Thiago Henrique Muniz
Na primavera de 1997, enquanto o mundo cambaleava em direção ao novo milênio, cinco músicos se refugiaram em um antigo castelo inglês. O que emergira dali não fora apenas um disco de rock, mas sim um presságio que capturara com precisão as ansiedades de uma era em metamorfose. Lançado em 21 de maio daquele ano, o Ok Computer transcendeu o status de mero álbum para se tornar um registro artístico da nossa própria condição.
Existem diversas interpretações sobre o que torna essa obra especial; no entanto, sua força não surge apenas de suas conhecidas críticas à tecnologia e ao capitalismo – emerge de algo mais fundamental. O Ok Computer é, essencialmente, um álbum de prisões – do aprisionamento e da nossa eterna tentativa de fuga.
A dança entre o orgânico e sintético
O final dos anos 1990 não era apenas uma época de transição tecnológica – era um momento de profunda transformação da própria experiência humana. Estávamos no limiar entre o analógico e o digital, entre o século XX e o XXI. A internet comercial começava a se popularizar, os celulares tornavam-se objetos de consumo em massa e o medo do “bug do milênio” simbolizava uma ansiedade coletiva sobre nossa dependência tecnológica. O OK Computer captou essa metamorfose não apenas em suas letras, mas na própria estrutura sonora do álbum, em que o orgânico e o sintético se entrelaçam numa dança inquietante.
A dicotomia do álbum se manifesta tanto em sua forma quanto em seu conteúdo. Os instrumentos orgânicos – principalmente as guitarras – são constantemente atravessados por elementos eletrônicos e ruídos digitais. O falsete melancólico de Yorke, tão humano em sua fragilidade, é frequentemente distorcido e processado. Parece que a própria música está presa entre dois mundos, lutando para manter sua humanidade em meio à crescente mecanização.
É nessa tensão entre duas realidades que surge o tema central de Ok Computer: o aprisionamento.
Anatomia do aprisionamento e aprisionamento cotidiano
Considero o Ok Computer um álbum conceitual. Isso não significa que as músicas formam um padrão narrativo linear. A estrutura do álbum opera como uma junção de contos, narrativas sonoras unidas por um mesmo tema e atmosfera, tema esse que transcende a alienação tecnológica ou seus efeitos.
Cada faixa apresenta personagens presos em situações desoladoras nas quais a imaginação é a única forma de escape. Esse conflito entre realidade e imaginário se manifesta como uma eterna oscilação entre esperança e desesperança.
Nesse segmento, sobressai a presença de indivíduos perdidos e incapazes de se encaixar em seus ambientes, dominados pelo impulso de fuga e pelo ressentimento.
“Subterranean Homesick Alien” (SHA) inicia com uma harmonia calma, composta por guitarras e teclados com ecos que formam uma atmosfera etérea, criando um cenário que combina realidade e imaginação e que captura o sentimento de isolamento. O eu-lírico, representado por um Yorke de voz doce e serena, mostra-se isolado e insatisfeito com as pessoas e o lugar onde vive.
I live in a town where you can't smell a thing
You watch your feet for cracks in the pavement
Destaca-se nessa música a tentativa de fuga por meio da imaginação, na qual a liberdade só se alcança fora da realidade. O eu-lírico imagina alienígenas carregando-o para um passeio pelo universo, onde ele poderia enxergar e apresentar às pessoas ao seu redor a beleza do cosmos e o sentido da vida, podendo finalmente se sentir bem.
I’d tell all my friends, but they’d never believe
They’d think that I’d finally lost it completely
I’d show them the stars and the meaning of life
They’d shut me away, but I’d be all right
All right, all right, all right
“Let Down” prossegue na mesma linha de SHA, porém o conflito e angústia interior se intensificam tanto pelas melodia e harmonia quanto pela letra. Aqui, a dialética desesperança/esperança revela-se de forma clara na própria métrica da música. O narrador inicia o primeiro verso expondo seu vazio e sua decepção com a repetição das situações medíocres do cotidiano ao seu redor.
Transport, motorways and tramlines
Starting and then stopping
Taking off and landing
The emptiest of feelings
Disappointed people
Clinging on to bottles
And when it comes it’s so
So disappointing
“Let Down” tem três refrões. Após o primeiro, a música incorpora um pré-refrão no qual o narrador expõe um lapso de esperança – nem tão esperançosa assim – de que um dia “criará asas”, numa alusão à liberdade e à fuga dessa realidade sufocante.
One day I’m going to grow wings
A chemical reaction
Hysterical and useless
A estrutura da música estabelece-se: verso (desesperança) – pré-refrão (esperança) – refrão (desesperança).
A construção musical de “Let Down” desponta como uma obra-prima de tensão crescente. As guitarras arpegiadas sobrepõem-se em camadas cada vez mais densas, como pensamentos ansiosos que se acumulam até o ponto de ruptura. A voz de Yorke acompanha essa progressão, intensificando-se com a instrumentação.
O aprisionamento sistêmico
Se, como visto acima, os personagens lutavam contra prisões do dia a dia, aqui descobrimos o aprisionamento em estruturas maiores: o sistema corporativo, a política, as expectativas sociais. Revolta e ressentimento assumem uma forma mais explícita.
“Karma Police” apresenta uma progressão sombria de acordes, conduzida por violão e piano. O narrador, ressentido com o mundo, invoca a “polícia do carma” para punir aqueles que o irritam – um homem que “parece um rádio dessintonizado” e uma garota com um “cabelo de Hitler” que o “deixa doente”.
Karma police, arrest this man
He talks in maths, he buzzes like a fridge
He’s like a detuned radio
Karma police, arrest this girl
Her Hitler hairdo is making me feel ill
And we have crashed her party
No segundo verso abaixo, revela-se a verdadeira fonte de seu ressentimento: o sistema corporativo que o mantém preso à “folha de pagamento”, do qual nenhum esforço parece suficiente para garantir a liberdade.
Karma police, I’ve given all I can
It’s not enough, I’ve given all I can
But we’re still on the payroll
Em “Electioneering”, a prisão política manifesta-se por uma construção sonora agressiva e urgente. Os riffs distorcidos e angulares, a bateria martial de Phil Selway e a aspereza das guitarras criam uma atmosfera de caos. É como se a banda quisesse traduzir em som a violência velada do processo político, no qual sorrisos ensaiados mascaram jogos de poder.
No primeiro verso, o eu-lírico repete, de forma sarcástica, frases proferidas por candidatos: “eu não vou parar, eu não vou parar por nada” e “eu sei que posso contar com seu voto”:
I will stop, I will stop at nothing
Say the right things when electioneering
I trust I can rely on your vote
O refrão captura a essência desse aprisionamento:
When I go forwards you go backwards
And somewhere we will meet
É a expressão crua de um sistema em que o progresso individual é uma ilusão: quanto mais o sistema avança, mais nós retrocedemos. O encontro prometido nunca acontece; permanece apenas como uma promessa vazia num ciclo infinito.
Por meio de uma voz robótica – que lembra a utilizada por Stephen Hawking – “Fitter Happier” apresenta uma litania distópica de autoajuda corporativa.
A voz robótica de “Fitter Happier” não é apenas uma crítica à mecanização da vida – é a própria voz do sistema corporativo ecoando em nossa consciência. Cada verso da música é como uma nova diretriz desse manual de aprisionamento moderno, uma lista interminável de objetivos e verificações que, sob o pretexto de otimizar nossa existência, vai lentamente sufocando nossa humanidade. Até culminar na devastadora metáfora final:
A pig in a cage on antibiotics
[Um porco em uma gaiola cheio de antibiótico]
E chegamos a “No Surprises”, a música mais angustiante do disco, numa competição nada fácil, que intensifica todos os temas explorados até aqui.
A genialidade da composição reside em seu contraste entre forma e conteúdo: a delicadeza hipnótica do Glockenspiel (jogo de sinos) cria uma falsa sensação de conforto, como uma mórbida canção de ninar, enquanto a letra desvela o despertar de uma existência sufocada. Nessa dualidade entre a suavidade musical e o peso existencial, “No Surprises” constrói sua atmosfera devastadora.
O eu-lírico permanece preso tanto no cotidiano quanto no sistema. A aparente perfeição exterior – “uma casa tão bonita”, “um jardim tão bonito” – contrasta com um coração “cheio como um aterro sanitário”. O trabalho que mata lentamente, as feridas que não cicatrizam, o cansaço eterno manifestam-se como expressões de um sistema maior que ele não consegue mais suportar:
A heart that’s full up like a landfill
A job that slowly kills you
Bruises that won’t heal
You look so tired, unhappy
Bring down the government
They don’t
They don’t speak for us
Mas o que torna “No Surprises” o ponto culminante do desespero no Ok Computer é a sua conclusão inevitável. A melodia de ninar do Glockenspiel continua implacável, enquanto o narrador encontra a única saída possível: o silêncio definitivo.
No último refrão, duas vozes entrelaçam-se em um dueto devastador: enquanto Yorke entoa melancolicamente “sem alarmes e sem surpresas”, a segunda voz implora em desespero: “tire-me daqui”. O “aperto de mão de monóxido de carbono” surge como a última forma de escape – uma clara e perturbadora alusão ao suicídio por intoxicação.
I’ll take a quiet life
A handshake of carbon monoxide
And no alarms and no surprises
No alarms and no surprises
No alarms and no surprises
Silent
Silent
This is my final fit
My final bellyache with
No alarms and no surprises (get me out of here)
No alarms and no surprises (get me out of here)
No alarms and no surprises (get me out of here)
Please
O aprisionamento mental
Outro segmento que se destaca é o aprisionamento mental, constituído por duas músicas nas quais os personagens permanecem presos em sua própria psique, dominados por paranoias e torturados psicologicamente.
A primeira é “Paranoid Android”, um milagre sonoro daqueles raros na história da música. Estruturada como uma rapsódia moderna, a música desdobra-se em quatro seções distintas, com compassos e tonalidades que se alternam e colidem, refletindo em sua própria forma a fragmentação mental do narrador. Não existe refrão, não existe ponte – apenas o caos da mente em surto.
Marcada pela falta de linearidade, o eu-lírico começa a primeira parte pedindo para que as vozes na sua cabeça o deixem em paz:
Please, could you stop the noise?
I’m trying to get some rest
From all the unborn chicken voices in my head
Enquanto ele se pergunta “o que é isso?”, uma voz robótica – que pode ser interpretada como uma das vozes na sua cabeça – responde: “eu posso ser paranoico, mas não sou um androide” [“What’s that? (I may be paranoid, but not an android”)].
Temas recorrentes no álbum como raiva, melancolia e o consequente ressentimento aparecem aqui durante o surto mental do eu-lírico. A paranoia e a falta de sentido linear duram por todas as partes da música, às vezes por meio da raiva, outras por meio da angústia.
You don’t remember
You don’t remember
Why don’t you remember my name?
Off with his head, man
Off with his head, man
Why don’t you remember my name?
I guess he does
Se “Paranoid Android” tem um eu lírico em surto que ouve vozes, em “Climbing Up The Walls” o eu-lírico é a própria voz. Ela transmite um efeito perturbador utilizando uma seção de cordas inspirada por Krzysztof Penderecki, conhecido por técnicas atonais e clusters de dissonância. Essa textura é amplificada pelas guitarras com distorção e delay, enquanto a voz de Yorke é sobreposta e processada, criando uma paisagem sonora que materializa musicalmente o pânico descrito na letra.
O tema é o pânico de estar preso na própria mente. No primeiro verso escutamos: “eu sou a chave que tranca sua casa”, “eu sou o picador no gelo”. Nessas imagens reside uma forte ameaça criada pela sensação abstrata da dor, expressa por meio de um falsete suave de Yorke, gerando, por contraste, uma sensação ainda mais aterrorizante.
I am the key to the lock in your house
That keeps your toys in the basement
And if you get too far inside
You’ll only see my reflection
It’s always best with the covers up
I am the pick in the ice
O pânico é silencioso, interno, sem escapatória. O aprisionamento mental é marcado pela desesperança. A dor e a agonia serão eternas. Isso fica claro no pré-refrão, no qual o eu lírico diz de forma suave: “não grite nem toque o alarme / você sabe, somos amigos até morrermos” (“Do not cry out or hit the alarm / You know we’re friends ’till we die”).
O refrão mantém o tom suave, mas intensifica o sentimento de desespero e a impossibilidade de escape: “eu estarei em todos os lugares que você for”. A imagem abstrata de “abra seu crânio, e eu estarei lá” sela definitivamente a prisão mental – nem mesmo dentro da própria cabeça existe possibilidade de fuga.
And either way you turn
I’ll be there
Open up your skull
I’ll be there
Climbing up the walls
O aprisionamento romântico
Se nos segmentos anteriores o aprisionamento e a desesperança se destacavam, no romântico sobressai a esperança e a tentativa de fuga. Como nos outros, os indivíduos estão atormentados em busca de uma saída, mas aqui existe uma força mais ativa movida pelo amor.
Criada para o filme Romeu + Julieta de Baz Luhrmann, “Exit music (For a Film)” aborda os temas da esperança, fuga e desespero de jovens amantes. Essa música é mais uma do álbum na qual não há refrão, além de ser dividida em duas partes.
A primeira traz apenas o violão e a voz quase sussurrada de Thom Yorke, com batidas calmas. O eu-lírico acorda sua amante para fugir antes que “tudo desmorone”.
Wake from your sleep
The drying of your tears
Today we escape
We escape
Pack and get dressed
Before your father hears us
Before all hell
Breaks loose
Toda a música gira em torno da atmosfera sombria dos dois, encurralados por forças que os ultrapassam – família, sociedade, destino. Eles estão apavorados: “respire, continue respirando / não perca o controle” na tentativa desesperada de fugir.
Como a história de Romeu e Julieta é conhecida no Ocidente, sabemos de seu desfecho trágico. É esse conhecimento prévio que torna a música ainda mais devastadora: somos testemunhas silenciosas de uma tentativa de fuga que já sabemos ser em vão.
Na segunda parte, a intensidade da música cresce, tanto no ritmo quanto na letra. A revolta torna-se protagonista. Do peito de Thom Yorke sai o grito do narrador contra tudo, não só contra aqueles que querem separá-los, não só contra as normas sociais, mas também contra o próprio cosmos e seus desfechos sádicos e absurdos.
And you can laugh
A spineless laugh
We hope your rules and
Wisdom choke you
And now we are one
In everlasting peace
We hope
That you choke
That you choke
Se “Exit Music” termina em desespero e revolta, “Lucky” surge como um raro facho de luz no fundo do mar desse álbum tão marcado pela desesperança. Como o próprio título indica, é sobre um homem otimista que tem esperança de grandes mudanças e acredita na possibilidade de uma série de coisas boas acontecerem em sua vida. No entanto, essa “sorte” ainda se mantém no campo da possibilidade, em um desejo e não um fato da realidade, como vemos no primeiro verso:
I’m on a roll
I’m on a roll this time
I feel my luck could change
O motivo da sua esperança de escapar à situação atual está no amor por Sarah. No refrão, o narrador cria metáforas trágicas e sufocantes pelas quais Sarah aparece como salvadora, aquela que o tirará dos piores momentos, das piores desgraças, e ele será seu super-herói, ambos à beira do precipício.
Kill me, Sarah
Kill me again with love
It’s gonna be a glorious day
Pull me out of the aircrash
Pull me out of the lake
Cause I’m your superhero
We are standing on the edge
A estrutura circular
Mencionei antes que Ok Computer era uma obra conceitual, mas que não seguia uma estrutura contínua. Mantenho ainda essa ideia, porém existe uma exceção surpreendente.
A primeira música do disco, “Airbag”, fala sobre um homem que “nasceu novamente” após sobreviver a um acidente de carro – uma espécie de renascimento por meio do trauma.
In a fast German car
I’m amazed that I survived
An airbag saved my life
Já na última música, “The Tourist”, temos um homem angustiado em seu carro em alta velocidade enquanto uma voz pede que ele vá devagar.
Sometimes I get overcharged
That’s when you see sparks
They ask me where the hell I’m going
At a thousand feet per second
Hey man, slow down, slow down
Idiot, slow down, slow down
Isso mostra que Ok Computer é formado por uma estrutura circular, sendo a primeira música a continuação da última. Essa conexão entre início e fim não é apenas temática, pois o álbum nos oferece uma pista sonora crucial em seu momento final.
No último refrão de “The Tourist”, o eu-lírico, em terceira pessoa, suplica por meio da voz de Thom Yorke: “ei, cara, vá devagar / Vá devagar”. Então sua voz cessa. Restam apenas os instrumentos, que vão baixando o volume aos poucos. É aí que surge uma sineta: um ruído solitário que ecoa e se espalha até sumir no silêncio do fim do disco.
Essa sineta é o som da batida do carro e liga uma música à outra, o elo de encontro que torna Ok Computer um eterno retorno. Começamos com “Airbag”, a música mais esperançosa do álbum, na qual o eu-lírico, depois de uma “explosão interestelar”, está “de volta para salvar o universo”; e terminamos em “The Tourist”, o homem que corre sem limites.
Ok Computer revela-se uma jornada circular em que cada fim é também um começo. A cada audição, somos levados novamente por essa dialética entre esperança e desesperança. Como o eterno retorno de Nietzsche, é uma obra tão perfeita que merece – e exige – ser eternamente revivida, revelando novas camadas de significado a cada volta nessa estrada sem fim.