Revista de Cultura

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As coisas são o que elas são, e não o que você quer que elas sejam: Coringa: delírio a dois (2024), de Todd Phillips

Miguel Forlin

Be hard on yourself,
You’ve been spoilt for years.


Marilion, Be Hard On Yourself (1):
The Tear In The Big Picture

Após o sucesso estrondoso ­– de crítica e de público – de Coringa (2019), esperava-se ansiosamente por uma continuação, a qual, enfim, anunciou-se, sem, no entanto, causar certo rebuliço: tratar-se-ia de um musical, com direito, inclusive, à presença de Lady Gaga no elenco, interpretando a Arlequina. Pois bem, Coringa: delírio a dois (2024) chegou aos cinemas, e, para o desgosto de muitos, Todd Phillips entregou exatamente aquilo que prometera. O que se seguiu a isso, já sabemos: textos e mais textos de cunho negativo, e sessões e mais sessões às moscas.

Contudo, o fracasso não se deve aos números musicais; não, a razão é outra, e uma mais profunda: expectativas foram frustradas, e, em uma época acostumada a ter tudo o que se deseja, e a qualquer momento – como um bebê –, não lhe dar o seio é um pecado imperdoável. Não coincidentemente, esse é o tema de Coringa: delírio a dois.

Em minhas redes sociais, eu lhes disse que, por causa da recepção que o filme tivera perante a crítica especializada (sic), eu dedicaria a ele um longo ensaio, mas, inspirado por seu espírito rebelde – e pela constatação de que dar muita atenção àquela é perda de tempo –, decidi por também lhes frustrar, porém, não de modo qualitativo, mas, sim, quantitativo.

Isto é, em vez de uma profusão de parágrafos, alguns tópicos, os quais, para o leitor inteligente, mostrar-se-ão mais do que suficientes para justificar meu enorme apreço pelo filme. Dito isso, vamos a eles:

  • Logo após o lançamento de Coringa, deu-se início, por parte da crítica, a uma avalanche de teorias psicossociais redutivas, que, em vez de analisarem Arthur Fleck (Joaquin Phoenix), acabaram somente por empobrecê-lo, como Coringa: delírio a dois nos mostra tão bem: Arthur não é um mero produto de traumas familiares e sociais nem um revolucionário que se insurge contra uma sociedade injusta e hostil; ele é um ser humano, e não um rótulo;

  • Ao contrário do que geralmente se espera de sequências hollywoodianas (as de hoje em dia, pelo menos), Coringa: delírio a dois não é mais grandiloquente do que seu antecessor; pelo contrário, ele é, de maneira intencional – uma vez que é sobre o interior de seu protagonista –, melancólico e intimista (quase que toda a história se passa em espaços fechados, como, por exemplo, as dependências do Asilo Arkham, o tribunal onde Arthur é julgado e a mente deste último);
  • Os números musicais parecem pouco elaborados por serem projeções mentais de Arthur, que se encontra ansioso por escapar de uma realidade opressiva; Arthur não é um Vincente Minnelli ou um Jacques Demy; ele é um sujeito de baixa instrução, pouca cultura e com problemas psicológicos, portanto, nada mais natural e verossímil do que fugas mentais que estejam de acordo com o nível de seu imaginário e subconsciente;
  • A performance de Lady Gaga soa em descompasso com a de Phoenix porque, desde o início, a Arlequina está se aproveitando de Fleck (o instante em que os dois trocam olhares pela primeira vez é propositadamente artificial, pois, além de ter sido premeditado por ela, a carência emocional de Fleck o torna suscetível a qualquer mulher atraente que lhe dê um mínimo de atenção); ademais, sua personagem representa, dentro do próprio filme, os críticos e espectadores que esperam do protagonista algo que não só lhe é pequeno demais como também indesejado, pois o atormenta – o subtítulo não se refere ao Coringa e à Arlequina, mas, sim, ao Arthur e à sombra do Coringa, a qual o impele a exercer um papel que ele rejeita, apesar de lhe oferecer instantes fugidios de prazer e autorrealização;
  • A brutalidade da cena final se dá por um motivo: na maioria das vezes, finais felizes só existem em filmes (hollywoodianos, de preferência); Fleck sofreu a vida inteira e, no fim, foi esfaqueado e morto arbitrariamente; sim, a existência sabe e pode ser absurdamente cruel; para Fleck, por exemplo, ela o foi, e do primeiro ao último suspiro, sem nenhum tipo de compensação ou redenção;
  • Ao fim e ao cabo, o que Arthur queria? Aparentemente, ser amado – mas não por mil anônimos em razão do que fizera no clímax de Coringa, mas, sim, por uma mísera pessoa, genuinamente, que o amasse por quem ele, de fato, é, e não por quem as pessoas ao seu redor queriam que ele fosse; Coringa: delírio a dois é Arthur Fleck, e rejeitá-lo por ele não ser o que se espera dele é repetir o comportamento originário da tragédia última do personagem.

Em resumo, depois de muitos anos, Hollywood retomou sua antiga e saudosa vocação e finalmente teve coragem de lançar um filme disposto a não entregar aquilo que seus espectadores desejavam, mas, sim, o que a história pedia, mesmo que isso os desagradasse sobremaneira. Coringa: delírio a dois não só dá um seguimento nobre e superior ao primeiro filme como o ressignifica por completo, fazendo-o atingir um novo patamar. Trocando em miúdos, o Todd Phillips fez a parte dele; agora, cabe à crítica e aos espectadores fazerem a sua.

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