Ivete Nenflidio
Ontem
De tardinha,
as crianças vadiavam pelas ruas de pedras;
nada era rarefeito.
O pêndulo
parava sem distração,
o cuco [obra de talha]
descansava seu canto.
Os insetos crepusculares procuravam suas luzes
e as flores da dama perfumavam as noites.
Nas vidraças quebradas pela bola de meia,
o vento insistia em assobiar.
Os joelhos ralados eram cicatrizados pelo sal
e os pássaros silenciavam os gritos
dos homens embrutecidos.
Velha casa do centro
Nos telheiros,
uma aranha descia pelas cordas,
desafiando os nós;
obstáculos incalculáveis do balanço sem corpo.
Os alpendres não cobriam os pés congelados,
as cobertas não detinham as goteiras da velha casa.
Pombos criavam seus refúgios.
Arriscado era acreditar nos retalhos
que ainda sustentavam as paredes e os telhados.
As marcas da casa
Rabiscos de giz de cera
marcavam os centímetros de cada filho
e os retratos lutavam para não serem
sepultados com o tempo.
Naqueles chãos de ladrilhos descorados,
as passadas sinalizavam a escassez de força
de minha mãe.
A noite só era completa
quando se fazia a cama no dilúvio de estrelas.
Sétima arte
A tragicidade do pecado
habita o cerne do mundo
com a dramaticidade
e a potência da destruição humana.
Os discursos povoados de ira perpetuam,
nada mudou.
Nos relatos dos livros sagrados
ou agora em pleno século xxi,
seguem provando do próprio
e amargo veneno,
buscando a incansável confissão,
koinonia e perdão.
Motivados pelos líderes e mitos,
seguem armados de palavras de ódio
e um pouco de lirismo que roubaram da sétima arte.
Intentam por outros caminhos,
buscam a tecnologia,
frases de efeito,
procuram a remissão de culpas e pecados.
Seguem tentando vender
suas visões limitadas de mundo,
prometem o Paraíso,
misteriosa epifania.
São faces a moldar-se em disfarces,
com olhos mansos delineados de uma pureza quase artificial,
com véus nos longos cacheados
e o esteticismo vazio
nos gloriosos templos lotados,
com gritos de louvores que alimentam a Guerra Santa.