O decadente charme da burguesia

Cena de "O discreto charme da burguesia", de Luis Buñuel (1972)

Luiz Eduardo de Carvalho

Depois de Meninos suspensos (2023), a Editora Patuá publica História de H. (2024), terceira obra e segundo romance do cosmopolita teatrólogo e escritor mineiro radicado em São Paulo, D B Frattini, que estreou na literatura, à qual hoje se dedica com exclusividade, após ter estreado com uma coletânea de contos sobre luto e morte, Abraços ausentes (Editora Letraria, 2020).

Ando arredio quanto ao velho hábito de estruturar em discurso coerente e encadeado de ideias consequentes aquilo que é pura sensação e impressão, resultado de contato com a obra alheia. Abdico, porém, de simular tais pseudo-academicismos com ares de crítica literária para ir direto ao cerne da minha percepção e poder compartilhá-la com frescor e verdade.

Ainda assim, se me fosse dado fazê-lo a respeito do romance História de H. (Patuá, 2024), de D B Frattini, partiria, como de regra, por escolher um título que sintetizasse e traduzisse os ecos da obra em mim. Comecei por aí: “O decadente charme da burguesia”, numa evidente paráfrase de Buñuel, referida a uma obra autocrítica, portanto permeada pela autoficção expressa no cinema da década de setenta, em um filme repleto de realidade e absurdo alinhados em ácida crítica à hipocrisia burguesa.

Não o faço por premeditada amostragem de erudição ou vezo de vaidade repertorial, mas por uma série de congruências. A primeira, e talvez mais evidente, porque ambas as obras partem de uma propositura semelhante: a sucessão de dois jantares – entre amigos, no caso de Buñuel – ou ceias, a de Natal e a de réveillon – entre familiares e agregados, no caso de Frattini –, que deflagram o ensejo de condições e situações a serem glosadas com requintada ironia para a construção dos personagens em seus enredos que mesclam realidade e devaneios, fatos e comentários, profundos abismos existenciais e a superficialidade de uma frágil casca de futilidades, num tecido social urdido por valores questionáveis.

No filme, tornou-se notório o recurso de transformar a cena num tablado teatral que colocava os personagens diante de uma atenta plateia que finda por vaiá-los, deflagrando, com essa arquitetura metalinguística, uma feroz crítica aos costumes burgueses validados por relações superficiais mediadas pelas aparências. Frattini também é homem do teatro, vem de suas entranhas, e usa semelhante recurso, porém empregado na acidez dos diálogos ágeis e sarcásticos aos modos da melhor dramaturgia e na cuidadosa construção de cenas estanques que caberiam nos limites de uma ribalta, dívidas em circunstanciamentos maiores como os atos de uma peça.

Repleto de citações dos campos das diversas artes, que vão, por exemplo, desde os mais aparentes paralelos literários até os elusivos conhecimentos do design de mobílias, a erudição burguesa, muitas vezes reforçada por denominações pernósticas, e seu repertório materializado no desejo e posse de tais recursos está presente em todo o tempo, constituindo o cenário: ambiente de recrudescimento do sonho burguês de superioridade expressa pelos acúmulos.

Dos hábitos mais óbvios à quase imperceptível individualidade de requintadas quinquilharias que se apresentam no amontoamento de um espólio sem herdeiros, tudo na vida do protagonista H. está fadado a figurar como índice de postulantes preenchedores de um vazio que o acompanha desde a infância miserável, passando por uma juventude desperdiçada e desaguando no luto experimentado numa maturidade niilista que duvida da própria fé e da identidade perdida.

Outra alegoria que atravessa a obra é a da persistente hipocondria de H., principalmente fundada no espectro psiquiátrico, o que dá maior relevo ao aspecto mentalista dissociado do emocional, ou, de forma paradoxal, ligada a ele xipofogamente, num espelhamento que serve de desdobrada, reforçada e continuada metáfora da doença social e moral que afeta o estrato social em que ele se insere e que lhe causa tantos desconfortos pelo antagonismo entre ansiar e repudiar a perspectiva de ser como eles. É um espaço povoado por personagens duvidosos, dados ao enriquecimento ilícito, a ações predatórias, a mesquinharias, a classicismos e outros vícios legitimados pelo meio que os circunda. Assim, somam-se temas subjacentes, clássicos de extrema contemporaneidade: o suicídio acompanhado, a reprodução assistida e incestuosa, o poliamor, a multiplicidade das manifestações da sexualidade, entre outros que oferecem um painel de reflexões e questionamentos acerca da moralidade e dos costumes.

Para contar os fatos, a voz do protagonista narrador mistura-se com a dos diversos personagens, com seus próprios pensamentos, com os comentários quase sempre irônicos a respeito de praticamente tudo, com as diversas falas do grupo, num intenso e contínuo fluxo polifônico que compõe, com excelência no emprego de refinada linguagem literária, cada cena justaposta a outras de igual resultado a convergir para um todo coeso, feito de sentidos maiores que ultrapassam a capacidade de serem avaliados capsularmente, já que os fragmentos episódicos, de forma intencional, muitas vezes desdizem o que o todo quer apontar. Fina ironia, aliás, é matriz motora de toda a narrativa! Assim, História de H. é uma aula de composição de uma obra tão vigorosa quanto o talento literário de seu autor.

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