Revista de Cultura

Search
Close this search box.

Revista de Cultura

Search
Close this search box.

De Até a última gota

Danilo Brandão

INT. RAIO X – NOITE

Tenho o que se chama de fígado gordo. Ou, como os médicos anotam nos prontuários, esteatose hepática. Mas isso não dá pra notar sem um hepatograma completo. É o resultado de anos de pratos feitos com muito óleo e pimenta, excesso de refrigerante no horário do almoço e barras de chocolate KitKat como sobremesa. Estou com quarenta e um anos e não pretendo lutar contra isso agora. Minha frequência cardíaca não passa dos cem por minuto há quatro anos: última vez que fiz sexo. Tenho um metro e oitenta e cem quilos. Apesar do ligeiro excesso de peso, me apresento com um corpo socialmente aceito quando estou de camiseta. Na verdade, minha relação com a vida é essa: não consigo me mover em direção ao subjetivo. Por isso, busco a opção que me parece mais apetitosa do cardápio em todas as refeições. Sem exceção. Não conseguindo, dessa forma, me livrar da gordura que entope minhas vias biliares. Sempre uso camisa larga, jeans e tênis. Sinto pena de todos os outros homens da cidade. Como se a vida já não fosse triste o bastante, ainda dão a maior importância para si mesmos, tornando tudo mais complicado. Prefiro me concentrar no roteiro das cenas curtas.

Minha mãe morreu no dia 15 de agosto de 2019. 

EXT. UM CAÇADOR – DIA

Aproveito a quinta-feira grátis no IMS para visitar a exposição com Gio. Estaciono numa rua paralela da Paulista e me apresso para atravessar o laranja do semáforo. Gio fica pra trás e aproveita para fechar o guarda-chuva. Subimos o primeiro lance de escadas com ela me falando sobre o estado de saúde da mãe doente. Me aborreço porque já conto o décimo quinto degrau. Pego o catálogo da exposição com o nome do fotógrafo em destaque: Daido Moriyama. Primeira grande retrospectiva latino-americana de um dos maiores fotógrafos japoneses vivos. Daido Moriyama (1938) iniciou a carreira no Japão do pós-guerra e se tornou o ícone pop e mais influente da fotografia japonesa. Inspirado por artistas como Andy Warhol, William Klein e Jack Kerouac, Moriyama revolucionou a forma de olhar o mundo com suas imagens densas e granuladas. Gio interrompe minha leitura para me mostrar uma foto preto e branco de um sorriso. No lábio superior, uma pinta. Os dentes enfileirados. Ficamos em silêncio por quinze segundos. Ela volta a me falar sobre o estado dos rins de sua mãe. Ela quer ser mãe jovem. Não quer repetir os erros da sua progenitora. Vai diminuir o refrigerante. Cortar o carboidrato. Não quer mais fumar depois do sexo. Sente falta de algo que nunca teve na infância. No fundo, sente pena da mãe. Fico mal humorado e rosno conclusões óbvias. Repito a cartilha da Organização Mundial da Saúde e os conselhos de um jovem iniciante na psicanálise. A fotografia é toda fragmentada, reduzida às partes e sem foco, como se um fundista de cem metros rasos levasse uma câmera em seu tórax ansioso. Cortes. Rostos, embalagens de produtos, anúncios, pisos de hotéis. Bundas, sorrisos, pelos pubianos. Analgésicos, outdoors e esquinas. Cidades. Vidas. Um casal assiste stories no volume máximo ao nosso lado. Reclamo e eles pedem desculpas. Dão as costas e voltam a sorrir para o celular. O sapato que meu irmão trouxe para mim de sua viagem abriu no dedinho esquerdo. Roça a cada movimento e já retirou a camada superficial da pele faz uns metros. Gio lembra de algo: sua mãe sempre foi péssima na cozinha e isso a atrapalhou no seu desenvolvimento alimentar. Minha cabeça gira e perde o foco como numa das fotografias de Daido. Meus olhos estão vermelhos e volta a chover lá fora. Comento que vai ser preciso esperarmos alguns minutos para caminharmos até o restaurante. Olho para as pessoas na rua e Gio nunca comeu frutas quando era pequena. Meu telefone toca. Tem algo de errado na minha vida. Minha mãe havia morrido.

INT. ZOOLÓGICO – DIA

O que eu mais me lembro daqueles dias no zoológico era da chuva de suor que tomava conta das minhas bochechas. O cheiro de anis que deslizava para dentro de nossas narinas. Os pescoços tentando encontrar os bichos e a perplexidade juvenil diante das grades. Todos sem mover um músculo sequer. As formigas que escalavam as nossas meias de lã brancas rumo às nossas coxas. Leves e pesadas. Quando eu era criança e ia no Zoológico com a minha mãe, os bichos eram mais bichos. Ela me puxava para explicar que os gorilas eram nossos irmãos de alguma forma. Eu olhava para sua retina através da vitrine e não sabia aonde o gorila queria chegar ali parado. Sentia um ódio seco penetrar a minha epiderme. Era a condição humana por um fio. Eu e ele. Irmãos. Até um de nós dois sermos resgatados por uma distração qualquer. Partia para a solidão da girafa. Andava sem olhar para as suas patas. Não conseguia olhar nos olhos de ninguém. Eu seguia com meu jogo, tentando encontrar as suas retinas. Via ela encontrar finalmente uma nesga de folha para chamar de sua. Antes de mordiscar, parecia presa de alguma forma aquela imagem. Sozinha. Folhas. Era amor. Amor de novo. Até que a fome a resgatava, finalmente. Então se finda todo o amor. O casal de leão que se lambia lentamente, escondidos das verdades do mundo exterior. Pata sob pata. Doentes, doentes. Mortos para o palpável. Prontos para morrer num único mundo. O hipopótamo se lavando eternamente. Um verdadeiro roliço deslizando na superfície penetrável do riacho artificial. Sentia inveja. Um sol terrível molhava minha visita ao Zoológico. Sentia-me encantado com o mundo que se apresentava sem vergonha de ser nu. Sentia vontade de acabar com aquele universo que colocava tudo em outra perspectiva. Os bichos. Poderia invadir as jaulas e atirar nas caras dos animais, para eles deixarem de nos diminuir com as suas retinas. Num só solavanco, minha mãe me puxava para a lanchonete do Zoológico. Fingia me dar opção de escolha. Andávamos entre outras mil mães e filhos nas filas da lanchonete. Nos sentíamos sozinhos. Ouvíamos um silêncio eterno entre a multidão das filas. Olhava pra cima e via minha mãe de pescoço espichado, impaciente. Uma girafa. Instante de dor. Fragilidade. Envelhecíamos juntos e sua imagem já não era mais como eu me lembrava ao nascer. Está magro. Come. Come. Ela me dizia. E eu me sentia um pouco maior quando ela se dirigia a mim. Dias tão tristes no meio dos bichos. Dias tristes como as noites na periferia das metrópoles. A vida passando. O suor secava e formava mais uma marca incoerente na minha camiseta branca. Antes do solavanco final, eu procurava uma resposta na casa secreta dos rinocerontes amarelos. Mas eu sabia que nós estávamos condenados a desaparecer.

EXT. CAMADAS – NOITE

Falência múltipla dos órgãos, mas só o rim parou. FA-LÊN-CIA. Você já ouviu falar? Falou pausadamente. Ela morreu durante o mês de agosto. Um mês sem feriado. No mês de aniversário de Napoleão e que foi firmado o acordo entre os Estados Unidos e a Rússia pelo Alasca. Sei disso porque foi o que eu fiz na sala de espera do hospital. Fatos históricos que ocorreram em agosto. Mês da morte de minha mãe. Encontrei o seu corpo esticado na maca de uma sala branca. É ela? Não. Não era ela. Sim, respondi. É ela. Um tumor no rim havia estourado e matado todos os outros órgãos. FA-LÊN-CIA. Já ouviu falar? Parecia um animal empalhado. Seu olhar buscava o último céu. Inerte. Os seus membros tensionados. Sua boca semiaberta, buscando empurrar o último ar pra dentro. Lembrei de Camus. Mas poderia ter lembrado de qualquer outra pessoa que já perdeu a mãe, como minha avó. Ou Napoleão. Ou eu. Teve convulsão na hora da morte. Passaram um silver tape bem apertado nos seus pulsos. O hospital vai apurar o caso. Abrir um chamado para investigar o caso. Não disse o nome de ninguém. Sua vida estava fechada, finalmente. Em casa, conseguia ver o seu rosto refletido no espelho do banheiro. Senti um medo bobo de ficar sozinho. Liguei para Gio. Sua mãe havia piorado. Fiquei preso. Fui fazer a barba para o enterro e meu rosto começou a sangrar. A lâmina me cortou um pouco por querer me acordar. Tentei de novo. Vi seu rosto. Havia envelhecido e puxou minha mão para terminar o serviço. Quis pedir para parar. Fechei os olhos. As cortinas dançando conforme o gosto do vento. As janelas abertas. A cidade correndo. Tudo geometricamente artificial. Tombo a cabeça para o lado. Ela não existia mais.

INT. TERRAPLANISMO – NOITE

Na modorra das tardes vazias pós morte, me enterrei nas lives de um youtuber terraplanista. Hora de buscar respostas. Somos macacos vivendo numa bola que gira.

– TV: está ao vivo? ao vivo? alô? vê pra mim se foi o som. o som? alô? alô? galera. galera. pra alegria de quem odeia. dos pecadores. todos eles. esse dia chegou. eu tô cego. nas trevas. trevas. chegou. esse dia. vamos lá. calma. antes de mais nada, quero explicar. calma galera. alô? estão me ouvindo. por favor, sinalizem pra mim. calma. tem muita gente preocupada que eu sumi das minhas páginas. paramos com a live. terminamos com tudo. mas calma. vou explicar. esse dia chegou. ninguém sabe tudo o que eu tô passando, galera. ninguém sabe o calvário que foi meus últimos dias, galera. tudo que passei. tudo. eu acho que era só mais um dia. achei mesmo. vocês me conhecem. meus dias são loucos. eu faço lives, converso com vocês. oriento quem quer ser orientado. mas não nesse dia, pessoal, no final, eu fiquei maluco. ninguém sabe disso. tô cego, pessoal. seguinte. vamos lá. eu não queria. não queria aparecer hoje, pessoal. mas é essa a vontade de Deus. ele quis que eu aparecesse dessa forma. dessa forma. mostrando minha realidade pro mundo ver. eu aceito. sou servo dele. de mais ninguém. antes de mais nada, eu sei. sei que os inimigos vão pensar que eu vou admitir. dizer a todos que eu estava errado. os inimigos são assim. é isso que eles querem. mas não. muito pelo contrário. eu não creio. não vou aceitar essas porcarias que vocês acreditam. não vou. e agora tô falando com vocês: inimigos. me escutem, eu tô cego. mas nunca estive errado. saber da verdade, pessoal. a verdade também não é o que Deus quer de seus filhos. não. Deus quer além da verdade, pessoal. é isso que ele quer de mim, de nós. Deus quer que eu seja bom. e isso é a coisa mais difícil do mundo. ser bom, fiel. ser Deus. falar a verdade, pessoal, é a tarefa mais complicada do mundo. no meio de tanta gente ruim. de tanto inimigo, pessoal. o além da verdade é a tarefa mais difícil do mundo, pessoal. falar a verdade deixa a gente é maluca. maluca. eu não tinha noção de tudo isso quando comecei. eu não entendia o quanto o mundo é cruel e os inimigos são fortes, pessoal. as pessoas precisam da mentira. acreditar em todas essas merdas. que a gente é um bando de macaco. essas merdas todas. eu não tinha noção. quando eu comecei, pessoal. eu pensei que era só vir aqui, ligar a câmera, dizer a verdade, iluminar. achei que seria apenas isso, pessoal. fui fraco. ingênuo. e Deus quer mais. mais que a verdade. ele exige mais que a verdade. eu sei que tem um monte de gente problemática, que odeia a família. tem problema com a família. com os pais. essas pessoas são nossas inimigas, pessoal. e eu achei que simplesmente iria chegar aqui. falar a verdade de Deus e ser ouvido. mas não. todos riram de mim. mais um dia eles riram. eu disse a verdade e eles me chamaram de louco. doente. agora eu tô cego, pessoal. Deus quer mais. mais que a verdade. ele não quer só que a gente fale a verdade. ele quer que a gente faça …a verdade mais do que palavras. alô. alô. estão me vendo? ouvindo? nada? eu não vou, pessoal. eu não vou ser um ídolo jamais. essa não é a verdade. essa live, essa câmera não é pra mim. ídolos são irreais. as pessoas acham que eu faço isso, que eu tô on-line. as pessoas acham que assistir outras pessoas vão tornar o que elas estão assistindo. Deus odeia ídolos, pessoal. e isso aqui, essa internet, essa plataforma de vídeo é uma fábrica de ídolos. o quanto eu tenho raiva de tudo isso. isso mata, pessoal. isso te mata. eu queria mostrar a verdade de Deus. a única verdadeira. a única que importante. não tô nem aí com o resto. o resto é inimigo de todos nós, pessoal. eu odeio São Paulo, pessoal. desde que voltei de lá, não enxergo mais. não quero sujeira. não quero ser famoso por ter voltado de São Paulo. nunca mais. o que? o que? não. eu vou falar. mais que a verdade. nunca me importei com a opinião dos outros. não estou nem aí se você não gosta de mim. eu sei. eu sei que todos estão errados, doentes. com ideia de sucesso, dinheiro e prostituição. pessoal, é o seguinte. tô vivendo uma parada muito louca. como se fosse uma visão do outro lado. eu quero, pessoal. até o fim, eu quero ajudar todo mundo. não tenho raiva de ninguém. não tenho raiva de vocês serem idiotas, vendedores de mentiras, de ilusões. eu não tenho raiva de você ser um idiota. eu ajudo todo mundo. eu não sou santo. eu…eu. santo é Deus, pessoal. não tem outro maior. não tem nada maior que Deus. eu não posso salvar ninguém. quem salva é Deus. eu estudo a palavra de Deus. eu sei. eu também tenho meus pecados. tenho meus erros. mas tô tentando ajudar. desde que eu decidi largar tudo pra falar a real eu falei. eu falei. não se luta contra um decreto de Deus. você os aceita. peço perdão. eu sinto tanta raiva de tanta pobreza num mundo tão rico. quanta raiva eu sinto. porque vocês não sabem do tanto de dinheiro que podem ganhar, do quantas terras podem conquistas fazendo o certo. seguindo os decretos de Deus. riqueza não tem nada a ver com vídeo no Youtube de homens querendo ensinar a ganhar dinheiro. e eu tô com ódio. ódio. as pessoas estão cegas e burras. seguindo a Nasa, gays e coitados com casas em São Paulo. vocês vão ter tudo se tiverem Deus. você pode ter o menor pau do mundo e ainda ter uma esposa. mas somente se tiver Deus no caminho. é Deus. Deus. é tudo. não tem nada que não seja de Deus. Deus. eu sou maluco. mas cansei. tô no limite. Deus. procure ele. o poder é ele. é o decreto. todos estão com dias contatos. não tem mais saída. eu tô cego. cego, pessoal. preciso ir. deu a minha hora. até a próxima live. escutem a verdade. verdade. até.

Compartilhe: