Tradução de Miguel Forlin
O autor Gabriel García Márquez conversou com o diretor japonês Akira Kurosawa, de 81 anos, em Tóquio, em outubro passado, quando o cineasta estava filmando seu último filme, “Rapsódia em Agosto”. O filme, que está previsto para estrear neste país [Estados Unidos] em dezembro, foi recentemente exibido no Festival de Cannes, no qual, relata Márquez, recebeu elogios do público e da crítica mas irritou alguns jornalistas norte-americanos “que o consideraram hostil ao seu país”. Márquez, um ex-crítico de cinema em Bogotá, Colômbia, e autor de “Cem Anos de Solidão”, falou com Kurosawa sobre uma ampla variedade de tópicos por mais de seis horas.
Gabriel García Márquez: Não quero que esta conversa entre amigos se pareça com uma coletiva de imprensa, mas tenho grande curiosidade em saber muitas outras coisas sobre você e seu trabalho. Para começar, estou interessado em como você escreve seus roteiros. Primeiro porque eu mesmo sou roteirista; e segundo porque você fez adaptações maravilhosas de grandes obras literárias, e tenho muitas dúvidas sobre as adaptações que foram ou poderiam ser feitas de obras minhas.
Akira Kurosawa: Quando concebo uma ideia original que desejo transformar em roteiro, eu me tranco em um hotel com papel e lápis. A essa altura, já tenho uma ideia geral da trama e sei mais ou menos como ela vai terminar. Se não sei por qual cena começar, sigo o fluxo das ideias que surgem naturalmente.
Márquez: A primeira coisa que vem à sua cabeça é uma imagem ou uma ideia?
Kurosawa: Não consigo explicar muito bem, mas acho que tudo começa com várias imagens dispersas. Por outro lado, sei que os roteiristas aqui no Japão criam primeiro uma visão geral do roteiro, organizando-o por cenas, e, depois de sistematizar a trama, começam a escrever. Mas não acho que seja a maneira certa de fazer isso, já que não somos Deus.
Márquez: Seu método foi igualmente intuitivo quando você adaptou Shakespeare, Górki ou Dostoiévski?
Kurosawa: Diretores que fazem filmes pela metade podem não perceber o quão difícil é transmitir imagens literárias para o público por meio de imagens cinematográficas. Por exemplo, ao adaptar um romance policial em que um corpo é encontrado do lado dos trilhos de um trem, um jovem diretor cismou que um determinado lugar correspondia perfeitamente àquele descrito no livro. “Você está errado”, eu disse. “O problema é que você já leu o romance e sabe que um corpo foi encontrado próximo aos trilhos, mas, para as pessoas que não o leram, não há nada de especial sobre o lugar”. Esse jovem diretor foi cativado pelo poder mágico da literatura sem perceber que as imagens cinematográficas devem ser expressas de forma diferente.
Márquez: Você consegue se lembrar de alguma imagem da vida real que considere impossível de expressar no cinema?
Kurosawa: Sim, a de uma cidade mineira chamada Ilidachi, onde trabalhei como assistente de direção na minha juventude. O diretor declarou de imediato que a atmosfera era magnífica e estranha e foi por isso que filmamos. Mas as imagens mostravam só uma cidade comum pois estava faltando algo de que sabíamos: que as condições de trabalho na cidade são muito perigosas e que as mulheres e os filhos dos mineiros viviam temendo por sua própria segurança. Quando olhamos para a vila, confundimos a paisagem com esse sentimento e a percebemos como mais estranha do que ela realmente é. Mas a câmera não vê com os mesmos olhos.
Márquez: A verdade é que conheço muito poucos romancistas que ficaram satisfeitos com a adaptação cinematográfica de suas obras. Que experiência você teve com as adaptações que fez?
Kurosawa: Permita-me, primeiro, uma pergunta: você assistiu ao meu filme O Barba-Ruiva?
Márquez: Eu o vi seis vezes em vinte anos e falei dele para meus filhos quase todos os dias até que eles pudessem vê-lo. Portanto, não só é um dos seus filmes mais apreciados por mim e minha família como também é um dos meus favoritos de toda a história do cinema.
Kurosawa: O Barba-Ruiva constitui para mim um ponto de virada na minha evolução. Todos os meus filmes que o precedem são diferentes dos que se seguiram a ele. Foi o fim de uma fase e o começo de outra.
Márquez: Isso é óbvio. Além do mais, há duas cenas nele que são extremas em relação à totalidade de sua obra e ambas são inesquecíveis; uma é o episódio do louva-a-deus e a outra é a luta de caratê no pátio do hospital.
Kurosawa: Sim, mas o que o queria dizer é que o autor do livro, Shuguro Yamamoto, sempre foi contra a ideia de adaptar seus romances para o cinema. Ele abriu uma exceção no caso de O Barba-Ruiva porque eu insisti com uma obstinação impiedosa até conseguir. No entanto, quando terminou de assistir ao filme, ele se virou para mim e disse: “bem, é mais interessante do que meu livro”.
Márquez: Por que será que ele gostou tanto?
Kurosawa: Porque ele tinha uma clara compreensão das características inerentes ao cinema. A única coisa que ele me pediu foi que eu tivesse muito cuidado com a protagonista, uma mulher completamente fracassada, que é como ele a via. Mas o curioso é que a ideia de uma mulher fracassada não fica explícita no romance.
Márquez: Talvez ele tenha pensado que sim. É algo que costuma acontecer com nós romancistas.
Kurosawa: É verdade. De fato, ao verem os filmes baseados em seus livros, alguns escritores dizem: “essa parte do meu romance está bem retratada”. Mas, na realidade, estão se referindo a algo que foi acrescentado pelo diretor. Eu entendo o que eles estão dizendo, pois podem ver claramente expresso na tela, por pura intuição do diretor, algo que pretendiam escrever mas que não conseguiram colocar em palavras.
Márquez: É um fato conhecido: “os poetas são misturadores de venenos”. Mas, voltando ao seu filme atual, o tufão será a coisa mais difícil de filmar?
Kurosawa: Não. A coisa mais difícil foi trabalhar com os animais: serpentes d’água, formigas que comiam rosas. As serpentes domesticadas estão muito acostumadas com as pessoas; elas não fogem instintivamente e se comportam como enguias. A solução foi capturar uma cobra selvagem enorme que tentava escapar com todas as forças e era realmente assustadora. Assim, ela desempenhou seu papel muito bem. Quanto às formigas, tratava-se de fazê-las subir em fila indiana até chegar a uma roseira. Relutaram bastante tempo até que fizemos uma trilha de mel no caule e elas subiram. Na verdade, tivemos muitas dificuldades, mas valeu a pena, pois aprendi muito com elas.
Márquez: Sim, eu percebi. Mas que tipo de filme é esse que pode ter problemas tanto com formigas quanto com tufões? Qual é a trama?
Kurosawa: É muito difícil resumir em poucas palavras.
Márquez: Alguém mata uma pessoa?
Kurosawa: Não. É simplesmente sobre uma idosa de Nagasaki que sobreviveu à bomba atômica e cujos netos foram visitá-la no verão passado. Não filmei cenas chocantemente realistas pois seriam insuportáveis e não revelariam o horror do drama. O que eu gostaria de transmitir são os tipos de ferida que a bomba atômica deixou no coração do nosso povo e como elas gradualmente começam a cicatrizar. Lembro-me claramente do dia do atentado e ainda não consigo acreditar que isso tenha acontecido no mundo real. A pior parte é que os japoneses já relegaram ao esquecimento o que ocorreu.
Márquez: O que essa amnésia histórica significa para o futuro do Japão e para a identidade do povo japonês?
Kurosawa: Os japoneses não falam sobre isso explicitamente. Nossos políticos, em particular, ficam em silêncio por medo dos Estados Unidos. Eles podem ter aceitado a explicação do [presidente Harry] Truman de que ele recorreu à bomba atômica apenas para acelerar o fim da II Guerra Mundial, mas, para nós, a guerra continua. Foi publicado oficialmente que 230.000 pessoas morreram em Hiroshima e Nagasaki, mas, na verdade, houve mais de meio milhão de mortos. E mesmo agora, após 45 anos de agonia, ainda há 2.700 pacientes no Hospital da Bomba Atômica esperando para morrer devido aos efeitos da radiação. Em outras palavras, a bomba atômica ainda está matando japoneses.
Márquez: A explicação mais racional parece ser que os Estados Unidos o fizeram por medo de que os soviéticos tomassem o Japão antes deles.
Kurosawa: Sim, mas por que eles o fizeram em uma cidade habitada apenas por civis que não tinham nada a ver com a guerra? Existiam concentrações militares que estavam de fato travando [a guerra].
Márquez: E não lançaram a bomba no Palácio Imperial, que devia ser um ponto muito vulnerável no coração de Tóquio. E acho que tudo isso se explica pelo fato de que eles queriam manter os poderes político e militar intactos a fim de negociar rapidamente sem ter de dividir os espólios com os Aliados. É algo que nenhum outro país vivenciou em toda a história. Agora então: caso tivesse se rendido sem a bomba atômica, o Japão seria o mesmo país que é hoje?
Kurosawa: É difícil dizer. As pessoas que sobreviveram a Nagasaki não querem se lembrar da experiência porque a maioria delas, para sobreviver, teve de abandonar seus pais, filhos, irmãos e irmãs. Elas ainda se sentem culpadas. Posteriormente, as forças norte-americanas que ocuparam o país por seis anos influenciaram de várias maneiras a aceleração do esquecimento e o governo japonês colaborou com elas. Eu até estou disposto a entender tudo como parte da tragédia inevitável da guerra, mas acho que, no mínimo, o país que lançou a bomba deveria pedir desculpa ao povo japonês. Até que isso aconteça, o drama não terá fim.
Márquez: Tudo? O infortúnio não poderia ser compensado por uma longa era de felicidade?
Kurosawa: A bomba atômica foi o ponto de partida da Guerra Fria e da corrida armamentista, além de marcar o início do processo de criação e utilização da energia nuclear. A felicidade nunca será possível diante de tais origens.
Márquez: Entendo. A energia nuclear nasceu como uma força amaldiçoada, e uma força nascida sob uma maldição é um tema perfeito para Kurosawa. Mas o que me chama a atenção é que você não está condenando a energia nuclear em si mesma e sim a forma como ela foi mal utilizada desde o início. Eletricidade ainda é algo bom, apesar da cadeira elétrica.
Kurosawa: Não é a mesma coisa. Acho que a energia nuclear está além das possibilidades de controle que podem ser estabelecidas pelos seres humanos. No caso de um erro na gestão de energia nuclear, o desastre imediato seria imenso e a radioatividade permaneceria por centenas de gerações. Por outro lado, quando a água está fervendo, basta deixá-la esfriar para que não seja mais perigosa. Vamos parar de usar elementos que continuam fervendo por centenas de milhares de anos.
Márquez: Devo grande parte da minha própria fé na humanidade aos filmes de Kurosawa. Mas também entendo sua posição diante da terrível injustiça de usar uma bomba atômica apenas contra civis e de americanos e japoneses conspirarem para fazer o Japão esquecer. Mas me parece igualmente injusto que a energia nuclear seja amaldiçoada para sempre sem considerar que ela poderia prestar um grande serviço não militar à humanidade. Há nisso uma confusão de sentimentos que se deve à irritação que você sente por saber que o Japão se esqueceu do ocorrido e porque o culpado, ou seja, os Estados Unidos, não admitiu sua culpa e ofereceu sua desculpa devida ao povo japonês.
Kurosawa: Os seres humanos serão mais humanos quando perceberem que existem aspectos da realidade que não podem ser manipulados. Não creio que tenhamos o direito de gerar um filho sem ânus ou cavalos de oito patas, como está acontecendo em Chernobyl. Mas agora acho que esta conversa ficou séria demais, e essa não era minha intenção.
Márquez: Fizemos a coisa certa. Quando um assunto é tão sério como esse, não dá para deixá-lo de discutir com seriedade. O filme que você está terminando lança alguma luz sobre o que você pensa a respeito disso?
Kurosawa: Não diretamente. Eu era um jovem jornalista quando a bomba caiu e quis escrever artigos sobre o ocorrido, mas era absolutamente proibido até o fim da ocupação. Agora, para fazer esse filme, comecei a pesquisar e estudar o assunto e sei muito mais do que naquela época. Mas se eu tivesse expressado meus sentimentos diretamente no filme, ele não poderia ser exibido no Japão de hoje ou em qualquer outro lugar.
Márquez: Você acha que seria possível publicar a transcrição deste diálogo?
Kurosawa: Não tenho nenhuma objeção. Pelo contrário, esse é um assunto sobre o qual muitas pessoas no mundo deveriam opinar.
Márquez: Muito obrigado. Penso que, se eu fosse japonês, eu estaria desanimado, como você, em relação a esse assunto e, de qualquer forma, eu o entendo. Nenhuma guerra é boa para ninguém.
Kurosawa: Sim, mas o problema é que, quando o tiroteio começa, até Cristo e os anjos se transformam em chefes militares.
Este texto foi publicado originalmente em inglês no LA Times e pode ser lido aqui.