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“O dia em que eu soube da morte de François Truffaut”, por Jean-Pierre Léaud

Truffaut e Leaud

Texto publicado originalmente na revista francesa So Film

(Tradução de Miguel Forlin)

O cinema é uma questão moral.

Quando eu soube da morte de François, encontrava-me em Roma. Sem o Papa, Roma não é Roma. Eu estava filmando “L’Herbe Rouge”, de Boris Vian, na frente da câmera de Pierre Kast, no Cinecittá. Eu sabia que François estava muito doente, haviam operado o cérebro dele, todo mundo escondia a verdade de mim. Apenas Claude Givray me telefonara para falar com sinceridade: “Você já entendeu: François não vai se recuperar, irá morrer”.

Eu havia dito para a minha colega: “Assim que souber da morte de François, me ligue, prefiro que seja você a me dizer do que a voz anônima de um assistente que baterá à porta”. Esse foi o contrato moral que estabelecemos entre nós.

Na véspera, Pierre Kast, que estava doente e em tratamento por causa de seu alcoolismo, havia sofrido um acidente muito grave no set e teve de voltar para Paris num avião médico. À noite, numa festa, fiquei sabendo que ele falecera no avião enquanto arrancava os tubos do conta-gotas. Voltei tristíssimo ao meu hotel e adormeci.

À noite, o toque do telefone me despertou. Sonolento, atendi: “Oi, sou Helène. Me pediu que eu te chamasse quando soubesse da morte dele. ―Sim, já estou sabendo, ele faleceu nesta noite”. Voltei a dormir. O telefone tocou de novo. “Não entendo, você disse que apenas eu devia te avisar, por telefone, da morte de François”. ― Merda!” Eu não havia compreendido: acreditei que se tratava da morte de Pierre!

Um assistente, o primeiro, esgotado, bateu à porta, eu abri, e ele me anunciou: “François Truffaut faleceu nesta noite”. Ele me deu dois comprimidos de Valium e disse: “Ficarei com você o dia todo”.

Vesti-me com pressa, era madrugada, entrei num táxi com ele: “Leve-me para a Praça do Vaticano”. Cheguei lá, a imensa Praça estava vazia, somente dois jovens sacerdotes caminhavam a passos largos com suas batinas. Tomado subitamente por uma raiva violenta ― um homem raivoso está habitado por deuses, dizem os antigos ―, corri na direção de um deles e coloquei meu punho no rosto. Disse-lhe: “Vire a outra face, vamos, vire a outra face…” Mas isso não aconteceu. A lógica do Evangelho é uma lógica angelical que não está dirigida aos homens. A todo custo eu tinha de me encontrar com o Papa, o homem mais próximo de Deus na Terra, para que Deus, através dele, me explicasse por que François Truffaut morrera.

Enquanto eu arrastava com fúria a minha dor, alguns policiais me prenderam de repente. O primeiro assistente me defendeu diante deles. Estes compreenderam a minha situação, o sacerdote não me processou. Eram dois padres latino-americanos de esquerda que foram defender sua causa perante João Paulo II, que lhes concedera audiência. “Se você é cristão e vê um homem pobre, você lhe dá pão. Se você pergunta por que ele é pobre, você se torna um marxista”. Os dois apoiavam sua fé nisso e por essa razão queriam ouvir o Papa. Foi assim que, dominado por uma fúria imensa na Praça do Vaticano, não pude pedir a Sua Santidade João Paulo II para que Deus me prestasse contas.

No dia seguinte, eu terminava “L’Herbe Rouge” com Maurice Dugowson, que às pressas substituía Pierre Kast nas filmagens, tal como previsto em contrato. No set ele me abraçou dizendo: “Há de saber que estás vivendo o momento mais difícil de toda a tua vida”. Minha colega não havia ido me ver no Cinecittá e me deixou sozinho com o horror daquele momento. Foi difícil.

No dia seguinte, eu tinha de ir embora da cidade eterna para chegar em Paris de avião. Fui ao cemitério de Montmartre. Paris inteira estava ali para acompanhar o enterro de François. Ele havia dado ordens para ser cremado. Eu estava sozinho com suas cinzas.

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