. E quando acordei, umas nove da manhã, você estava botando a mesa do café com as crianças, eu levantei e fui logo na janela ver, mas a cabeça de touro não estava mais lá.

O Jornal Nacional fala agora do inquérito sobre fake news movido pelo Supremo Tribunal Federal, mas o casal já deixou há tempos de prestar atenção à TV. Adriana começou a ouvir o relato com um sorriso zombeteiro no rosto, mas a angústia, a urgência na voz do marido sinalizaram que não se tratava de uma blague, e ela agora está com os lábios apertados, a testa franzida, as costas tesas, descoladas do sofá. Ela tira a franja da testa – o cabeleireiro é o profissional de que mais tem sentido falta na quarentena –, olha brevemente para o chão de tacos, e então levanta o rosto para inquirir o marido com nítida agressividade: Que merda é essa que você está me contando?

Ele não sabe, eu não saberia como responder a esse súbito ataque, e o silêncio foi tudo o que bastou para derrubar a firmeza que sua mulher há três meses vêm mantendo diante das crianças.

Por que, por que acontece uma coisa dessas?, Adriana pergunta. E pela primeira vez neste triste ano de 2020, ela chora.

Pode não parecer, mas este relato mal-ajambrado tem me custado um tempo que eu talvez não encontrasse em circunstâncias saudáveis. Uma canção do Queen e de David Bowie que eu não ouvia há muito tempo me lembrou do momento em que decidi voltar a escrever.

Foi um amigo que me mandou, pelo WhatsApp, mais um daqueles vídeos em que os membros de uma banda se juntam on-line, cada um de sua casa, para tocar juntos. A tela dividida é uma representação técnica perfeita da tão falada “nova normalidade” em que vivemos. Estamos juntos ainda, ainda cooperamos, é o que a música diz, mas a imagem desmente a mensagem de esperança. Agora vivemos separados, e é um imperativo da nossa sobrevivência que cada um se mantenha ilhado em sua célula única.

Pois a canção desse vídeo era Under Pressure. Há duas notas de piano muito marcantes na música, mas na versão pandêmica o piano foi substituído por taças de cristal, cada uma delas com a medida de água exata para alcançar o registro certo. Durante todo o vídeo eu olhei apenas para o canto superior direito da tela, onde um gordinho calvo fazia soar as taças com um golpe suave de colher.

Lembrei de um domingo em fins de março, 4.295 mortos, quando, ao lavar a louça do almoço, fiz a besteira de sacudir duas taças de vinho tinto – herança da casa paterna – sobre a pia, para tirar o excesso de água. Bati uma taça na outra, e uma delas quebrou. Descobri que não há nada de musical no som do cristal que se parte: um ruído seco, tec!, o estalo de um graveto, de um osso.

O celular tocou quase em seguida. A médica da Casa de Repouso Xanadu me comunicava que naquela tarde uma interna fora encaminhada para um hospital privado de São Paulo, com suspeita de Covid-19. As providências de isolamento seriam reforçadas, e até onde ela sabia meu pai não tivera contato com a doente. De momento, não há razão para se preocupar, ela me assegurou.

Foi providencial que Daniela aparecesse na sala bem no momento em que sua mãe chorou. O abraço da filha – que de ordinário não era dada a abraçar os pais – consertou o que o relato atabalhoado do marido quebrara. Daniela não chegou a tempo de ouvir a pergunta de Adriana, por que, por que acontece uma coisa dessas? Isso também foi providencial: não se deve fazer a uma menina a pergunta que adulto algum é capaz de responder.

Na tarde do dia seguinte, Jonas está um pouco mais animado, ou aliviado por afinal ter dividido sua visão com Adriana – em retrospecto, a cena toda, embora francamente absurda, já não parece tão carregada de presságios e simbolismos. Convida os filhos para um passeio curto, mas eles estão absorvidos por um novo game no X-Box. Resolve então sair sozinho, com sua máscara preta. Poderá afinal ir até o hospital de campanha em frente ao Pacaembu. Não sabe bem por que deseja ver essas instalações de emergência, e com algum incômodo lembra a visita que o protagonista de Diário do Ano da Peste faz ao cemitério londrino onde as vítimas da doença são sepultadas umas por cima das outras. Não, não se trata de um impulso mórbido, tento me convencer: o hospital é um lugar de cura antes de ser um lugar de morte.

Descendo a ladeira até o estádio, ele distingue uma aglomeração nervosa em frente ao hospital. Serão umas cinquenta pessoas, com bandeiras e cartazes; carros passam por perto buzinando em apoio ao protesto. Em uma faixa, a palavra de ordem:

O BRASIL NÃO PODE PARAR!

Ele havia visto manifestações nos noticiários, e nos vídeos que amigos compartilhavam no WhatsApp, com comentários entre horrorizados e desalentados. Agora está a duzentos metros do protesto, ouvindo o alarido que com a igual intensidade seria ouvido de dentro do hospital, onde arquejam homens e mulheres de pulmões doentes, onde médicos e enfermeiros fazem longos plantões paramentados em desconfortáveis uniformes de proteção.

De relance, na franja da multidão, Jonas vê um homem magro, sem máscara, com um objeto verde na mão. O porrete, é o mesmo porrete que vi na mão do homem com cabeça de touro! O sujeito leva o objeto aos lábios, e tira dele um som alto e esganiçado.

Não é um porrete, não é um tacape.

É uma vuvuzela.

O instrumento de plástico que os torcedores usam para fazer barulho em estádios de futebol: é uma vuvuzela que vejo o homem tocar na frente do Pacaembu. Foi uma vuvuzela que soou na Angélica, na madrugada de abril em que Jonas viu um homem com cabeça de touro.

Chove afinal. Deveria estar chovendo, e chove. Estou de novo à janela, olhando para o asfalto do estacionamento, que brilha como a pele de uma baleia azul quando emerge ao alcance do arpão. Adriana vem do quarto, trazendo o celular que deixei na mesa de cabeceira.

Jonas, é do asilo.

A médica da Casa de Repouso Xanadu lamentava comunicar que seu pai fora encaminhado a um hospital, com sintomas de Covid-19. Entubado no dia seguinte, morreria duas semanas depois, em uma noite tão clara quanto aquela em que um homem com cabeça de touro foi visto pelas ruas de São Paulo. Mas a memória é fértil em equívocos: no futuro, se houver futuro, Jonas lembrará – eu lembrarei – que o pai morreu em uma tarde de chuva.

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