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O resto? Silêncio

© Nabil Kanso, "Fausto: encontro com Margarete" (1976)

Ivanes Freitas

Fausto ainda tentou escrever alguma coisa que acrescentasse sentido àquela garrancheira toda; não lhe vinda nada à cabeça, impacientou-se e desistiu. Escrever à mão também, ó… que tretae essa letra? Ilegível. Com o hábito, a letra fica bem pior. Riscou o que escrevera: duas dúzias de palavras costuradas a custo. Ontem, quando lhe fugiam as ideias e lhe faltava assunto, bastava cigarro e café. Dado o primeiro trago, o primeiro gole, escrevia que nem um russo. Mas deixara cigarro e, por tabela, café. 

Fitou a caneta jogada na escrivaninha, fitou a folha. Aquilo que escrevera, mal riscado, saltava-lhe aos olhos. Não devia ser tão difícil escrever uma carta, não mais que um ensaio, que um conto. Se a tivesse planejado como planejara o romance que não escreveu, talvez ela não saísse mais fácil, com uma letra menos ruim. Por que lhe custava tanto meter na folha tudo que gostaria de dizer à esposa, um adeus que não a deixasse furiosa? Não se culpe, era o que gostaria de dizer, nessa história, se  culpados, não somos nós, e blá, blá, blá. Uma garrancheira.

Desviou os olhos da folha, deslizou-os pelo quarto: uma estante pequena de livros, uma tevê desligada, um ventilador a zunir, uma cama; na mesinha à cabeceira da cama, o livro que Heloísa estava lendo; na porta do banheiro, estendida, a toalha ainda úmida. Heloísa enxugara-se nela. E, ao pensar no corpo despido da esposa, seus olhos encheram-se de água. Essa comoção, conquanto breve, assombrou-o. Fiapo de vida naquela carcaça? Os olhos, despregados da toalha, pousaram na caixa de sapato sobre o guarda-roupa. Demorou-se na caixa.

Pegou a folha rabiscada com uma das mãos e, que nem sonâmbulo, transformou-a em bolinha, levou-a à boca e engoliu.

“Pai, tem um homem lá fora atrás do senhor”, era Ágata que interrompia aquele passeio imóvel pelo quarto. Consultou o relógio, dezenove e uns quebrados. Vestiu camisa, calçou chinelos, desligou o ventilador. Da sala, alcançaram-lhe as orelhas vozes e risadas. Reconheceu a voz. Era Campos, amigo de infância. Se, entre eles, ainda existia alguma amizade, era por insistência de Campos. Morta a meninice, seus interesses e gostos se desencontraram, sobrando-lhes apenas o boteco do Galego, o copo americano e as conversas que não levavam a lugar nenhum.

O que queria ele? Trocadas as palavras de praxe, Fausto convidou-o a sentar-se no sofá. Este ficou de pé, encostado à janela, que escancarara para correr um ventinho. Na calçada, já sentadas, Heloísa e a namorada de Campos.

Mentira que disse isso?”

Ôse disse. É atrevido, o cara. Mas cada qual com suas loucuras?”

Fausto, vendo uma moto rente à calçada:

“E essa moto aí?”

“Massa, né? Peguei estes dias. Não é zero-bala, mas sempre quebra o galho”.

Campos perguntou a Fausto quando tinham chegado de viagem, Heloísa e ele, e por que não avisaram ninguém.

“Há poucos dias”, respondeu; “faltou-me tempo. Muito trabalho acumulado”.

“Só soube que tinha chegado, porque vi Maria outro dia, no Centro”.

Não disse a ninguém que viajaria, não havia necessidade para isso. Jogo rápido, ida e volta. Ninguém notaria sua ausência. Chegando lá, viu que o negócio que tinha para resolver era mais complicado do que supunha. O que era para ser dois curtos dias, se muito, arrastou-se por uma longa semana. Resolvido o negócio, voltaram.

Da janela, via-se todo o movimento na pracinha do Sol. O velho da merenda espantando muriçocas com um abano de palha; os moleques que, através de salivas trocadas, descobriam ali a adolescência; algumas crianças brincando de esconde-esconde:

“Gorou o ovo! Gorou o ovo”.

“Gorei ovo nenhum, não”.

“Caba ladrão! Vou brincar mais, não”.

No boteco do quarteirão vizinho, para as bandas do Pirajá, sempre muito mal frequentado, a grita dos bêbados sufocava o som ligado no talo. Quarteirões compridos, aquela zoada toda não chegava a agredir os ouvidos de Fausto. 

“Os caras estão lá no Galego. Vamos lá tirar o atraso? A gente volta cedo”.

Como, cedo? Consultou o relógio, dezenove e uns quebrados. Os ponteiros não deram passo. Não; não ia. Preferia ficar em casa. Não estava mesmo afim de sair de casa. Na cabeça dele, só sairia daquela casa dentro de um caixão.

Fausto, que, até então, se tinha esforçado para parecer simpático, esticando para cima as pontas da boca, esforço esse que sempre o exauria muito, deixou que morresse o sorriso. Limitou-se a responder as perguntas de Campos com a cabeça: sim, não.

Olhos voltados para a rua, aquele mundo, apenas entrevisto, não o atraía mais. Para o inferno o Galego e seu suco de milho, vendido a três contos; para o inferno os caras que viviam às expensas dos outros. Só ferravam, só ferravam. Tirar atraso… de quê? Para o inferno aquela porra toda!

O menino, que acusara o outro de roubar, continuava brincando. Heloísa fingia ainda interesse na tagarelice da namorada de Campos. Na sala, silêncio pesado. Fausto olhando a rua pela janela e Campos, no sofá, olhando para o teto, contando as vigas, as telhas. Campos já não falava. Percebera a mudança repentina de Fausto e não ia embora? É um tapado.

Heloísa, vendo parte da cabeça do marido na janela, disse:

“A conversa aí dentro tá é boa, né, amor?”

Fausto, que não ouviu o que a mulher dissera, fez que sim com a cabeça.

Entre a contagem de uma viga e outra, Ágata pediu licença para armar a rede na sala. Podia, sim, armar, ora. Um pé no chão a dar impulso no balanço, livro deitado sobre o peito, assobiando uma melodia que ouvira algures. Aquela melodia atingiu Fausto em cheio. Onde ele a ouvira? De alguma propaganda? Não lembrava, mas ela lhe exumara cadáveres há muito enterrados.

O velho da merenda ainda espantava muriçocas com o abano de palha. Às duas personagens na calçada juntara-se a vizinha, uma velha sem vergonha, que se elegera dona da rua. Ágata se balançando na rede, os armadores rangendo, Campos olhando para o teto, contando as vigas, as telhas. Fausto, impaciente, consultou uma terceira vez o relógio: dezenove e uns quebrados. Os ponteiros não tinham dado um passo. 

Ao mundo que ele entrevia pela janela, o dos adolescentes que se descobriam, o das crianças que brincavam na praça, o dos bêbados que desafiavam os carros na Limoeiro, misturou-se o mundo do qual fizera parte e que se dissipara apenas tentara agarrá-lo, despi-lo, conhecê-lo mais intimamente. 

Aquele instante contemplativo fora interrompido por uma pergunta que Ágata lhe fez, para a qual Fausto, não sabendo que resposta dar, inventou qualquer coisa para desculpar a ignorância. Campos aproveitou aquele embalo, para se despedir. Até que enfimtapado.

“‘Pareça qualquer dia lá no trecho. Os caras querem te ver”.

“Não prometo. Qualquer promessa para amanhã seria ridículo”, respondeu Fausto.

Campos e namorada subiram na moto e pegaram o beco. Heloísa e a velha sem vergonha continuaram a conversa na calçada, a saída daquela personagem anônima lhes dera assunto. Heloísa, sempre adorável, não dispensava esses exercícios de maldade. Ágata não cessou os balanços na rede, os armadores rangiam no mesmo ritmo daquele assobio que perturbara Fausto. 

De volta ao quarto, ajeitou a escrivaninha: sobre o notebook fechado, pôs caderno, dicionário e livro. Canetas, lápis e borracha num caneco. Tirou a camisa, pô-la no braço da cadeira. Deu uma volta no quarto. Sobre o guarda-roupa, pegou a caixa de sapato. De dentro da caixa, tirou um 38 que pertencera a seu pai. Enfiou o cano na boca e disparou. Dezenove e uns quebrados, os ponteiros não tinham dado um passo. Um pipoco. Não havia mais criança brincando na pracinha, não havia mais esposa e vizinha na calçada, não havia mais filha na rede, se balançando; o rangido dos armadores e o assobio se calaram. O que havia era treva e silêncio, um silêncio que sempre buscou, que nunca encontrou.

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