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Akira Kurosawa sobre “Solaris” e Andrei Tarkóvski

Texto publicado originalmente no jornal japonês Asahi Shimbun

(Tradução de Miguel Forlin)

Eu conheci Tarkóvski quando compareci ao meu almoço de boas-vindas na Mosfilm, durante a minha primeira viagem à União Soviética. Ele era pequeno, magro, parecia um pouco frágil, mas, ao mesmo tempo, excepcionalmente inteligente e incomumente astuto e sensível. Pensei que, de alguma maneira, ele se assemelhava a Toru Takemitsu, mas não sei por quê. Ele, então, levantou-se, dizendo “eu ainda tenho de trabalhar”, e desapareceu. Depois de um tempo, ouvi uma explosão tão grande que fez todos os vidros das janelas tremerem. Percebendo o meu espanto, o chefe da Mosfilm disse com um sorriso significativo: “Tarkóvski acabou de lançar um foguete. Não teremos outra guerra mundial, mas essa parceria com Tarkóvski, no entanto, tem se provado uma ‘Grande Guerra’ para mim”. Foi assim que eu soube que o jovem cineasta russo estava dirigindo “Solaris”.

Após o almoço, fui visitá-lo. Lá estava: um foguete destruído no canto do set que recriava uma estação espacial. Lamento não ter me lembrado de perguntar como ele o havia lançado naquele local. O set era belíssimo, mas tinha saído caro, pois fora todo feito de duralumínio robusto.

Ele brilhava em sua fria e metálica luz prateada, e descobri raios vermelhos, azuis ou verdes delicadamente piscando ou ondeando de lâmpadas enterradas nos equipamentos. Acima, no teto, estavam dois cabos nos quais uma pequena câmera podia mover-se livremente.

Tarkóvski me guiou pelo set, explicando tão alegremente quanto um garoto que tinha a oportunidade de ouro de mostrar para alguém seus brinquedos favoritos. Bondarchuk, que me acompanhava, perguntou-lhe sobre os custos e ficou boquiaberto quando Tarkovsky falou o valor. O preço era altíssimo: cerca de 6 milhões de ienes, quantia suficiente para fazer Bondarchuk, que dirigiu aquele grande espetáculo cinematográfico que foi “Guerra e Paz”, delirar de fascínio.

Nesse momento, entendi completamente por que o chefe da Mosfilm disse que era “uma ‘Grande Guerra’ para ele”. Mas são necessários um imenso talento e muito esforço para gastar um preço tão alto. Pensando “isto é uma tarefa gigantesca”, eu permaneci às costas de Tarkóvski enquanto ele me guiava com entusiasmo pelo set.

Sobre “Solaris”, ouvi muitas pessoas reclamando que era longo demais, mas não concordo. Elas acham especialmente longa a descrição da natureza nas cenas iniciais, porém, essas camadas de memória, que funcionam como um adeus à natureza terrestre, submergem depois que o protagonista é enviado ao espaço num foguete, e elas quase torturam a alma do espectador, numa espécie de nostalgia irresistível pela Mãe Natureza, que se aproxima da saudade de casa. Sem a longa introdução com as belas sequências na Terra, você não conseguiria fazer a audiência conceber a sensação de aprisionamento dos personagens dentro da estação.

Eu assisti a esse filme tarde da noite numa sala de testes em Moscou e não demorou para que eu sentisse o meu coração agoniar com um desejo de voltar para a Terra assim que possível. Temos gozado de maravilhosos progressos na ciência, mas aonde isso vai nos levar? “Solaris” é bem sucedido na tarefa de invocar temores puros na alma do espectador. Sem isso, a ficção científica seria nada mais do que um luxo mesquinho.

Esses eram os meus pensamentos enquanto eu olhava para a tela.

Tarkóvski estava comigo, no canto do estúdio. Quando o filme acabou, ele se levantou e olhou timidamente para mim. Eu disse a ele: “muito bom. Senti um medo genuíno”. Tarkóvski sorriu de maneira envergonhada, mas alegre. E nós brindamos com vodka no restaurante do Film Institute. Tarkóvski, que não bebia regularmente, bebeu muito, chegou até a desligar a caixa de som da qual saía a música ambiente e começou a cantar, a plenos pulmões, um dos temas de “Os Sete Samurais”.

Como que para rivalizá-lo, eu me juntei a ele.

Pois, naquele momento, eu estava muito feliz por estar vivendo na Terra.

“Solaris” faz o espectador se sentir assim, e até mesmo esse simples fato nos mostra que não se trata de uma ficção científica ordinária. De alguma maneira, o filme realmente provoca um medo genuíno em nossas almas. E isso está sob o total controle dos pensamentos profundos de Tarkóvski.

Nesse universo, devem existir muitas coisas ainda não conhecidas pela humanidade: o abismo do cosmos, para o qual o homem tem de olhar; estranhos visitantes na estação espacial; a reversão do tempo, da morte à vida; estranhas sensações de levitação; o lar, molhado e encharcado, presente na mente do protagonista quando ele está no espaço. Parece-me serem lágrimas e suor que, na sua comovente agonia, ele extirpou do seu ser. E o que nos faz estremecer é o plano, feito em locação, de Akasaka-Mitsuke, em Tóquio. A partir de um talentoso jogo de espelhos, ele transformou faróis e lanternas de carros, multiplicados e amplificados, na rara imagem de uma cidade futurística. Cada plano de “Solaris” é um testemunho dos talentos quase deslumbrantes de Tarkóvski.

Muitos reclamam que seus filmes são difíceis, mas eu não acho. Eles mostram a sua extraordinária sensibilidade. Depois de “Solaris”, seu longa seguinte foi “O Espelho”, que lida com suas amadas memórias da infância, mas, de novo, muitas pessoas acharam perturbadoramente difícil. Sim, à primeira vista, a história parece não se desenvolver racionalmente. Mas temos de nos lembrar: é impossível que, em nossa alma, as memórias da infância se arranjem numa sequência estática e lógica.

Uma estranha e fragmentada linha de memórias partidas e quebradiças pode fazer surgir a poesia da nossa infância. Uma vez que você se convence da sua verdade, você talvez ache “O Espelho” um dos filmes mais fáceis de entender. Mas Tarkóvski permanece em silêncio, sem nunca dizer coisas parecidas. Essa atitude me faz acreditar que ele tem um potencial enorme.

Não pode haver futuro brilhante aos que estão prontos para explicar tudo sobre suas obras.

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