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“Jean Renoir: O Maior de Todos os Diretores”, por Orson Welles

Texto publicado originalmente no jornal Los Angeles Times

(Tradução de Miguel Forlin)

Para os todo-poderosos da indústria cinematográfica, um Renoir na parede é o equivalente a um Rolls Royce na garagem. Um status bem diferente foi concedido ao outro Renoir, que viveu em Hollywood e que aqui morreu na semana passada.

Se excluirmos os recém-chegados muçulmanos e japoneses, é seguro dizer que os donos das pinturas de Pierre-Auguste Renoir em Bel Air e Beverly Hills estão todos ligados ao cinema. E é igualmente seguro dizer que nenhum deles jamais esteve ligado, por mais distante que fosse, a qualquer filme comparável às obras-primas do filho do pintor, Jean Renoir.

Uma comparação entre o cineasta e seu pai não é tão fácil. Nem é necessária. Jean Renoir vale por si mesmo: o melhor dos diretores europeus: muito provavelmente, o maior de todos os diretores ― uma gigante silhueta no horizonte do nosso século declinante.

Ele fez seu primeiro filme em 1925, o seu último, em 1969. Estes são os mais conhecidos: “Tire au Flanc”, “Boudu, Salvo das Águas”, “Toni”, “O Crime de Monsieur Lange”, “Um Dia no Campo”, “A Grande Ilusão”, “A Marselhesa”, “A Besta Humana”, “A Regra do Jogo”, “Amor à Terra”, “O Rio Sagrado”, “French Can Can”, “O Almoço sobre a Relva”, “O Cabo Ardiloso”, “The Little Theatre of Jean Renoir”.

Alguns desses foram fracassos comerciais e até mesmo, em seu tempo, críticos. Alguns tiveram sucesso. Nenhum foi arrasa-quarteirão. Muitos são imortais.

“Uma palavra que no jargão do produtor perdeu todo o significado é a palavra comercial”, escreve Jean Renoir em sua autobiografia. “Um determinado filme é uma obra-prima e tem agradado audiências em cinemas menores, mas é ignorado pelos grandes distribuidores porque não é comercial. Isso não significa que o filme não dê dinheiro, mas apenas que é o tipo de filme que não é atraente para os donos do dinheiro. Mesmo depois de “A Grande Ilusão” ter feito uma fortuna para seu produtor eu tive dificuldades em conseguir financiamento para os meus projetos”.

Às vezes, ele tinha de esperar vários anos antes de poder fazer outro filme. Muitos de seus primeiros filmes silenciosos foram financiados com dinheiro de seu próprio bolso, e, quando esse dinheiro acabou, ele vendeu algumas das pinturas de seu pai para conseguir mais e fazer mais filmes. Desde então, o preço de um Renoir subiu. Quem sabe? Alguns desses mesmos quadros podem estar hoje pendurados nas belas casas dos homens do dinheiro em Bel Air. Pelo preço de um ou dois desses quadros, eles poderiam ter comprado um filme — um Jean Renoir original só para eles.

Seria injusto, no entanto, repreender Hollywood por seus maus tratos sem reconhecer que os problemas de Renoir foram igualmente dolorosos durante seus anos na indústria cinematográfica francesa. “Quando eu penso”, escreve ele, “na luta infrutífera que preencheu minha vida, fico espantado comigo mesmo. Tantas concessões humilhantes e tantos sorrisos desperdiçados. E, acima de tudo, tanto tempo perdido!”

Renoir tornou-se uma figura paterna, uma espécie de santo no establishment acadêmico do cinema mundial. Mas embora ele sempre tenha tido seus partidários fervorosos, uma disputa longa e lúgubre vem se desenrolando ao longo dos anos sobre a questão de quais filmes são “verdadeiros” Renoir e quais seriam, senão “falsos”, pelo menos o que muitos estetas franceses chamam de “enganos”. Desde o início e muitas vezes ao longo de sua extensa carreira, ele fora acusado de abandonar o realismo social, ou de se afastar da “natureza” para uma teatralidade cândida que escandaliza aqueles que pretendem vincular seu trabalho ao impressionismo do seu pai, ou aqueles que preferem classificar os filmes de acordo com seu conteúdo ideológico.

A velha preocupação da crítica com o que é e o que não é verdadeiramente “cinematográfico” nunca deixou de detestar a irrealidade do palco e de assumir que o filme deve ser libertado dessa irrealidade por uma atenção zolaniana aos detalhes naturais. Aqueles que insistem em uma analogia entre as imagens em movimento de Renoir e as pinturas de seu pai esquecem que Pierre Auguste se alegrou com a invenção da fotografia por esta ter libertado a pintura das tarefas enfadonhas e obrigações aborrecidas do realismo fotográfico.

Quanto a Jean Renoir, ele disse: “A preocupação de todos que tentam criar algo em filmes é o conflito entre o realismo exterior e o não-realismo interior”. Quanto a trabalhar “próximo à natureza”, lembrou-nos: “A natureza são milhões de coisas. E existem milhões de maneiras de entender suas preocupações”.

Esse sopro de alcance, essa amplitude de espírito devem necessariamente, em algum ponto, confundir todo crítico. Os esquerdistas doutrinários se sentem pouco à vontade com esse pacifista ardente e irredutível que foi piloto na Primeira Guerra Mundial e autor de dois dos grandes filmes antifascistas da história do cinema. Os detratores denunciaram repetidamente o que veem como sua amoralidade política.

“Um tema”, disse Renoir, “é exatamente como uma paisagem para um pintor. É apenas uma desculpa. Você não pode filmar uma ideia.”

Ele escreveu um livro adorável sobre seu pai, um retrato caloroso, perceptivo e afetuoso no qual fala do amor do pintor por todos os seres vivos. “Quando caminhava pelos campos”, ele nos conta, “meu pai fazia uma dança curiosa para não esmagar os dentes-de-leão.” Os ideólogos ficaram muitas vezes irritados e não pouco aturdidos quando Jean Renoir parecia estar realizando sua própria “dança curiosa”. “Veja só”, explicou ele, “há no mundo uma coisa horrível, e é que todo mundo tem seus motivos”.

Não existem rótulos fáceis para um homem assim. Os homens do dinheiro catalogaram-no, ao menos tão imprecisamente quanto os críticos. “Produtores”, disse ele à crítica Penelope Gilliatt, “querem que eu faça os filmes que fiz há 20 anos. Não, eu sou outra pessoa. Fui embora de onde eles pensam que estou”.

Vinte anos era um período de tempo que aparecia frequentemente nas conversas dele. Jean Renoir nasceu em Paris em 15 de setembro de 1894. “Eu sempre fui”, ele me disse uma vez, “um homem do século 19, assim como meu pai se considerava um homem do século 18”.

Ele também disse que todo artista deve estar 20 anos à frente de seu tempo. E isso era muito mais difícil para o artista do cinema, “porque o cinema insiste em estar 20 anos atrás do público”.

Conhecendo-o como eu, sei que não havia nada de autopiedade e apenas uma amargura seca e impessoal nesta declaração a Gilliatt: “Os homens do dinheiro pensam que sabem o que o público quer, mas a verdade é que eles não sabem nada sobre isso — não mais do que eu”. E quando ele disse, como muitas vezes dizia, que o erro mais perigoso de todos era “ter medo de que o público não iria entender”, ele não estava defendendo a inteligência do público (não, “o público é preguiçoso”), mas sim proclamando a virtude de um certo grau de ambiguidade deliberada.

Quando nos esforçamos para obter uma clareza perfeita, o que por fim alcançamos é perfeitamente banal. Este, ele tinha certeza, era o verdadeiro problema de Hollywood: não que ela adorasse dinheiro, mas algo muito pior — que venerasse um ideal de suposta perfeição.

“Eles verificam o som duas vezes para que você obtenha um som perfeito, o que é bom. Em seguida, eles verificam a iluminação duas vezes para obter uma iluminação perfeita. Mas eles também verificam a ideia do diretor duas vezes ― o que não é tão bom. No caso do fisicamente perfeito ― o perfeitamente inteligível ―, o público não tem nada a acrescentar e não há colaboração. Era mais fácil fazer um filme mudo do que um filme sonoro porque estava faltando alguma coisa. Nos filmes falados, temos de reproduzir essa ausência de outra maneira. Temos de pedir aos atores que não sejam como um livro aberto. Para manter algum sentimento interior, algum segredo”.

Eu não falei aqui do homem de quem tinha orgulho de ter como um amigo. Todos os seus amigos o amavam como Shakespeare era amado: “Algo próximo à idolatria”.

Vamos dar a ele a última palavra:

Para a pergunta: ‘O cinema é uma arte?’, a minha resposta é: ‘O que isso importa?’… Você pode fazer filmes ou cultivar um jardim. Ambos têm a mesma vontade de serem chamados de arte como um poema de Verlaine ou uma pintura de Delacroix … Arte é “fazer”. A arte da poesia é a arte de fazer poesia. A arte do amor é a arte de fazer amor … Meu pai nunca me falou de arte. Ele não suportava essa palavra.

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