Kleiton Ferreira
“Realmente eu não sei como eu poderia impedir”.
Talvez nunca conseguisse.
“Então por qual motivo se culpa?”
“Não sei, tenho dúvidas. Não sei…”
Dr. Molina deu um forte suspiro. Achou que era melhor encerrar. Só Abraão poderia encontrar a fonte da culpa, que talvez fosse criação só sua. Um arrependimento difuso e vulgar de sabe-se lá o quê. Um remorso no subconsciente de algo que fez ou deixou de fazer há muito tempo, como não ter dado bom-dia a Juana, quando ela o tratava tão bem em todas as ocasiões, sem exceção. Sim, Abraão nem sempre foi esse santo que a copeira evangelizava. Não poucas vezes agiu frio, rude, grosso, não em razão do que Juana lhe poderia ter feito, mas por banalidades mundanas, causas da impaciência que transpirava pelos poros e atingiam inocentes como balas perdidas.
A semana começou com audiências criminais. Uma a cada dia.
Na primeira, o caso era de um carteiro que foi preso em flagrante por ter sido encontrada, num cômodo de sua casa, uma montanha de cartas e correspondências não entregues. Mauro Jorge estava trabalhando, entregando cartas, quando a esposa ligou, urgindo dele pressa para voltar para casa. Antes mesmo de chegar, avistou a viatura da polícia. Sua primeira reação foi de susto, um medo de que algo acometera a sua família, esposa ou filhos pequenos. Desceu da moto e não tardou para ouvir de vizinhos que um homem furtando residências ficara preso no forro de sua casa. O alívio sucedeu só até o momento em que o tenente da guarnição perguntou sobre aquela quantidade de cartas entulhadas num dos quartos. Eram tantos envelopes que quase não se conseguia andar pelo espaço de dois por três metros. Os policiais, pisando com os coturnos de borracha, andavam sobre papel e plástico, quase meio metro acima do piso. “Você recebe mais cartas do que a Xuxa recebe”, disse um dos policiais.
Mauro Jorge não soube explicar a razão pela qual aqueles envelopes, naquela montanha, permaneciam inertes em sua casa. Depois de alguns contatos, ligações, orientações de superiores, o tenente levou Mauro Jorge para o departamento da polícia federal, pois o crime era contra os Correios. Está preso por crime contra o serviço postal previsto na lei dos serviços postais, o artigo o tenente olhou no celular, e depois continuou no artigo 40, parágrafo primeiro, ou seja, sonegação ou destruição de correspondência.
Mauro Jorge saiu algemado, dividindo o espaço do camburão com o homem que pulou o muro para furtar sua casa.
“Um ladrão de casas, e um ladrão de cartas”, pilheriou o policial que outrora fizera a referência à Xuxa.
Mas Mauro Jorge foi solto em pouco tempo, não passou sequer uma semana. Agora o carteiro estava ali, na frente de Abraão. Era quase um senhor, para quem não conhecia sua idade, que estranhamente ainda não passava dos sessenta. Na verdade, faltava dois anos para completar as seis décadas.
“É o sol e a chuva, doutor. Nem ferro aguenta”, disse com um sotaque interiorano, alisando o bigode, ao ser perguntado sobre a idade. A cara era descarnada. Não só a fronte da cabeça, mas o corpo todo. Nas têmporas, os sulcos e fissuras dos pés de galinha, bem como as rugas da testa tinham a cor mais clara que o conjunto, ao menos diversa da pele queimada. A mesma coloração avermelhada e marrom existia nas suas mãos. E no pulso, onde possivelmente passou a vida usando um relógio, uma listra alva dava conta de sua cor biológica: branco. Tudo nele era enrugado. “Na firma até que dão protetor solar, mas parece que presta não”, sempre dizia. A audiência transcorreu normalmente, com oitiva de testemunhas, na maioria os policiais que acharam as cartas, e, no final, o interrogatório de Mauro Jorge. “Senhor Mauro, o senhor tem ciência da acusação do Ministério Público Federal?”
“Tenho, mas não é verdade”.
Abraão ficou sem entender. Olhou para o advogado do réu, que apenas fitava o cliente, como que a averiguar se o treino sairia como esperado.
“Pois bem, então o que ocorreu?”, o juiz perguntou. “Você pode ficar em silêncio, como lhe expliquei, não haverá prejuízo”.
“Não, doutor. Quero falar”.
“Pois fale”.
“As cartas estavam lá porque eu iria entregar depois”.
“Como?”
Nesse instante o procurador da República se empertigou na cadeira, entrando no meio da fala do réu. “Isso é um absurdo! Além do mais, dá no mesmo, é crime”.
“Não, doutor promotor. É crime não, porque juro que não ia sonegar nem destruir as cartas, eu ia sim entregar”. Abraão olhou para o advogado novamente. Um rapaz jovem, com óculos de armação leve. Em sereno silêncio, seguro da tese defensiva, segundo a qual o réu não cometeu o crime, uma vez que não tinha a intenção de sonegar ou destruir as cartas. Diz a lei comete-se o crime quem “se apossa indevidamente de correspondência alheia, embora não fechada, para – atente-se-sonegá-la ou destruí-la, no todo ou em parte”. Abracadabra! Se o sujeito não se apossou para sonegar ou destruir, não tem crime. O próprio Abraão depois ajeitou os seus óculos, e deixou que Mauro Jorge prosseguisse:
“Doutor juiz, eu trabalho na firma dos Correios tem 25 anos. Sol e chuva, vento, temporal, trovoada, a peste… desculpa. Mas é a verdade. A firma não dá condição nenhuma de trabalho, e de uns tempos para cá, tiraram minha moto, e me botaram para entregar na bicicleta. Se fala tanto em privatizar, mas já tá privada faz é tempo. O senhor conhece a ladeira do óleo?”
Abraão fez que sim com a cabeça, e sabia que o local era considerado um dos mais perigosos da cidade, onde o tráfico de drogas reinava com seus pontos de distribuição.
“Pois então. Eu subo e desço todo santo dia aquela ladeira. E tome perna. É carta para não acabar mais. O povo nas casas me azucrinava com tanta pressão. ‘Carteiro, fio da peste, cadê minha fatura, preciso pagar para comprar uma roupa’, diziam. Elas, porque a maioria é mulher, querem receber os cartões, as faturas, as contas de telefones. E isso eu entregava, tanto que nunca tive reclamação braba. Eu só deixei para entregar depois as cobranças, carta de SERASA, SPC, cobrança de FIÉIS, envelope oferecendo coisas para as pessoas comprarem. Doutor, pobre é liso, mas não pode ver um papel de promoção deslizar por debaixo da porta que fica logo correndo doido querendo gastar o limite do cartão. Mas eu sofria mesmo era quando chegava tempo de eleição. Aí é dava a boba para os políticos mandarem cartão de festa para pedir voto. Cada casa um envelope. Imagine aí quantas cartas não chegavam, metade do que estava na minha casa era desses pedidos de voto que esses ladrões mandam com o dinheiro do fundão eleitoral, certeza que é, e isso sei pelo que os colegas falam. Por isso guardei”.
“Então você quer dizer que você ia entregar as cartas?”, o procurador interrompeu e se interrompeu. “Depois de três anos? Tem carta de três anos”.
“Doutor, por favor, vamos deixar o réu continuar”.
“Mas, excelência, esse crime é formal, não tem esse dolo específico que a defesa está pretendendo arguir”.
Abraão fez um gesto afirmativo, mas vago, concordando só para impedir o procurador de continuar na defesa de uma tese no meio da fala do réu. Era comum em todas as audiências, notadamente criminais, explodirem debates calorosos sobre teses e teorias, 90% importadas da Europa, Itália ou Alemanha, sobre dolo disso, dolo daquilo, teoria disso, teoria daquilo, crime formal, material, ambiental, até o ponto de se perguntar se os teóricos germânicos da dogmática penal não têm o que fazer, ou se eles não transam, para passar um século e meio inventando teorias de direito.
“Senhor Mauro Jorge”, Abraão retomou o interrogatório, “eu entendo que o senhor está dizendo que iria entregar cartas. Mas como o procurador perguntou, foram encontradas correspondências de três anos atrás. Entregá-las depois desse tempo todo?”
“Doutor juiz, antes tarde do que nunca”. Fez-se um silêncio sombrio.
“E o que pode fazer a gente pensar que o senhor ainda as entregaria?”
“Eu ter guardado elas. Tão todas lá, nunca joguei fora, nem rasguei, nem toquei fogo, nem nada disso. Eu podia ter dado fim, enterrado igual se faz quando se mata um. Mas não, deixei num quarto da minha casa. E o doutor pode mandar ir lá no meu distrito e perguntar, todos vão dizer que sou o carteiro do povo. Veja lá, todo mundo gosta de mim. Já pensei até em ser candidato a vereador”.
“Tudo bem”, disse Abraão, encerrando a audiência.
“Antes de se levantar e se despedir, Mauro Jorge se dirigiu ao juiz”.
“Doutor, eu sei que fiz algo que não deveria ter feito. Perdi meu emprego por isso. Mas garanto ao senhor que eu dei muito mais pra essa firma do que ela me deu de volta. Fui demitido por justa causa, perdi tudo. Disseram lá, ‘não recebe nem o décimo, só as férias vencidas e o restinho a receber’. Uma mão na frente, outra atrás. Em casa, é dificuldade com mulher desempregada e filho também sem emprego, sem contar com a nora morando com a gente, dividindo a boia, e ainda buchuda, a barriga pela boca. Mas Deus é grande”.
Deus é grande, pensou Abraão, deixando a sala de audiências com o coração tranquilo sobre como proceder com o carteiro do povo. Mal sabia ele o que a próxima audiência trazia.